NOTA DO CRÍTICO
Pouco menos de cinco anos após o anúncio de seu terceiro álbum de estúdio, Scott Stapp retomou as composições solo, o que o fez partir para um novo capítulo em sua carreira. Chamado Higher Power, o novo álbum do cantor sucede The Space Between The Shadows e sai na mesma época em que o Creed retoma suas atividades ao vivo.
Um sonar azedo e tenebroso, como se estivesse andando sob um chão enlameado e sanguessuga, surge a partir da sincronia entre as guitarras de Ben Flanders e Yiannis Papadopoulos. Ainda que a bateria de Dango Cellan se pronuncie nesse espectro com um sonar estridente, o que chama a atenção é o sonar entorpecido e adocicadamente sintético do sintetizador dando um ar de algo épico e sobrenatural. Se mostrando em boa forma, Scott Stapp imprime, na faixa-título, uma interpretação explosiva e visceral com seu timbre anasalado. Enquanto a melodia vai se amadurecendo como expoente do metal alternativo, Stapp faz da obra um hino motivacional e inspiracional que levanta a energia do espectador, retira toda a lama que o umedece, e o coloca pronto para enfrentar e viver mais um dia. A faixa-título é uma música puramente sobre superação, perseverança e predeterminação. Um produto que ainda traz muito de autobiográfico por representar o renascimento do próprio vocalista ante as sombras que há muito falsamente o reconfortavam.
A potência já chega em seu ponto máximo. Com uma melodia marcante, madura e regida por um trio de cordas incapaz de esconder o groove denso, seco e estridente do baixo de Sammy Hudson na base sonora, a canção traz uma sujeira e uma precisão já tradicionais da sonoridade criada por Stapp, enquanto desfila uma espécie de agressão sombria e grave. Crescendo em suas camadas de forma a ampliar esse senso lancinante, Deadman’s Trigger encontra seu ápice em um refrão contagiante. Mantendo tal fluxo melódico de maneira linear, a canção apresenta um lirismo abraçado por uma metáfora interessante sobre as pessoas à nossa volta que são capazes de nos colocar para baixo como um instinto de prazer. É como se o protagonista fosse o gatilho do acesso aos seus próprios ambientes de uma inconsciência abissal que o colocam na seara da melancolia, do sofrimento, da dor e da depressão. Sendo por estímulo alheio ou pelos próprios impulsos, o indivíduo apresentado em Deadman’s Trigger tem a consciência de suas fragilidades emocional e lúcida.
Do alto de uma torre que observa todos os arredores de um mosteiro, os picos das montanhas e as diferentes camadas de neve chamam a atenção pelo seu teor puro e cristalino. Não existe qualquer sinal de temor, apenas de uma plenitude de espírito infindável e contagiante pela pureza da atmosfera. Ao longe, os últimos raios de Sol fazem filetes de luz em meio ao tapete branco e se preparam para a construção do novo alvorecer. A partir de uma melodia linear, consistente e um tanto sisuda de maneira a flertar com parte da sonoridade de Under The Botton, single do Ugly Kid Joe, When Love Is Not Enough eclode em um refrão ondulante que dá passagem para uma ponte em que a guitarra solo grita e se contorce aveludadamente como se em um sofrimento entorpecido. É com o auxílio de tal escopo rítmico melódico que When Love Is Not Enough dialoga sobre o honesto desejo de superar a dor e a humildade em pedir ajuda para alcançar tal feito. É uma faixa que trata da reconstrução do equilíbrio emocional interior a partir do amor.
Uma voz radiofônica surge como se estivesse palestrando, mas uma palestra cujo sentido é incitar o encerramento de um ciclo. Assim sendo, o que se segue é uma guitarra acústica de sonar reflexivo rompendo o silêncio estarrecedor do infinito. Eis que Stapp surge não como um narrador em primeira pessoa, mas um descritor onipresente que traz as consequências de atos vivenciados de maneira impulsiva pelo desespero. Explodindo em um refrão de melodia simples, mas de harmonia grandiosamente tocante, What I Deserve é uma faixa em que o personagem se pune pela sua falta de persistência e fé na vida. Porém, é ela que também comunica que o amor é um sentimento inesgotável e inquebrantável que resiste e vive mesmo quando o cenário é ausente de qualquer resquício de luz. Não por acaso, os versos mais marcantes da narrativa sobre um indivíduo que pede por redenção são “love is breathing” e “you couldn't stop it if you tried”.
