Myles Kennedy - The Art Of Letting Go

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Dois anos após o anúncio de The Ides Of March, Myles Kennedy retornou ao estúdio Barbosa, na Flórida, e iniciou os trabalhos de composição daquele que viria a ser seu terceiro álbum solo. Vendido como um material mais pesado e com som mais conduzido pela guitarra, The Art Of Letting Go enfim chega ao mercado.


Entre golpes ásperos e precisos na caixa, Zia Uddin propõe uma introdução pulsante que, rapidamente, é agraciada por uma guitarra de aspecto sensual em meio aos seus rebolares de essência bluesada e bucólica. Conseguindo fornecer uma atmosfera sertaneja, mas densamente solar, a atmosfera rítmico-melódica faz com que o ouvinte consiga sentir a gota de suor escorrer pela testa em virtude do calor escaldante do cenário árido do interior. O curioso, aqui, é notar que, enquanto a canção vai se tornando gradativamente metalizada, o baixo de Tim Tournier vai garantindo mais espaço e, consequentemente, importância no contexto da construção sonora. Com ele, a obra ganha corpo e consistência, possibilitando uma desenvoltura mais livre e explosiva. Nesse ínterim, os ‘heys’ proferidos por Myles Kennedy soam empostados de forma a, interessantemente, rememorar as técnicas vocais utilizadas por ele nos tempos de The Mayfield Four. Assim que entra em seu primeiro verso, a obra assume contornos sincopados, mas, ainda assim, sensuais e fluidos que atraem mais facilmente a atenção do ouvinte. Com um refrão harmonicamente amaciado e contagiante, a faixa-título vem com o intuito de ambientar o espectador em uma atmosfera que, aparentemente, será mais embebida no destaque às desenvolturas da guitarra como protagonista estrutural. Com essa aparente fórmula, a obra traz um lirismo que, ao mesmo tempo em que busca ensinar o espectador a arte da superação, ela soa como uma espécie de mentora perante esse processo. Um ser onipresente que, além de alertar, está acompanhando seu tutelado durante a viagem rumo o fortalecimento emocional e a capacidade de deixar o passado para trás. Não temer mudanças e deixar as águas rolarem são grandes importantes pontos no aprendizado referente à confiança tanto no tempo quanto no destino.


A guitarra slide já vem com uma acidez característica não apenas do southern rock, mas também do roots rock. De essência harmonicamente sertaneja, ela traz uma movimentação amaciadamente trotante, enquanto a bateria vai produzindo uma embrionária cadência rítmica com pontuais explosões para ampliar, momentaneamente, a pressão da primeira parte da introdução. É então que a canção entra na segunda parte de seu amanhecer. Mostrando uma essência mais metalizada e levemente suja regida por riffs graves e de toques azedos, ela é agraciada por uma guitarra uivante que se sobressai perante o cenário repicado. Dessa forma, a canção consegue mostrar Kennedy transitando entre seus tons vocais aveludados e acres sempre de forma aberta e audivelmente compreensível. Conforme vai entrando rumo ao refrão, Say What You Will vai se tornando melodicamente provocante até que, ao atingir o seu ápice, fica contagiante em sua explosão melódica que mistura ingredientes do hard rock, do folk e do já citado root. É inclusive no refrão que o espectador consegue ouvir com clareza a contribuição do baixo na melodia. Consistente e preciso em sua linearidade estética, ele entrega precisão à base melódica. É assim que Say What You Will acaba dialogando sobre uma sociedade refém do julgamento alheio. Reforçando e incentivando o ouvinte a assumir o que deseja assumir e ser quem deseja ser, a canção ainda lança luz à ideia de que essas opiniões negativas servem, acima de tudo, para esconder a inveja sentida em relação àqueles que têm coragem de seguir a própria essência. E o ponto alto da canção é o seu tom de deboche como forma de dizer que nenhum tipo de achismo é capaz de abalar o personagem lírico. Não à toa que, portanto, a música traz um senso de atualidade e motivação em suas entrelinhas.


