NOTA DO CRÍTICO
Chegando pouco mais de um ano após o anúncio de The Limit Of Thrash, seu primeiro EP, o Sacrifix enfim libera seu segundo disco de estúdio e sucessor de World Decay 19. Composto e gravado no primeiro semestre de 2022, o intitulado Killing Machine surge com a proposta de ter temáticas líricas mais diversificadas em relação ao seu antecessor.
A guitara de Frank Gasparotto vem melodramática, sofrida, chorosa. Apesar disso, a sua dor vem embebida em uma racionalidade imponente focada em buscar a superação com requintes de maturidade, traços bem desenhados pelas explosões grave-estridentes do baixo de Kexo. Com a precisão e densidade com que a bateria de Gustavo Piza molda o ritmo, a canção, com seu ar de delicado, mas de intenso torpor soturno, acaba exalando uma estrutura melódica que flerta com o power metal e um heavy metal de grande semelhança ao feito pelo Iron Maiden. Eis que, após o agonizar das guitarras em seus gritos agudos, o que antes era uma conjuntura de lágrimas nomeada Age Of Doom, agora assume uma feição raivosa e de cenhos bem pressionados. Entre a agressividade áspera das guitarras, a corpulência estridente do baixo e a força do ricochetear da bateria, o ouvinte se depara com um thrash metal que transpira revolta. Rememorando os tempos áureos do Metallica, Killing Machine é narrada por um timbre ácido, rasgado, mas seco e rápido. É Gasparotto agora inserindo notas de azedume a uma canção que relata um mundo distópico, caótico e governado por uma figura do submundo que se alimenta do sangue, da dor e da humilhação do outro. É como a sonorização que representa a personificação da morte: inevitável, literal, fria e calculista.
Súbita, rápida e com um deboche atordoante. Diferente da canção anterior, que tudo se construiu de maneira macia e gradativa, a presente faixa já amanhece em um punch libidinosamente agonizante em que a guitarra solo goza de sua virilidade em suas frases que mesclam o hard rock com o heavy metal. Brutalmente provocante, a introdução é marcante pela sua base repleta de pressão desdenhada por incessantes cavalgares vindos do bumbo duplo até que, tal como aconteceu com Age Of Doom/Killing Machine, um grito final indica a mudança do enredo. Retomando o thrash metal ácido e azedo, Gasparotto agora surge entre uma rouquidão que lembra o timbre típico de Lemmy Kilmister e seu ar azedo padrão. Guided By God, com sua intensidade ríspida, é uma música que faz uma curiosa brincadeira. Enquanto na canção anterior a figura da morte foi até mesmo verbalizada em seus instintos carniceiros e canibalescos, Guided By God, ao mesmo tempo que propõe a libertação envolvendo o comodismo da ideia de que com a fé tudo é perdoado, ela traz a figura de Deus como um ser onipresente e autoritário que mostra a sua ira a todos que a ele se opõem. Por isso, Guided By God, com um segundo solo atordoante, desesperado e arredio iniciado por Marco Nunes, traz questões semelhantes às que Myles Kennedy inseriu em ABIII, álbum do Alter Bridge, que são os questionamentos da fé e sua validade.
De início apresentando uma melodia que muito lembra aquela de Sad But True, single do Metallica, a presente canção já amanhece com um punch azedo e ricocheteante. Agressiva em sua aspereza incontrolável, a canção, bem como Guided By God, flerta com a sonoridade do death metal enquanto se matura como um produto intenso e sujo. Cheia de pedais duplos inserindo uma cadência trotante e precisa na base melódica, Reality Is Lost é uma crítica não só ao conglomerado capitalista, mas à cultura empresarial de enxergar o funcionário como um número, uma máquina, e não um ser humano. A essa frieza e falta de empatia, o Sacrifix expõe sua visão de que o corporacionalismo manipula seus discípulos a ponto de fazê-los se esquecer de quem são para assumir as verdades da mãe-industrial.
É um misto de gozo e agonia. Ou melhor, é um prazer agonizante. É com um gemido de tal característica que a guitarra solo recebe o ouvinte no novo cenário. De base suja e áspera em sua proposta de fusão entre hard rock e thrash metal, a canção acaba evoluindo para um segundo trecho introdutório que soa, inicialmente, como um aviso e, posteriormente, como a execução de uma marcha fúnebre que, aqui, não tem drama, mas, sim, cinismo. Transpirando estridência e aspereza, seu calor é intenso e fatalístico como meteoros anunciando o fim. Não à toa que Gasparotto entra com uma voz endemoniada como a de um elfo mortífero, fazendo de March To Kill a revelia de um indivíduo traído pelos seus iguais. O retrato de como a passividade pode ser prejudicial para o senso comunitário.
A guitarra solo, com seus movimentos rápidos e circulares, é como um pêndulo se movimentando de um lado para o outro no intuito de hipnotizar o ouvinte. Ao fundo, a guitarra base vem em breves rugidos vindos de trás dos rochedos, como um predador à espreita prestes a capturar sua presa. Enquanto os golpes surdos e secos da bateria junto ao baixo são proferidos, observa-se um indivíduo ensanguentado sendo carregado por entre o chão de terra. Quando, num súbito, a melodia entra em uma aceleração constante, um ritmo trotante e uma melodia agressiva, o death metal e o hardcore passam a figurar na receita sonora de Ancient Aggression junto ao thrash. Entre texturas de um azedo impregnante e uma aspereza cortante, a faixa se atém ao fato de que existem pessoas que impedem o progresso social e espiritual do planeta. Tidos como pecadores, esses indivíduos são como entregadores da morte rondando a superfície em busca de luxúria e lascividade. Algo que deve ser extirpado para a manutenção do progresso.
