NOTA DO CRÍTICO
Logo na primeira semana de 2022 um trabalho surge para abrilhantar e puxar a fila dos lançamentos independentes do ano. Pensado dessa forma conscientemente ou não, o fato é que o período foi escolhido por Otavio Castro para anunciar Dale!, seu novo trabalho e mais recente EP.
É como estar em uma tribo indígena observando por entre as largas folhas das árvores espalhadas pela mata a chuva caindo como véu de noiva e refletindo os últimos feixes de luz solar presentes durante o entardecer. De maneira crescente, melódica, aveludada e desenhando uma sonoridade inicialmente folk, o instrumental lança sobre o ouvinte uma espécie de melancolia entorpecente através do som doce e macio da gaita cromática e do temático sonar do pau de chuva. Eis que a introdução desemboca em um ambiente swingado na base do samba que contagia pela sua malemolência amena. É curioso notar que a introdução da faixa-título é audivelmente mais rica em elementos do que no resto da canção. Nela, se percebe as notas percussivas da conga e do agogô, o brilhoso tilintar do carrilhão e a temática sonoridade do carrilhão de chuva. Enquanto isso, o restante da canção assume uma base linear constante em que o único elemento percebido é a composição sincrônica dos sons das gaitas cromática e diatônica se dividindo em primeiro e segundo planos.
Enquanto a introdução da faixa-título desenhava um entardecer, o despertar de Pulse cria o retrato de um amanhecer de luminosidade amena. Ganhando alegrias notáveis a partir da inserção de novos elementos como a viola caipira amplificando uma doçura sorridente, a faixa tem um groove peculiar pronunciado pelo baixo fretless e mantêm o samba, assinatura rítmica já evidente de Castro, preenchendo a base melódica.
Um som áspero, ácido e metálico é lançado no ambiente. Ao fundo, uma calmaria entorpecida e aveludada caminha como um caráter embriagante cujas referências rítmicas pairam por algo que pode ser considerado como um embrião do R&B. Altar é uma canção que carrega em si uma melancolia contagiante estimulada pela gaita cromática. Misturando ao seu folk tradicional, Castro traz na faixa, ainda, imersões no campo do jazz que podem ser notadas na base rítmica. Altar ainda vem com duas positivas surpresas para o ouvinte que são a agudeza da gaita diatônica e versos cantados nos últimos suspiros melódicos. De tão metálico e igualmente equalizado, o canto empregado por Gustavo Dutra facilmente se confunde entre o instrumental como se nele se fundisse e formasse um único corpo sonoro.
A melancolia segue embriagante em Suíte Ventura, uma canção cujas explosões suaves e singelas dos pratos tentam romper com o torpor incessante da melodia. O teclado, ao fundo, traz uma maciez reconfortante enquanto vai se criando um swing que faz nascer um tímido, mas já perceptível sorriso de canto de boca. Curiosamente, Suíte Ventura é uma canção em que o ouvinte pode perceber, entre os acordes, uma sutil imersão no campo doce da bossa nova.
É curioso como Castro consegue caminhar calmamente pelas texturas rítmicas de maneira a, gradativamente, fazer amanhecer um cenário que mude a perspectiva tátil das melodias experimentadas durante Dale!. Se em Suíte Ventura já notou-se a chegada de uma sonoridade mais sorridente, é em Dungus que ela encontra seu pico de ânimo. Audivelmente com uma cadência mais agitada em relação àquelas pronunciadas nas canções anteriores, a presente faixa vem com um contagiante, amaciado e fresco swing. Um swing que representa a felicidade do contato, do brilho no olhar, do sorriso recíproco. Dungus é como se estar sentado perante uma mesa farta e rodeado de amigos que proporcionam mais do que boas conversas e risadas, proporcionam a felicidade da interação.
Da mera conversa, cada par de amigos se posiciona no centro do salão e é instigado a dançar. Uma dança que é guiada pelo groove anasalado e de toques graves do baixo e pelos natalinos sonares dos guizos. É como o ato de observar, sentado na ponta de uma colina, o chegar do Sol com sua luminosidade imponente trazendo brilho ao gramado e o calor que agita a vida. Bom Dia é a celebração da oportunidade de novos começos.
Curioso é a palavra que melhor define esse que é o terceiro EP e o quinto trabalho lançado por Otavio Castro. Afinal, Dale! engana ao oferecer a ideia de que suas seis faixas possuem a mesma base rítmica. É fato que o samba é a identidade-cerne da sonoridade do trabalho, mas ela vem acompanhada de muitos outros elementos.
A melancolia e o torpor são outras texturas muito propagadas pela melodia criada por Castro, fatores que muito se devem à intensa exploração da sonoridade das gaitas cromática e diatônica. Esses são os sentimentos que se posicionam no topo da percepção até Pulse. Daí em diante, uma nova perspectiva é proposta.
Apesar de Altar ser uma faixa transitória, nela já se percebe que a alegria e o swing começam a dominar o ambiente de maneira a trazer ao ouvinte novos ritmos que não somente o samba e o folk. A partir da faixa, o R&B, a bossa nova e o jazz passam a entregar suas cores à paleta usada na criação do quadro tátil que é Dale!.
Como um EP que explora sensações, Cesar Santos fez um notável trabalho em sua mixagem, tendo seu indiscutível ápice em Altar, momento em que fez do vocal ao mesmo tempo em que um corpo único, uma camada saliente do instrumental. É como se houvesse, no final da música, uma camada astral que se pronuncia perante a melodia.
Comunicando todas essas percepções, vem a arte de capa. Assinada por Paulo Prot, ela mistura noções de fluidez, de fúria, de tensão e de leveza. A ave, ao centro, imprime a ideia de liberdade enquanto o vermelho que a circunda funciona como um alerta engolido pela fluidez do azul do quarto plano. Como a água, essa quarta camada comunica não apenas a fluidez propriamente dita, mas também a maleabilidade e o incerto.
Lançado em 07 de janeiro de 2022 de maneira independente, Dale! é um EP instrumental de intensa melancolia, mas que traz texturas surpreendentemente amplas. Um trabalho que explora as noções de liberdade, alegria e torpor. Um trabalho que cada nota representa um estado de espírito.