Enquanto a guitarra desfila uma espécie de sensualidade de essência curiosamente interiorana, mas sem esconder sua base blues-folk, o baixo é ouvido por entre punchs secos e pontuais fornecendo instantes de consistência melódica que soam como trovões censurados. Melodicamente solar e saliente, a introdução não demora em levar o ouvinte para uma segunda etapa. Explosiva e sincopada, ela vai gradativamente se maturando com uma energia que parece ser de uma festividade em prol do agradecimento de algo ainda enigmático. Alegre e estimulante no que tange um senso motivacional, Mr. Downside é onde se evidencia a verdade perante as escolhas feitas ao longo da vida. Afinal, são elas que definem o caminho que o indivíduo irá trilhar. A partir delas, é possível encontrar motivação, senso de pertencimento e, principalmente, propósito. Desse ponto, o ouvinte pode perfeitamente ter Mr. Downside como um hino contra a melancolia e uma injeção de ânimo para com a vida a tal ponto que se faz possível enxergar, no novo amanhecer, mais uma oportunidade de viver e aproveitar cada momento. 


O que se tem já na introdução imediata é um torpor oferecido por uma densa camada de frescor nostálgico trazido pela maneira como a guitarra se apresenta. Acompanhada por entre punchs pontuais trazidos pela bateria, a qual se movimenta de maneira macia através de seu chimbal aberto, a guitarra acaba sendo a alma do amanhecer. Afinal, ela, por si só, consegue inserir todo o sentimentalismo proposto, ao menos, no despertar da presente faixa. O curioso, nesse aspecto, é que o instrumento é capaz de inserir, também, aromas curiosamente bucólicos que engrandecem, de maneira branda, a atmosfera. É aí que Kennedy entra com seu timbre aveludado preenchendo as camadas líricas. Por meio de uma performance delicada, o cantor é capaz de fazer transpirar das palavras cantadas uma sensação tocante de saudosismo que se encontra embrenhada nas arestas de um coração ferido. Curiosamente, assim que entra no refrão, a presente faixa acaba desfilando uma estrutura rítmico-melódica que acaba rememorando aquela estruturada em My Champion, single do Alter Bridge. Ainda que isso aconteça, Miss You When Your Gone chama a atenção, em definitivo, pela sua delicadeza estética e pelo seu ambiente sensorial interessantemente campestre que acompanha o personagem rumo à conquista de uma superação desesperada de um passado incrustado em culpa e remorso. Porém, a mensagem que Miss You When Your Gone deixa é a perseverança e a determinação em amadurecer, em virar a página, ainda que, nesse processo, o indivíduo acabe se perdendo para depois se reencontrar e trilhar o caminho da redenção.


Seu início é denotativamente bluesado. Puxado unicamente pela guitarra, ele sugere uma espécie de sensualidade mais intimista e, curiosamente, um tanto cabisbaixa. Reflexiva. Nesse ínterim, o espectador consegue notar também, talvez como algo desproposital, um chiado que acompanha a desenvoltura do instrumento. Sugerindo certo toque de crueza estética, esse detalhe também é o responsável por salientar um breve flerte para com a temática do lo-fi. Misturando gotas de suspense e melancolia, a atmosfera introdutória vai, gradativamente, entorpecendo o ouvinte, conforme ela vai evidenciando influências diretas e indiretas de nomes como Led Zeppelin e Lynyrd Skynyrd. Mantendo esse minimalismo estrutural, o primeiro verso passa a ser regido unicamente pela união entre voz e guitarra, momento em que a camada lírica começa a ser desenhada por uma interpretação verbal introspectiva, mas capaz de promover uma harmonia embrionariamente tocante. Doce e fresca, mas com generosas doses melancólicas, Behind The Veil é onde Kennedy apresenta um conteúdo que, até o momento, é o que incita um pensar mais sério. Afinal, aqui não há apenas a relação para com o tempo e a morte. Existe, também, a maneira como a desesperança pode consumir todo o brilho do indivíduo a ponto de fazê-lo se sentir não apenas desmerecedor da vida, mas, principalmente, ausente de motivação para vivê-la. Behind The Veil é onde, também, a causa e consequência tangenciam com o senso de ganância desenfreado e a frustrante percepção de que, no outro mundo, nada material importa. Uma reflexão, no mínimo, necessária que reacende o senso de humanidade.