Sem chorumelas e sem qualquer senso de preservação, a canção já tem seu início em um rompante sincopado, grave, estridente e sujo. Entre o hardcore e o thrash metal, a melodia se faz precisa, mas também áspera e intensa em sua essência lancinante. Entre o emprego do bumbo duplo no final de cada frase, com seu trote seco, timbres rasgados e de tom gutural dividem a cena por um novo intérprete. Murillo Leite, transfigurado como um ser das sombras vindo avisar o inevitável, transforma Raped Democracy, como o próprio nome sugere, a uma ferrenha crítica ao modelo capitalista. Trazido como algo fortalecido através do interesse único no lucro e na manipulação de seus leais e cegos servos, a canção chega até a se encaixar, inclusive, com o mesmo rechaço de Reality Is Lost. Sua braveza é encerrada por um solo que, executado por Maurício Amaral, representa a raiva e a absurdez com relação à forma como o capitalismo é executado, uma maneira capaz de fazer com que o solo soe, inclusive, como um agonizar regurgitante.
Seu andamento é lento, sombrio, grave e rastejante. Introduzindo o doom metal no caldeirão sonoro de Killing Machine, Dark Zone apresenta um cenário caótico, mas não de guerras ou confrontos. Um cenário permiano, ácido, seco e árido se forma até que eclode em jatos raivosos de lava por todo seu ecossistema. Junto ao desespero de uma bateria calculista, as guitarras trazem suas silhuetas agressivas que, em Dark Zone, dão embasamento para um discurso reprimindo a falsidade e evidenciando o rancor apresentado sob vestes beáticas. De outro lado, Dark Zone pode simbolizar, inclusive, as tentativas de um indivíduo em esconder suas fragilidades emocionais para não comunicar estar passando por um período conturbado. A zona escura, nesse sentido, é simplesmente o acesso, sem devolução, da depressão.
Não há tempo de pensar. Ela, assim como Raped Democracy, se inicia em um punch. Dando ênfase ao azedume metralhante, a melodia que se matura é a de um thrash metal de cadência mediana, mas calcada na típica técnica tremulo picking. Com grande familiaridade estética com Painkiller, single do Judas Priest, graças principalmente à forma como a voz de Gasparotto ressoa em seu tom agudo e azedo, Thrash Again é uma faixa que flerta inclusive com a ambiência lo-fi por conta do intenso efeito de chiado proporcionado pela abertura do chimbal. De todo Killing Machine, Thrash Again é a canção de cunho mais agressivo, mais arisco, mais arredio e mais sanguinário. Dentro de todo seu aspecto de intensa sede por sangue, a canção, bem como Raped Democracy e Reality Is Lost, possui uma essência de crítica ao sistema político. Incitando a anarquia disfarçada de uma liberdade de expressão, Thrash Again é a perfeita veneração à Satanás que é encerrada por um solo atordoante em sua alucinação libidinosa.
Relampejante. Trevosa. Obscura. O rugido rasgado de Gasparotto é como o despertar de uma figura bestial em meio às grutas insalubres e escuras. Fazendo o coração do ouvinte borbulhar, pulsar e saltar até a boca com o seu ritmo intensamente trotante graças ao incessante uso de pedal duplo, Rotten é a de melodia mais bruta. Suja e estridente, ela transpira desespero ao trazer um êxodo regido pela agonia e pelo medo. Seguindo o mesmo caminho de Raped Democracy, Reality Is Lost e Thrash Again, Rotten tem um viés político, mas aqui a crítica recai sobre o descaso sistêmico em relação à sociedade como um todo e sobre a ganância. É a insanidade alimentada pela sede por poder. O lado podre de qualquer dirigente de nação.
Ele é como a sombra. Como um rugido ecoando em meio à escuridão abissal. É como a poeira asfixiando o ouvinte enquanto um ser bestial saliva ao primeiro aroma de sangue. É como o clarão do relâmpago rompendo o breu da noite. Killing Machine apresenta um Sacrifix cheio de raiva, insanidade e fome de sangue em seus rompantes de rechaço político.
Mantendo o azedume, a aspereza, a acidez e a estridência padrões do som do trio, o álbum é majoritariamente rápido, intenso e sanguinário. Ainda assim, é curioso como o grupo se apoia na obscuridade lascivo-lancinante para incitar o ouvinte a pensar sobre questões da mente, da fé, da sociedade e sobre o sistema político de uma forma profundamente cavalar.
Para dar peso e consistência a essas propostas de diálogo, o Sacrifix recrutou Nunes para a função da mixagem. Com ele, Killing Machine não apenas evidencia a maturidade do grupo, mas mostra, inclusive, um aperfeiçoamento em sua veia thrash metal. Afinal, junto a esse subgênero, o álbum traz uma receita sonora que compreende o hard rock, o hardcore, o doom metal, o death metal, o heavy metal e, inclusive, o power metal.
Encerrando o escopo técnico vem a arte de capa. Assinada por Alcides Burn, ela traz traços e uma paisagem urbano-caótica muito semelhantes àquela feita por Márcio Aranha usada para estampar World Decay 19. Sombria e quase apocalíptica, a obra de Burn chama a atenção por trazer uma máquina em feição ciborguemente cadavérica de maneira a incitar a discussão sobre a presença da tecnologia na sociedade, com especial menção à inteligência artificial. E aqui, o robô é trazido como um inimigo comum e invencível.
Lançado em 19 de agosto de 2023 de maneira independente, Killing Machine é um produto que realça a maturidade do Sacrifix e a forma consciente com que trata de questões mais subjetivas, como enfermidades da mente e doenças sociais. No disco, o ouvinte é convidado a imergir no submundo para pensar, entre texturas dos mais variados excessos, sobre o caminho da sociedade em meio a sistemas políticos carniceiros e manipuladores.