NOTA DO CRÍTICO
Pouco menos de dois anos desde seu anúncio oficial no mercado da música com Apenas, seu disco de estúdio de estreia, o quarteto catarinense UmQuarto divulga o segundo capítulo de sua discografia. Intitulado O Meio Do Caminho, o material foi gravado durante oito dias de isolamento em um sítio de Angelina, cidade da serra catarinense.
É como um andar sorrateiro, mas amaciadamente debochado. Em meio ao silêncio, o baixo de Mayer Soares surge abrindo as linhas melódicas a passos trotantes e encorpadamente graves que dão uma singela noção de swing. Em seguida, a bateria de Henrique Recidive surge com um bumbo preciso entregando uma singela pressão e o início da cadência rítmica da canção que se encontra em processo de despertar. Entre rugidos ácidos distantes vindos da distorção do órgão de Bezão, algo que funciona como raios de clarões sintéticos em meio à escuridão cuja presença, curiosamente, traz uma espécie de provocação sensual, os elementos que constroem o compasso vão aumentando conforme golpes secos dos tons são ouvidos inserindo novas texturas. Depois que uma contagem crescente surge ao longe, Enquanto O Salib Não Chega entra em seu ápice com uma melodia de base ácida, mas cuja melodia consegue misturar tanto referências despropositadas a Lulu Santos e ao Foo Fighters com uma receita formada por psicodelia e pitadas de um amornado rock alternativo graças à sincronia entre baixo-bateria-guitarra. Enquanto O Salib Não Chega é um prelúdio instrumental que já traz muito do que esperar, de início, do que encontrar O Meio Do Caminho. Maciez, swing, psicodelia e sintonia rítmico-melódica. Os próximos capítulos serão surpresas, mas o abre-alas em forma de jam session Enquanto O Salib Não Chega já traz um cardápio de sabores satisfatórios.
Puxada por um golpe seco e estridente na caixa, a melodia que se vê no horizonte é macia e educadamente swingada cujos rompantes bojudos do baixo em momentos precisos da introdução rememoram, curiosamente, aquele gozo agonizante da guitarra de Kurt Cobain audível no final da ponte entre o refrão e a segunda metade de Smells Like Teen Spirit. Ainda assim, quando Soares traz sua habilidade no canto, a canção ganha doses de frescor e suavidade com seu timbre gélido e sutilmente grave. Com notas agudas que conferem à melodia aromas embrionariamente florais, a melodia vocal do cantor insere nova noção de contágio e fecha o escopo sonoro da música. Na forma de um rock alternativo com traços indies, O Segundo Instante é como o dialogar sobre o ciclo da vida dando ênfase à vida e à morte. Nesse aspecto, existe um conceito que aborda a rapidez do tempo como uma armadilha para a falta de valorização dos pequenos momentos. Contudo, é inegável que a mensagem principal de O Segundo Instante é em relação ao destino, que, como a própria música destaca, ninguém pode enfrentar.
Enquanto a bateria entra com um groove repicado que, por si só, já desfila texturas que deixam o ritmo contagiante, a guitarra vem com um riff de movimento ondulante que exala uma noção de embriaguez quase hipnótica. Com o baixo dando sustentação a esse devaneio entorpecido, E O Que Há De Ser (Será O Que For) tem uma veia melancólica em seu caminhar desolado completo por um backing vocal que, oferecido por Bezão, amplifica o tom embrionariamente sofrido de Soares. De ápice melódico com uma evidente crescente harmônica em seu cerne ácido, E O Que Há De Ser (Será O Que For) apresenta um indivíduo na angústia da busca pelo autoconhecimento. Ainda que dialogando sobre intolerância e manipulação religiosas, a faixa é um produto que chama a atenção para um estado de censura da própria identidade, que fica constantemente trancafiada no interior de cada pessoa apenas esperando o momento para ser exposta. Enquanto isso, é preciso assumir o enquadramento social e ser apenas mais um na multidão, com os mesmos padrões de vestuário, gostos e hábitos. Engana-se, porém, quem pensa que a canção não guarda boas surpresas. Conforme vai chegando ao seu derradeiro fim, E O Que Há De Ser (Será O Que For) atinge seu ápice harmônico com a entrega, também de Bezão, em sua interpretação suplicante que divide espaço com um lap steel suavizante, mas cujo solo de guitarra de Marcelo Mayer, dá ainda mais voz e forma ao tom suplicante com seus dedilhares psicodelicamente ácidos.