Não é apenas frescor ou, mesmo, somente swing. É uma guitarra que surge sensual e provocante em seu rebolar adocicado e ácido por meio de seu suor bluesado. Rapidamente, porém, ela passa a ser acompanhada por uma bateria que engata uma crescente estrutural, enquanto o baixo surge em seu groove grave no limite da estridência providenciando um corpo melódico ligeiramente rígido. Assim que atinge seu auge, a canção, na contagem de três tempos feita por um chimbal aberto e sujo, flui para uma frase sonora explosiva e de caráter curiosamente tenebroso em virtude da linha lírica vocálica assumida por Kennedy, o qual soa interessantemente fantasmagórico. Assim que entra em seu primeiro verso, a música surpreende por ser regida por um baixo eletrizado em um groove denotativamente estridente que chega até mesmo a flertar com uma roupagem stoner. Enquanto isso, Kennedy assume uma postura imponente, provocante, rebelde e um tanto insaciável. A partir dessa receita estrutural, que mistura blues com um folk metalizado, stoner rock e traços de metal legítimos, Saving Face é onde Kennedy instiga e deseja por uma vida feita por atitudes e gestos sinceros, criados e disseminados pelo coração, além de, certamente, motivar a vivência intensa do momento presente. E, por isso, por mais que, como a própria música indica, os tempos tenham mudado, quem assim age nunca será substituído. Afinal, a sinceridade e a honestidade são fatores que, junto com um senso de humanidade, podem salvar, de certa forma, a sociedade.


A bateria surge solitária em uma levada que já comunica, sem qualquer esforço, fluidez por meio de um breve swing de raspas jazzísticas. Porém, a maneira com que se movimenta sugere certo grau de solidão e dramaticidade que torna a atmosfera curiosamente aconchegante em seu frescor gélido. Não demora para que o violão entre em cena através de um sonar suspirante, fator que acaba inserindo uma conotação reflexiva e ligeiramente melancólica. Fortalecendo tal percepção, vem a forma com que Kennedy emprega seu vocal. Aveludado, delicado, gentil e, inclusive, introspectivo, ele, na companhia do backing vocal de Turnier, transforma o ambiente em algo tocante que faz com que as lágrimas comecem a se criar. Como se quisessem seguir o curso do veio de um rio, uma por uma vai se desprendendo e escorrendo pelo seio da face em sintonia com a atmosfera frágil criada pelos elementos sonoros. Tal como uma mãe acariciando os cabelos do filho deitado na cama em uma noite chuvosa, a proposta atmosférica da canção parece ser o simples oferecimento de alento, compaixão e conforto para um sofrimento não necessariamente visceral. Agraciada por um refrão cuja harmonia vem como a paisagem do crepúsculo do amanhecer em uma clara alusão ao senso de esperança e, principalmente, eternidade, Eternal Lullaby é uma canção-homenagem respaldada em grande dose de gratidão de Kennedy a todos os músicos que o influenciaram, mas que já faleceram. Trazendo menções claras de atentados contra a própria vida, o que leva a associar certos trechos especialmente às figuras de Chester Bennington, Kurt Cobain e tantos outros que escolheram pelo fim precoce, a canção chega a funcionar como uma espécie de irmã de Gone Too Soon, single de Scott Stapp. Ainda assim, Eternal Lullaby frisa, de maneira enfática, mas delicada, a força da música como importante legado de tais personalidades. Enquanto sua música tocar, suas memórias não serão apagadas.


O ambiente é sombrio, pegajoso. Asqueroso. Não existe luz natural, apenas sintética, como se a vida fosse artificial e controlada. Não há caos ou qualquer sinal de confusão. O ambiente é inóspito e silencioso, mas causa calafrios e desconforto. Esse é o contexto imagético proporcionado pela melodia introdutória. Regida por uma guitarra distorcida em riffs ácidos e sombrios, na companhia de uma bateria que surge entre golpes certeiros e precisos na caixa, o instrumento dá voz a todas as sensibilidades táteis do amanhecer. Evoluindo para uma tomada explosiva, mas curiosamente melancólica e sofrida, a canção apresenta uma segunda parte da introdução que destaca o denso senso de cinismo que transborda da melodia. Assim que encontra, finalmente, seu primeiro verso, a obra assume uma cadência rítmica precisamente trotante em uma métrica 4x4, enquanto Kennedy vai inserindo as camadas líricas. Explodindo em um refrão melodicamente dramático, Nothing More To Gain é marcada por um contexto sonoro estridente, sujo e quase dissonante que acompanha um enredo que trata da ganância e de uma síndrome de consumismo incontrolável. Enigmática. Insaciável.


