Mavi Veloso - Travesti Biológica

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O ano de 2022 ainda nem conseguiu tomar o devido fôlego e o time de lançamentos independentes já mostra sinais de que será constantemente abastecido. Junto de nomes como Amann & The Wayward Sons e Otavio Castro, Mavi Veloso não apenas apresenta um álbum, mas sim se lança no mercado musical com seu disco solo de estreia, o intitulado Travesti Biológica.


Um estridente e arrepiante som se pronuncia no horizonte. Eis que essa mesma sonoridade assume ares guturais de pitadas assombrosas, o que cria uma atmosfera de tensão e uma expectativa masoquista. É assim que o ouvinte se percebe amarrado a uma melodia que mistura o eletrônico-ácido-aveludado com subgraves e beats compassados de maneira a apresentar a intersecção do trap e synth-pop. Essa mistura abre caminho para uma voz de timbre anasalado que flerta em semelhança com aquele de Pabllo Vittar entrar em cena. Se sobressaindo perante uma harmonia onomatopeica, Mavi Veloso vem trazendo um lirismo que, mais do que reflexivo, traz uma essência de protesto perante a aceitação da sexualidade. É fato que as colocações das palavras e a construção do enredo trazem uma agressividade imponente como o único meio encontrado pela comunidade drag de tentar impor um senso de igualdade e romper, consequentemente, o preconceito. 2000 Something é a vontade de Mavi fazer, como ela mesma evidencia, “I wanna make revolution” ao mesmo tempo que exorta uma preocupação entorpecida com o verso “I’ll never be the same again”.


O suspense continua, mas a cadência aqui construída sugere um movimento que espanta aquele intenso temor instaurado na introdução da faixa anterior. Apesar de suave, é possível perceber uma ambiência rap nas entranhas da melodia em construção, de maneira a trazer um senso de urgência fundido em crítica. É assim que Mavi traz um relato autobiográfico em que assume se despir da culpa de ser quem é. Conforme a canção vai chegando ao seu ápice, um terceiro elemento é identificado. Servindo como uma cama de veludo, Pauli Scharlach se pronuncia mais que backing vocal, se pronuncia como um personagem que oferece alento e uma espécie de proteção ao eu-lírico de emocional inconscientemente ferido. Isso é Postiços.


É como o iniciar de sistemas, ambiente proporcionado por João Paes. Natasha Princess e Bruno Mendonça surgem na camada superficial da sonoridade em construção com vocais metálicos e de palavras incompreensíveis que soam como balbuciares homogeneamente inclusos na melodia, que evolui de maneira a construir um cenário embrionário de caos. Com os subgraves se evidenciando de maneira potente no compasso rítmico ao lado do beat de AVAF, In D Meantime evidencia em sua máxima forma e acompanha um lirismo que exorta a vontade do grito, do extravasar e do desabafar as mazelas que afligem o emocional do eu-lírico. 


Ecos metálico-estridentes sobrevoam o cenário repleto pelo breu. Subgraves e o beat formam uma melodia curiosamente atraente e de um viés mais pop que consegue captar mais facilmente a atenção do ouvinte. Os ‘hey-hos’ entoados pelo backing vocal de Urubu Marinka reforçam essa constatação. Por outro lado, o enredo lírico que se constrói em Biological Tranny é a exortação do mantra autoproclamado do eu-lírico no processo de convencimento de que, em suas próprias palavras, “I am a woman. I’m a natural woman”. Um forte candidato a single lado b do álbum.


Adocicadas e alegres notas que simulam o som do xilofone na singela introdução da faixa que vai, aos poucos, se evidenciando. Apimentando de maneira bruta esse cenário, Mavi vai jorrando insultos que, claramente, por ela já foram ouvidos. Ao mesmo tempo, o enredo lírico se desenvolve de maneira a escancarar a dualidade de uma sociedade machista e sexista em que o chamado respeito surge quando a vontade de uns são feitas pelos outros. Names é, como o próprio verso introdutório sugere, uma música onde os vários nomes chulos que designam uma pessoa pela forma como ela se porta são postos á tona. Decididamente, Names pode ser incluída na lista de singles de Travesti Biológica.


Enquanto o ouvinte ainda se embriagava com o trap amaciado de Names, uma repentina mudança melódica sugere seu amanhecer. Como um susto, uma ambiência baseada no synth-pop repleto de bumbos sequenciais proporciona o clarear de Treasure In My Mouth, uma música de melodia embriagante e ácida que recria a atmosfera new wave da década de 70. Macia e de uma digestão mais agradável e melancólica, a faixa entra em seu ápice trazendo uma curiosa semelhança com melodias de canções de gêneros distintos. Ao mesmo tempo em que a cadência vocal de Mavi se associa, mesmo que por instantes, àquela assumida por Zé Neto em Seu Polícia, single da dupla sertaneja universitária Zé Neto & Cristiano, ela assume um parentesco com o movimento lírico exercido por Billie Joe Armstrong em Before The Lobotomy, single do Green Day. Novamente acompanhada por Pauli nos backing vocals, Mavi traz um lirismo que, diferente daquele de Postiços em que exaltava certa autoconfiança, vem com notas de insegurança e receio comprovadas pelo verso “the secret is mine”.


