Myles Kennedy - The Ides Of March

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Desde o lançamento de Year Of The Tiger, muito se especulou a respeito de um segundo disco solo. Pouco depois, campanhas e postagens em suas redes sociais indicavam que o projeto poderia realmente ganhar um segundo capítulo. Fugindo do viés biográfico, mas imergindo em um ambiente humanitário e atual, Myles Kennedy enfim anuncia The Ides Of March, seu segundo disco de estúdio solo.


É como uma queima de fogos. Uma queima de fogos iniciada em um pôr do sol. Um pôr do sol com tonalidades mistas de rosa e um amarelo alaranjado. Vivo. Alegre. A guitarra grita, mas sem alarde. O baixo, ao seu lado, cria um compasso groovado, preciso e conciso tal como aquele desenhado por Cliff Williams nas canções do AC/DC. Em meio a tudo isso, uma voz monossilábica ecoa como um sopro de vento ululante. Essa é a ambientação de Get Along, uma música de essência rítmica miscigenada. Nela há hard rock, há blues. Por outro lado, há também toques do rock alternativo e flertes com o metal proporcionados pela frase da guitarra que liga a introdução ao primeiro verso. Contagiante e melódica, a canção apresenta um lirismo consciente que discute uma sociedade cômoda ante as diversas chances de mudança. Nesse ponto, é quase como se o eu-lírico fosse um personagem onipresente, uma divindade que vê com pesar o que está acontecendo tanto com o planeta quanto com a população. Ele clama por mudança e clama para que as pessoas não tenham desperdiçado as oportunidades para tal, interpretação nítida em frases como “Please don't tell me that it's over. It breaks my heart I fear we'll never make amends”. Outro ponto importante de ser posto é que a canção foi construída com divisões rítmicas e melódicas bem definidas. Enquanto os versos caminham por uma estrutura calcada em um minimalismo acústico, o refrão parte para uma explosão de fundo melancólico. 


Existe uma mescla de folk com surf music. Esse misto faz formar como reflexo nos olhos do ouvinte um horizonte banhado por um sol de iluminação poente e calor ameno. A brisa morna pode ser sentida banhando os rostos do espectador, os quais se veem seduzidos pelo compasso proporcionado pela bateria de bumbos firmes e o time de cordas. Surpreendentemente, o que se percebe no primeiro verso é que Zia Uddin criou um groove de bateria repicado no compasso 3x4. Como uma canção metafórica sobre a morte e o sentimento misto de desproteção e insegurança, existe em A Thousand Words traços de uma narrativa autobiográfica que pedem dramaticidade, mesmo que sutil. E nesse aspecto, Myles Kennedy introduziu sobrevoos de notas aveludadas e ululantes de lap steel.


Os golpes uníssonos da bateria e da guitarra oferecem ao ouvinte uma paisagem familiar. A estrutura aqui desenhada proporciona um parentesco singelo com aquela criada na introdução de Driving Rain, single de Slash ft. Myles Kennedy & The Conspirators. Conforme a canção evolui, essa semelhança diminui gradativamente. Afinal, o flerte acentuado com o country dá encontros quase insensíveis com o universo folk e abraça alegremente o blues como regente. A guitarra grita de maneira controlada em meio ao explosivo groove da bateria. E quando a introdução dá passagem para o primeiro verso, uma surpresa agradável. In Stride acaba imergindo em um universo de melodia contagiante e sincopada. Uma perfeita sinergia country blues ao estilo ZZ Top. No que tange o lirismo, a frase "You can bitch about the sign of the times, but the truth is that you gotta decide" diz por si só. É sobre o convívio com as fake news e a maneira como a sociedade lida com elas. Ao mesmo tempo, porém, essa mesma letra é imersa em uma estética capaz de atrair as massas a partir da cadência vocal e de frases recheadas de rimas aliterantes. Aqui mora um êxito lírico por parte de Myles Kennedy, afinal, são poucos os cantores que inserem rimas aliterantes na estrutura da letra.


Pé no freio. Aquela exacerbação melódica e sonora cai para um mundo minimalista, de tom reflexivo e pensativo. As notas do violão acabam formando uma melodia semelhante àquela criada por Jimmy Page na introdução de Stairway to Heaven, icônico single do Led Zeppelin. O vocal sussurrado de Kennedy cria uma noção dramática que tempera a canção com ares reflexivos e lampejos de uma melancolia indescritível. De repente, o ouvinte se assusta. Guitarra e bateria se unem em um uníssono para chamar a atenção do ouvinte durante a ponte transitória entre a introdução e o primeiro verso. É a partir de uma crescente dos golpes de bateria que a intro enfim se encerra e o verso se inicia. E nesse momento, mora mais uma surpresa feliz. A musicalidade, a partir do groove desenhado por Uddin, ganha fortes contornos de música espanhola e no que se refere à voz, ela assume imponência ao se expor de maneira aveludada. Junto a tudo isso, existe uma cama rítmica que mistura elementos latinos distribuídos através das notas agudas do banjo e do groove encorpado do baixo de Tim Tournier. O ponto alto, porém, é quando chega o refrão, momento em que Kennedy lança ao vento questões sobre a essência do ser humano. Exemplo forte disso é o questionamento “So much is changing, who we are, what we are”. Essa paleta de cores infindáveis é a faixa-título.