A distorção da guitarra se apresenta com um caráter libidinoso marcante em sua essência curiosamente bucólica. Sensual e rememorando brevemente a atmosfera hard rock dos anos 80, tal atmosfera sofre um profundo turning point quando o silêncio se faz de forma abrupta e se rompe por meio de um punch sonoro grave e denso que confere a elaboração de uma atmosfera sombria. Agressiva e ríspida, tal paisagem traz consigo requintes de raiva e de uma espécie de textura rascante masoquisticamente atraente. Evoluindo para uma segunda parte introdutória em que a guitarra solo uiva como uma espécie de adoração à escuridão, a obra acaba garantindo para si um ecossistema assombroso que contamina todo e qualquer resquício de luz natural. Invadindo um primeiro verso sob uma silhueta metalizada, a canção acaba, surpreendentemente, sendo agraciada por um refrão de estética melódica. Harmônico e excitante, ele é o único momento em que o cinismo estrutural se torna ligeiramente irônico. Com essa receita, Dead To Rights não apenas mostra Kennedy experimentando novas paisagens sonoras, mas traz seu senso crítico perante aquilo que parece ser social e político. A manipulação e a ignorância. O dominador e o dominado. É como uma obra que narra a disputa e a ambivalência entre o poder e a obediência em um cenário em que a verdade tarda, mas não falha.


A maneira com que a guitarra se apresenta sugere a formação de um ambiente sombrio e sinistro. Por meio de uma movimentação ligeiramente ondulante através de sua afinação ligeiramente grave, o instrumento vai inserindo gradativamente generosas doses de suspense que são amplificadas pela entrada de um baixo minimamente trotante em seu groove bojudo e seco. Enquanto isso, a bateria é ouvida em repiques ocos que inserem uma ligeira noção rítmica. Nesse ínterim, o enredo lírico começa a ser desenhado a partir de traços de uma leve melancolia reflexiva assumida pela interpretação de Kennedy que, curiosamente, é imerso em um ecossistema que passa a ser adocicadamente entorpecente. Explodindo em um refrão temerante, mas não tanto quanto o cenário de Dead To Rights, How The Story Ends guarda um tanto de caos perante um enredo verbal que, simplesmente, incita, motiva e incentiva o ouvinte a não desistir e a seguir a trilha da vida sem se deixar abalar pelo assédio moral dos tolos que se alimentam dos sacrifícios e das dificuldades daqueles que batalham por uma arte de viver cada vez melhor e mais digna.


É como uma consagração. Como entrar no ápice da carreira. Como encontrar a verdadeira motivação e a verdadeira essência de um trabalho solo. Com The Art Of Letting Go, Myles Kennedy definitivamente sela seu compromisso para com a guitarra, mais ainda que com a arte da composição, do lirismo. Aqui é onde o seu passado encontra um novo holofote e dá ao riff uma nova injeção de vitalidade.


Por meio desse preceito, é possível de se observar a criação de solos diferenciados e frases de guitarra base mais melodiosas. No decorrer de tal álbum, não é difícil, inclusive, de perceber as influências de Kennedy perante os campos do folk e do blues, mas também é possível de se identificar essências metalizadas e swingadas provenientes de seus outros dois trabalhos no comando vocal do Alter Bridge e do SMKC.


Livre para sua máxima experimentação melódica, em The Art Of Letting Go Kennedy permite uma viagem fluida perante os terrenos do folk, do hard rock, mas, também, do metal alternativo. O interessante é que, ainda que tais fatos se comprovem, com o auxílio da produção e mixagem de Michael “Elvis” Baskette o álbum não se desprende de sua essência sertaneja. 


Se enveredando por temas sociais que permeiam caminhos referentes ao emocional, mas também, de certa forma, saudosos, o álbum explora uma ambiência verbal mais reflexiva expressamente no âmbito sócio-político. Pairando sobre a manipulação e a ganância, o álbum é, inclusive, marcado por vastas partes de cunho unicamente motivacional que encantam pela sua delicadeza estética.


Lançado em 11 de outubro de 2024 via Napalm Records, The Art Of Letting Go sugere uma aula sobre superação. Focado nos riffs de guitarra, o material é composto por ambiências agressivas e empoderadas associadas, curiosamente, com lirismos introspectivos. Um produto que motiva, mas também reflete e excita o espectador com seu experimentalismo áspero.

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Sobre o crítico musical

Diego Pinheiro

Quase que despretensiosamente, começou a escrever críticas sobre músicas. 


Apaixonado e estudioso do Rock, transita pelos diversos gêneros musicais com muita versatilidade.


Requisitado por grandes gravadoras como Warner Music, Som Livre e Sony Music, Diego Pinheiro também iniciou carreira internacional escrevendo sobre bandas estrangeiras.