O violão solitário e cabisbaixo fornece um clima melancólico com aroma de sertão. Como um canavial exposto a um céu acinzentado e de chuva fina, o timbre grave e lamentoso de Rafael Salib invade o ambiente com um enredo penetrante sobre um indivíduo cuja vida foi retirada de seu controle prematuramente. A convivência com o luto, com a dor da perda e a briga com a fé são fatores que preenchem Infinita Existência, uma faixa de introdução minimalista que evolui para uma atmosfera chorosa e lancinante que tem nos violinos inseridos pelo sintetizador os idealizadores da dramaticidade melódica. O choro, a raiva e a desilusão passam a ser muito bem representados quando a sonoridade de Infinita Existência atinge sua plenitude em tons explosivamente entorpecidos a partir de seus tons suavemente estridentes. Apesar de mórbida, sombria e soturna, Infinita Existência tem, por meio de sua conjuntura lírico-melódica, a capacidade de ser um importante chamariz de O Meio Do Caminho.
Uma nova contagem crescente é ouvida ao fundo indicando o tempo rítmico da canção que se inicia como um pôr do Sol veranista visível no horizonte do mar. Entre acidez e frescor, a canção vai se firmando como um dueto surpreendentemente harmônico entre Soares, Rafael Nogueira e Salib, cuja estrutura relembra a química existente entre Frejat e Cazuza no Barão Vermelho. Com rompantes nauseantes, Carta Para Seus Pais é uma bela canção que mostra a influência de um filho na vida dos pais. Nesse aspecto, o UmQuarto mistura confiança, foco, predestinação, imponência e autenticidade como qualidades passadas dos criadores ao criado. Tendo na última estrofe os versos mais decisivos de tal enredo, Carta Para Seus Pais termina mostrando a identidade do filho formada através do legado deixado pelos pais. Uma amaciada canção de um rock nacional com aromas dos idos anos 80.
A chuva molha a mata e faz os galhos secos estalarem ao contato com o mínimo de umidade. Quase como se fosse um cântico candomblezeiro, o amaciar do violão em contato com o sobrevoo vocálico e suave Nogueira dá à introdução um caráter de frescor puramente sensitivo. Respaldado pelos backings de Soares, Nogueira faz com que as linhas líricas maturem a noção transcendental que transpassa os conceitos melódico e harmônico da canção. É assim que Toda Vez, uma canção de estética minimalista calcada entre voz e violão, enaltece o amor recíproco e incondicional entre duas pessoas. Uma canção curta, mas de romance nobre e contagiante que a torna tal como um interlúdio pacificante e reenergizante.
O groove que nasce de uma bateria solitária na introdução logo remete àquela frase desenhada por Nicko McBrain no amanhecer de The Priosioner, single do Iron Maiden. Evoluindo para um ambiente embebido em um dobro de acidez, que aqui é devido à intersecção do riff da guitarra com as notas do órgão, O Elasmotério mantém seus diálogos sonoros enfáticos enquanto cai quase como em queda livre perante o conceito da psicodelia. Entre falsetes viscerais metálicos que rememoram o icônico timbre de Ozzy Osbourne, Soares, na função de voz principal, faz de O Elasmotério uma reflexão sobre cobiça e ambição, qualidades que, não importa o volume de bens que possa acumular, na hora da morte, tudo volta à estaca zero. Depois de um solo explosivo, de caráter ácido e surpreendentemente sensual que inclui na receita melódica pitadas de hard rock, O Elasmotério ainda cai em um vão de calmaria, um torpor confortavelmente macio oferecido por um piano suave de Diego Stecanela que dá, ao ouvinte, a chance de retomar o fôlego.
Respaldado por um compasso simples e bojudo do baixo de Lucas de Sá, a bateria repicada traz um ritmo percussivo contagiante com a adesão dos tilintares do pandeiro. Trazendo um sonar agudo de acidez embrionária vindo do órgão, algo que funciona como um perfeito amanhecer com um Sol se evidenciando timidamente por detrás das montanhas, a canção entra no seu último estágio introdutório com uma sonoridade comportadamente explosiva que evidencia a sincronia melódica entre as guitarras de Salib e Thiago Mordentte. Entrando em um estado explosivo-linear, Mudanças surge com a narrativa sendo executada por uma voz de timbre ainda mais grave, que insere texturas que levantam o cardápio sonoro-sensorial da faixa. É Bezão que agora, além do órgão, domina o microfone e traz ao ouvinte uma história que parece tangenciar com aquela fornecida em O Elasmotério. Afinal, o personagem aqui descrito era um indivíduo de vida ganha, mas que, por um súbito do destino, perdeu tudo. Aí vieram todas as confusões mentais que, entre reflexões profundas e sentimentos ambivalentes, se perdeu de si. Mudanças é a transformação bruta de paradigmas através de uma adaptação mal calculada. Não à toa que o verso que fica marcado na mente do ouvinte é “agora se fala de um ‘não é mais você’”.
