Mel & Kaleb - Quase Nada

NOTA DO CRÍTICO
Nota do Público 5 (2 Votos)

O Brasil é um país miscigenado. Seja no quesito social, religioso ou no que tange as diferentes raças, é um país misto, que abriga todos os tipos de pessoas. E na música acontece a mesma coisa. Agora, por sinal, o território tupiniquim abraça mais uma dupla que se lança no mercado fonográfico nacional. Expoente do sertanejo, a Mel & Kaleb apresentam Quase Nada, seu EP de estreia.


As notas do violão e os repiques da bateria já trazem a essência sonora. O sertanejo se pronuncia na melodia e o arrocha se pronuncia na cadência, o que torna Amor de Sexta-Feira uma música mista em gênero musical e que atende tanto a sofrência quanto a energia alegre. Ao mesmo tempo em que Melizza Andrade entra em cena com sua voz carregada na estrutura típica do sertanejo, a canção ganha ares latinos com a inserção de elementos percussivos de Priscilla Link. Liricamente, a canção foge ligeiramente do conteúdo típico do sertanejo, aquele calcado no romance heterossexual. Afinal, o que é narrado é uma realidade em que o amor se pronuncia de forma pura e entre pessoas de diferentes interesses. Aqui, especificamente, é a atração de uma mulher por um homem que gosta de se vestir de mulher. Por isso, a canção tem um forte peso de inclusão e comunica o senso de igualdade entre as pessoas.


A sanfona de Vitor Castro dá seu suspiro inicial em meio a um beat sincopado a partir de um chimbal levemente acelerado. Com voz mais aveludada e tranquila, Melizza se fixa na sonoridade com mais uma narração de cunho romântico. Aqui, porém, diferente da faixa anterior, a melodia pisa no freio e entra em harmonia com o clima romanesco criado pelo canto. Se construindo de maneira minimalista, o primeiro verso da faixa-título é calcado na estrutura voz e violão, criando um clima de intimidade. E nesse aspecto, o chamego ganha peso com a união de Kaleb Oliveira nos vocais, proporcionando um dueto aconchegante e ao mesmo tempo sedutor. O pré-refrão de estrutura crescente leva o ouvinte para um refrão que se desvirtua do arrocha e imerge na atmosfera da pisadinha, em que é até possível perceber traços do forró.


Teclado, violão, bateria. Um ambiente de suspense invade a atmosfera. O pandeiro entrega o toque que comunica a descoberta, a introdução definitiva. É curioso como Guilherme Tonial consegue, a partir de suas notas e dedilhares pelo braço do violão, despertar sentimentos tão diversos no ouvinte e transitar livremente por diferentes gêneros sem nem ao menos deixar o ouvinte perceber essas transições. É algo natural e também aquilo que proporciona às músicas de Mel & Kaleb uma identificação mista, que não pode ser creditada a apenas um escopo sonoro. Melodicamente, uma balada. Liricamente, um estrondo. O dueto entre os cantores narra uma situação que traz a mensagem do autoconhecimento, da auto aceitação. Do descobrimento. Mas mais do que isso, é uma canção que mostra o quanto o apoio de amigos importa nas tomadas de decisão, inclusive nas delicadas, como é o caso da percepção da homossexualidade, que é o tema central de Eu Entendi. Nesse ínterim dramático e emocional, entra Gali Galó, quem assume os vocais na segunda estrofe. Sua voz grave com lampejos de finura entrega uma paleta de cores diferente, enriquecendo a canção no que tange a textura.


O groove se pronuncia mais acentuado. O compasso está mais contagiante. A sanfona traz notas mais alegres. Ao mesmo tempo, o sobrevoo quase onipresente das notas do teclado constrói um ar que beira o astral, criando um ecossistema que emana grande expectativa. O primeiro verso se apresenta com uma melodia quase em estrutura de mantra astral, impressão causada pelos golpes do bumbo em união às notas do teclado funcionando como uma cama para o lirismo. Os golpes acelerados da bateria de Nicolly Demeneghe servem como uma ponte para o refrão e para a transformação rítmica. Se transformando em um expoente do piseiro, Me Dê o Seu Amor assume velocidade e, a partir do baixo de Débora Christian, swing e groove. Tais fatores, inclusive, proporcionam singelos flertes com o forró. Ao mesmo tempo, é possível perceber a presença do sertanejo universitário na melodia, convidando o ouvinte a abaixar a apoiar os braços entre si e deitar a cabeça no punho tal como a dança típica do gênero. Outro fator interessante da faixa é sua frase-chiclete “E me dê o seu amor a a aia a a aia”, que ao mesmo tempo que convida o espectador a cantar junto também proporciona a memorização. Fora isso, a entrada de um terceiro integrante, de voz feminina e suave entregou ainda mais swing à melodia. É BABY que auxiliou a dupla no refrão. Esses fatores fazem de Me Dê o Seu Amor um forte single de Quase Nada.


O EP de estreia da dupla Mel & Kaleb tem, sem discussão, um peso social. É quase que um livro de autoajuda musicado. Afinal, todas as quatro faixas possuem um lirismo cujos temas delicados são abordados de uma maneira respeitosa e ainda mais delicada. A homossexualidade é apenas um aspecto, mas as principais mensagens deixadas pela dupla é da auto aceitação e do respeito às diferenças. E nesse aspecto, o trabalho anda de mãos dadas com Rolê Pelo Bueiro, trabalho de estreia de Calêendula.


Pelos temas líricos Quase Nada seria um EP denso e que dificilmente atrairia a atenção massiva do público. Porém, os gêneros musicais que serviram como cama para esses assuntos deram conta da tarefa de atração, principalmente entre os jovens. Piseiro, arrocha, sertanejo e pisadinha são alguns dos estilos representados pelo time de músicos compete recrutado pela dupla.


E nesse aspecto, Rodrigo Berger fez um bom trabalho de mixagem. Afinal, ela permite ao ouvinte ouvir cada instrumento em sua individualidade. Mas mais do que isso. Ela transmite conforto, amorosidade, aconchego e confiança. No EP, esse campo funcionou quase como uma ABNT, transformando a melodia em algo tangível.


Lançado em 30 de abril de 2021 de forma independente, Quase Nada é um EP que busca o respeito. Busca oferecer ajuda. Busca mostrar que o mundo é mais completo com as diferenças. Cada música nele presente funciona como um confessionário, uma conversa entre amigos em que a confiança é o pilar central. Acima de tudo, o EP faz com que toda a comunidade LGBTQI+ se sinta querida e abraçada.

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Sobre o crítico musical

Diego Pinheiro

Quase que despretensiosamente, começou a escrever críticas sobre músicas. 


Apaixonado e estudioso do Rock, transita pelos diversos gêneros musicais com muita versatilidade.


Requisitado por grandes gravadoras como Warner Music, Som Livre e Sony Music, Diego Pinheiro também iniciou carreira internacional escrevendo sobre bandas estrangeiras.