Uma sonoridade tal como se estivesse ouvindo um rádio stereo se apresenta. Esse som fundo subitamente assume a dianteira e amplifica sua força. Antes, uma estética indie. Agora, uma estrutura encrustada no rock alternativo. Distorcida, a guitarra ali presente possui uma afinação que tangencia o dramático com uma agressividade inerte. O curioso é que, passado esse cenário, a melodia se torna controlada e guiada apenas pela bateria e seu groove levemente acelerado, o qual serve de cama para um violão de estrutura linear. Toda essa dicotomia, enfim, ganha um propósito no pré-refrão e no refrão. Afinal, é neles que se percebe que Wake Me When It’s Over reafirma o caráter social de The Ides Of March, pois aqui parece que Kennedy, se utilizando de estruturas com coro e sobreposições vocais, representa, com frases como “You can wake me when it’s over, when a nightmare finds the end”, o anseio da população global pelo fim da pandemia.


Leveza e sutileza. É como se fosse possível enxergar as cores ainda inominadas bailando entre si em um nascer do Sol de tons crepusculares. Isso é beleza. E beleza é o que as notas do violão postas em um quadro pintado por Kennedy proporcionam. A melodia criada, mesmo que nos segundos iniciais, é capaz de gerar arrepios e criar lágrimas nos olhos. Acompanhado dessa harmonia singela e única construída pelo violão vem uma voz de veludo. Limpa, clara e em linha com o blues. Essa roupagem que exala uma beleza rítmica heterogênea com o que já foi apresentada em The Ides Of March apresenta um lirismo que parece retratar da fé e da forma como ela é capaz de alentar o sofrimento das pessoas. Vindo de Kennedy, esse é um tema curioso. Até porque, toda a temática lírica escrita por ele em ABIII, álbum do Alter Bridge, retratou a batalha entre o ceticismo e a religiosidade do cantor. Parece enfim que, com Love Rain Down, por meio do eu-lírico, Kennedy faz uma prece pedindo ajuda para suavizar os ímpetos mais ruidosos existentes no seu inconsciente. Essa prece se equipara em beleza com a melodia. Por isso, as frases “Let your love rain down” e “Let it wash away the sorrows I found” são repetidas pelo ouvinte de maneira automática pelo ouvinte e recebe ares de mantra. No que se trata da melodia, ela é linear e segue o propósito lírico ao emanar uma paleta com protagonismo do tom cinza e de um ambiente mais sombrio. Porém, quando a frase “There's a storm within my heart that needs you now” é cantada, é como se essa reza tivesse sido ouvida. Afinal, a aparição da guitarra funciona como raios de sol irrompendo as nuvens densas e escuras. Uma balada, ou melhor, um  single indubitavelmente notável que em seu caráter misto de religião e amor se equipara a Love Can Only Heal, single de Year Of The Tiger.


Cores de um tom amarelo alaranjado pairam pelo ambiente a partir da guitarra de riff ecoante que faz com que o espectador se distancie daquela energia melancólico-reflexiva instaurada pela faixa anterior. A estética entregue pelo instrumento lança luz ao country e o groove característico do gênero. A linha da bateria que segue é convidativa e estimula o ouvinte a bater palmas no compasso da batida. O instrumental, por sua vez, é linear e oferece uma melodia macia que é guiada por uma interpretação vocal que é tão estimulante quanto a própria marcação da bateria. Harmonicamente divertida, Tell Like It Is é aquela canção que questiona o negacionismo de parte da população em enxergar a verdadeira realidade e pede para que o real seja aceito.


A guitarra em riff aveludado e mole, apesar de pesaroso, caminha por entre tilintares agudos que funcionam como raiares de sol mornos em um amanhecer sereno. Essa conjuntura de elementos proporciona ao ouvinte visualizar um quadro de roupagem blues tradicional que, sutilmente, permite a lembrança da melodia introdutória de Starlight, single de Slash ft. Myles Kennedy & The Conspirators. Enfim é chegada Moonshot, a balada de The Ides Of March. Aqui, não apenas a cadência vocal adotada por Kennedy é contagiante, mas o sobrevoo do violão e a batida minimalista da bateria também o são. No que tange o lirismo, o tom analítico-reflexivo de certa forma se equipara ao de Love Rain Down, mas ao mesmo tempo se diferencia por conter um tom sutilmente nostálgico que aborda o ciclo da vida e a aceitação do destino que à população foi oferecido. Na harmonia há noções de um pesar, de um lamento. Ao mesmo tempo, a melodia explosiva do refrão e o lirismo nele encontrado ofertam esperança por dias melhores, por uma redenção. “If there's a last chance, then take my hand”, eis um pedido final, uma frase que ilustra o anseio para que seja mostrado que até mesmo no caos há solução.