Com uma sonoridade semelhante ao do chip tune, Mavi oferece ao ouvinte uma melodia compassada e de uma crepuscular alegria. “Ele chegava e entrava e nem batia”, relata o eu-lírico em seu primeiro verso. Se repetindo durante a execução da faixa por diferentes formas de pronúncia, esse mesmo verso é capaz de lançar ao ouvinte diversas interpretações. Em verdade, a própria melodia de enTR4V4 conota uma ambiência sensual cujo final acompanha uma revelação lírica propositadamente surpreendente que vem acompanhada da reciclagem do ritmo chip tune exercido durante a introdução da faixa. Marcando seu encerramento, em voz grave e áspera Mavi repete o verso “my baby is always with me, my baby’s always being around”. 


Sob um suspense melódico latente e entorpecidamente ecoante, Mavi vem com um lirismo propriamente sexy e consequentemente provocante, mas sem ser apelativo. "I know you've been looking at me with eyes of fantasy", versa ela com um vocal quase sussurrante. Existe aqui uma maciez, um veludo reconfortante tal como o mormaço de uma luz solar poente, muito dos quais foram proporcionados pelo vocal agudo de Ivy Monteiro presente a partir da segunda estrofe. No mais, Everything U Want surpreende ao trazer, na receita sonora, pitadas tropicais do reggaeton que casam com o romantismo sensual saliente e empoderado do enredo lírico.


Obscura e, consequentemente, sombria e densa. Curiosamente, a atmosfera trance remete à melodia que preenche a execução de Something, single do grupo eletrônico Lasgo. Com sussurros ecoantes que causam uma sensação de assombração, Puro tem ainda um uso intenso de subgraves que faz com que o trance se misture ao trap com uma homogeneidade notável. E de notável vem também o lirismo chamativo e agressivo que, aparentando ser autobiográfico assim como aquele de Postiços, relata o ato sexual como uma forma de metaforizar o abuso e o desrespeito. Porém, no final do devaneio cantado, o eu-lírico encontra a brecha e alcança o empoderamento que sustenta seu emocional.


Onomatopeias guturais são expelidas por Mavi de maneira melódica e angelical. De olhos fechados, o ouvinte consegue prestar atenção na narrativa por ela cantada e visualizar nitidamente cada uma das situações descritas. É curioso como em Minha Essência a cantora consegue defender e representar toda a classe marginalizada da sociedade que abraça desde não somente a comunidade LGBTQi+ no geral, mas vai à fundo no contexto do universo das drag queens e transvestigênere. 


Saindo de um ambiente de extremo minimalismo que foi Minha Essência, uma música cantada em à capela, Mavi surpreende o ouvinte ao trazer na base rítmica um gênero até então desconhecido de Travesti Biológica, que é o tecnobrega. Assim como foi com Everything U Want ao explorar o reggaeton, ao empregar o tecnobrega existe a sensação de frescor e, principalmente, de brasilidade. Com traços de pop, Tuck 2 Me mantém sua índole cosmopolita ao ser narrada em inglês com mescla de português e traz a movimentação da dança e da sensualidade com seu cerne de identidade.


Sem delongas, Travesti Biológica é um disco que transborda noções de empoderamento. Ao mesmo tempo, é preenchido por pinceladas de agressividades e sensualidades como forma de encontrar a imponência necessária para posicionar a voz que busca pela igualdade de direitos, da liberdade sexual, de expressão e mais importante, que busca respeito.


Nessa luta, Mavi Veloso claramente não está sozinha. Pabllo Vittar, Caleêndula, Gloria Groove, Dan Abranches, Gabeu, Mel & Kaleb, Nathan Dies, Darren Criss, Gorillaz, La Burca e Mopho são apenas alguns dos nomes que declaradamente abraçam a causa.


Sob a produção de Bicuda, a cantora decididamente alcançou seus objetivos. Afinal, com a coleção de letras que preenche Travesti Biológica, ela não apenas choca, mas também estimula a malícia no ouvinte. Pode até ser piegas e mais do mesmo, mas o fato é que os depoimentos de teor biográfico amanhecem a emoção e comovem o espectador.


Como forma de extravasar aquilo que visivelmente estava engasgado por muito tempo, Mavi Veloso assume uma colocação marginal ao mergulhar em campos do trap e do rap. E para lançar sua causa para ambientes mais comerciais, existe a trajetória também pelo tecnobrega, synth-pop, reggaeton, trance e mesmo o pop.


O lado marginal foi até mesmo incluído na arte de capa. Assinada por BeviMix & Master, ela não apenas apresenta Mavi em roupas íntimas deitada sob uma base espelhada como forma de se impor e escancarar sua identidade. Ela abraça ainda a arte de rua ao trazer o nome do álbum sob a fonte tradicional da pichação, a arte de rua assumidamente marginal.


Lançado em 21 de janeiro de 2022 de maneira independente, Travesti Biológica é um disco chocante. Empoderado, enfático e provocativo, ele é um álbum que, apesar da carapuça agressiva, é um álbum que pede aceitação e igualdade. É um trabalho que clama pelo fim do machismo e do sexismo. Pede o fim do preconceito.

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Sobre o crítico musical

Diego Pinheiro

Quase que despretensiosamente, começou a escrever críticas sobre músicas. 


Apaixonado e estudioso do Rock, transita pelos diversos gêneros musicais com muita versatilidade.


Requisitado por grandes gravadoras como Warner Music, Som Livre e Sony Music, Diego Pinheiro também iniciou carreira internacional escrevendo sobre bandas estrangeiras.