O cenário é árido, mas curiosamente agraciado por ventos gélidos que trazem notícias de um caos não muito distante. Tendo no violão o responsável por entregar uma embrionária dissonância propositadamente desconfortante, a linearidade melódica introdutória se divide entre o protagonismo da acidez da guitarra com o embriagar nauseante e psicodélico do órgão, enquanto Soares e Salib se dividem perante uma narrativa macia, mas de caráter entorpecidamente hipnótico. Atingindo seu ápice com uma harmonia tocante e levemente dramática graças ao sobrevoo macio dos violinos de Juliana Schmidt, A Epifania Do Pássaro Azul tem gosto e aroma de metamorfose. Misturando referências completamente indiretas e despropositadas em relação a Dead Hearts (Love Thy Enemy), faixa de Dee Snider feat. Alissa White-Gluz por conta da ambiência harmônico-melódica do refrão e com a atmosfera ácida-enigimática introdutória de Hitchin A Ride, single do Green Day, A Epifania Do Pássaro Azul é uma obra melodramática que apresenta um personagem enfrentando sua própria maturidade. Depois de um solo bem trabalhado de caráter folk graças a participação imprescindível dos violinos, A Epifania Do Pássaro Azul surpreende por proporcionar um cenário instrumental amplamente teatral, cujas únicas e pontuais notas do piano de João Rocchetti servem para dar texturas suavemente agudas ao caos dissonante que leva O Meio Do Caminho ao seu derradeiro fim.
Interessante ver a capacidade de quatro mentes diferentes em conseguir fundir frescor, maciez e acidez em um mesmo ambiente sem danificar o escopo rítmico-melódico sensorial. Isso foi o que o UmQuarto garantiu com O Meio Do Caminho, um material psicodélico-brasileiro cujo dever é discutir o eu e refletir sobre as atitudes tomadas ao longo da vida.
Não muito distante de um viés construtivista, o álbum se divide entre melancolias e embrionárias alegrias para fazer o ouvinte pensar sua relação com o tempo e seus próprios comportamentos. A força do destino, a interferência do legado na formação da identidade e a autoconfiança para se destacar em meio à multidão para não ser apenas mais um comandado são outros aspectos bem abordados no álbum.
Podendo dizer que O Meio Do Caminho propõe um novo olhar sobre a MPB clássica, o UmQuarto conseguiu misturar densidade, delicadeza, precisão e frescor em cada um de seus nove capítulos. E a troca de vocalistas foi, de certa forma, imprescindível para, além de permitir essa miscelânea de sensações, oferecer diferentes texturas que auxiliaram na ampliação da harmonia.
Nesse quesito, apesar de ter demasiados artifícios de sonares sintéticos, Infinita Existência, com sua proposta provocantemente mórbida e desolada para tratar do luto, é um grande prato nessa requintada refeição que é O Meio Do Caminho. Isso é possível, também, pela equipe técnica que construiu a coxia estética do que veio a ser o segundo material do quarteto catarinense.
Felippe Pompeo e Sá, se dividindo entre as partes musical e estrutural do álbum, conseguiram, cada um em suas funções, imprimir a essência do UmQuarto. Na produção, Pompeo frisou o experimentalismo, o frescor e a suavidade ácida com que o grupo escolheu tratar os assuntos da vida.
Na mixagem, por sua vez, Sá proporcionou um som cristalino em que o ouvinte consegue degustar tranquilamente os sabores da psicodelia, do rock alternativo, do hard rock e de uma influência quase escondida da MPB na modernização do rock nacional oitentista. Tais fatores mostraram, inclusive, a musicalidade e até mesmo a versatilidade com que os músicos constroem seus ambientes.
Fechando o escopo técnico do O Meio Do Caminho, vem a arte de capa. Assinada por Manu d’Eça, ela consiste em uma fotografia da parte superior de uma residência. A captura em questão encarna e frisa o conceito do meio como um elo entre passado e futuro, a normalidade e a metamorfose graças à simetria com que as duas janelas estão posicionadas. Porém, enquanto uma se encontra aberta e a outra fechada, o que a fotografia comunica é o caminho para a introspecção para, do autoconhecimento, se reapresentar ao mundo.
Lançado em 23 de agosto de 2023 de maneira independente, O Meio Do Caminho surge como um álbum que, respaldado por uma psicodelia abrasileirada, fresca e sensual, trata de questões da vida com notável seriedade, mas sem ser insensível. Delicado em suas abordagens, o que o álbum traz é a intenção do UmQuarto em fazer o ouvinte repensar e transformar a maneira como trata, usa e participa da arte de viver.