Ao ouvir o riff do violão, de imediato o ouvinte já relembra a introdução de One Fine Day, faixa de Year Of The Tiger. A bateria vem para entregar cadência e movimento à melodia introdutória, a qual exala, em sua continuidade, uma essência folk. Aqui, o vocal impresso segue sendo suave e manso, tal como um mantra que instiga o ouvinte a fechar os olhos e apenas se atentar às vibrações por ele oferecidas. Wanderlust Begins é aquela canção que aborda a fluidez das coisas, a imprevisibilidade, mas também o instinto de liberdade do ser humano que foi barrado com a pandemia. Quanto a isso, Kennedy oferece um alento ao dizer “It’s gonna be alright again”.


Alegria e contágio. É isso o que a introdução de Sifting Through The Fire oferece. Continuando com maciez, a canção é encorpada por uma presença decisiva das linhas suculentas do baixo de Tournier e possui uma melodia mais complexa em relação às outras encontradas no disco. Afinal, aqui há mandolin e tilintares de teclado ofertados pelo também produtor do disco, Michael “Elvis” Baskette. Do lado lírico, a canção segue o conceito reflexivo sobre o momento enfrentado pelo planeta, algo anteriormente abordado no decorrer do álbum. Na presente faixa, especialmente, o que Kennedy sugere é uma atenção ao preceito da ação e reação. 


O blues da gema. Essa é a roupagem que, somente a partir da cadência vocal,  guia a melodia de Worried Mind, uma música de introdução e primeiro verso ritmicamente enxuta em elementos sonoros, mas cuja voz dá conta de ambos os escopos, da voz, do som e do contágio. O mais belo é notar que a faixa é um perfeito encerramento do ciclo oferecido por The Ides Of March. Afinal, o disco relata o conflito social emergido a partir da pandemia, oferece reflexões e análises dos mais diversos campos sociais. Mas aqui, em Worried Mind, o que Kennedy faz é oferecer conforto e tranquilidade ao expressar a mensagem de que todo esse caos irá passar. Basta ouvir calma e silenciosamente essas frases: “Don't be scared. Do not cry. Things will get better” e “Let me ease your worried mind”, respirar, secar as lágrimas, recobrar a esperança e seguir em frente.


O que The Ides Of March oferece é um lirismo reflexivo, analítico e pensador sobre a sociedade e sobre o momento enfrentado pelo planeta a partir da pandemia do Coronavírus. Deste lado, o álbum entra no time de álbuns pandêmicos composto por nomes como The Bitter Truth, World Decay 19, The Battle At The Garden’s Gate, Let The Bad Times Roll e In Another World.


Mas não apenas a pandemia foi tema central e base do lirismo de uma série de outras faixas. Há conteúdos que parecem ser autobiográficos, como acontece em faixas como A Thousand Words e até mesmo Love Rain Down, por exemplo. Isso amplifica o quesito emocional e sentimental perpassados ao ouvinte, que se vê intensamente tocado pelas mensagens presentes nas letras.


No que tange o ritmo e a melodia, o segundo disco de estúdio solo de Myles Kennedy recicla grande parte da ambientação folk criada em Year Of The Tiger, mas insere um acréscimo importante. Há no presente álbum uma intensa imersão no universo country blues, fusão que pode ser observada com clareza e nitidez em singles como In Stride e Tell Like It Is. E nesse aspecto, a roupagem majoritariamente adotada em The Ides Of March faz com que o álbum ande de mãos dadas com We’re All Somebody From Somewhere, primeiro álbum de estúdio solo de Steven Tyler.


É um trabalho árduo, mas a produção de Michael “Elvis” Baskette, companheiro de longa data de Kennedy e, além de produtor, considerado o quinto integrante do Alter Bridge, foi certeira. Ela conseguiu combinar os diferentes ritmos e mesclar conteúdos atuais com autobiográficos em uma sinergia harmônica que enaltece o poderio e competência de Myles Kennedy. Além disso, o exercício de Baskette capturou a química estruturada entre Kennedy, Uddin e Tournier, fator que parece estar funcionando. 


Lançado em 14 de maio de 2021 via Napalm Records, The Ides Of March é como Águas De Março, faixa conjunta de Elis Regina e Tom Jobim. É um trabalho de melodia suave, mas de um lirismo de peso reflexivo tamanho que faz qualquer um parar para pensar. 

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Sobre o crítico musical

Diego Pinheiro

Quase que despretensiosamente, começou a escrever críticas sobre músicas. 


Apaixonado e estudioso do Rock, transita pelos diversos gêneros musicais com muita versatilidade.


Requisitado por grandes gravadoras como Warner Music, Som Livre e Sony Music, Diego Pinheiro também iniciou carreira internacional escrevendo sobre bandas estrangeiras.