A poeira da estrada de terra se levanta de acordo com os comandos do vento. O céu já é poente e o silêncio começa a ser o definidor da trilha sonora dessa paisagem bucólica. Enquanto o perfume das últimas flores remanescentes antes da entrada do inverno aromatizam o jardim, o horizonte é tomado por um senso curiosamente contagiante de nostalgia e melancolia. Minimalista, introspectiva, delicada e com um frescor reflexivo, If These Walls Could Talk é estruturada sob uma estética minimalista que a deixa ligeiramente tocante. Crescendo suavemente em harmonia, a canção agora tem a presença de uma trêmula acidez adocicada na base melódica proporcionada pelo sonar do hammond e um suave sonar do chocalho desenhando o compasso rítmico. Surpreendentemente, quando o ouvinte parecia já conhecer os centímetros da canção, vem um detalhe extra. Uma voz feminina, grave e potente entra em cena dominando a segunda metade da obra. É Dorothy proporcionando mais embasamento com seu vocal de vasta extensão e consistência. Na forma de uma balada com poucos elementos sonoros, If These Walls Could Talk coloca as paredes como personagens onipresentes que observam, caladas, a queda e a ascensão de um indivíduo em conflito emocional. Elas são a prova da fraqueza, mas também da força e da resistência de uma pessoa cujo anseio pela superação transcende os limites corpo-espirituais. É o retrato do autoconhecimento como caminho à redenção.
A partir de um canto ondulante e em estética árabe, Stapp puxa a introdução de um novo capítulo que, antecedido por uma guitarra em efeito fade in, se transforma em uma marcante faixa sonorizada por meio do metal alternativo. Mais branda em relação à faixa-título, Black Butterfly repete, no refrão, a fórmula rítmico-melódica densamente explorada em The Space Between The Shadows. Com o mesmo teor épico da faixa de abertura do álbum, a presente obra segue com o requinte estimulante com o qual o vocalista prossegue experienciando no novo álbum. Agraciada pelo sonar da cítara no início da ponte, Black Butterfly é uma música denotativamente sobre renascimento, sobre a aquisição de forças para prosseguir lutando pela vida e contra os obstáculos que a arte de viver impõe ao indivíduo. É a liberdade. É o respirar. É o adquirir da consciência da grandeza infinita da alma.
É curioso como apenas por meio dos primeiros acordes, a melodia criada sugere uma semelhança para com as sonoridades introdutórias tanto de Sweet Home Alabama, single do Lynyrd Skynyrd, quanto de Aerials, single do System Of A Down. O fato é que a guitarra inicial suscita em um clima de tensão, de expectativa, de insegurança. É então que a canção explode em frases sexys em seus riffs de guitarra ardentes, comunicando uma singela inclinação ao metal alternativo. Instrumentalmente mais potente e precisa, Quicksand dialoga sobre o comportamento inconsciente de uma grande fatia da sociedade que finge não enxergar os necessitados e mergulha em um falso senso de utopia para justificar não apenas a sua negação para com os humildes, mas de um invisível filtro de normalidade em cenários sociais que, claramente, não são normais, mas, sim, erroneamente comuns.
O sonar do sintetizador, com sua gélida agudez, é como observar o Sol surgindo por entre as montanhas no processo gradativo do amanhecer. Novamente explorando ambientes sensitivos introspectivos, Stapp apresenta uma canção puxada pelo baixo e sua leve estridência de energia contagiantemente lamentadora. Interessantemente, conforme a canção vai melodicamente evoluindo, é como se, em meio ao falso conforto do sofrimento, houvesse súbitos de esperança recaídos sobre o corpo do sofrente em uma espécie de passe espiritual proporcionados por meio de um verso melódico e macio extraído do violão. Com direito ao sonar típico e reenergizante do banjo na última repetição do refrão, You’re Not Alone é uma obra majoritariamente minimalista em que o lirismo explora a realidade de um indivíduo desencontrado de si e descrente de seu merecimento por auxílio rumo ao seu processo de reequilíbrio emocional. Nesse ínterim, You’re Not Alone vem com o objetivo de informar que, mesmo quando parece estarmos sozinhos, mesmo quando parece não haver saída, basta acessar um mínimo de humildade para conseguir ouvir a voz de um ser onipresente cheio de luz que indicará o caminho da regeneração, do reequilíbrio. Da plenitude do espírito. Só assim, o autoconhecimento se torna algo palpável. Afinal, independente da situação atravessada, a solidão se mostra como a mais perfeita inverdade.
O vento vem em sopros gelados. A vegetação balança em uma valsa entristecida de forma que as cores das flores perderam sua intensidade e vivacidade. Para aquele único indivíduo ajoelhado na borda desse cânion, não existe a chuva que auxilia a varrer o sofrimento. Naquele instante, é apenas ele e sua consciência, que faz brotar lágrimas que fluem livremente pelo seio de uma face cujo olhar é fixo no horizonte, mas fisicamente distante. Enquanto um aroma céltico extraído da guitarra acústica representando a água do choro, o hammond surge com uma presença gradativa e educada cujo sonar delicadamente ácido e agudo sugere uma luz por entre as fendas densas de nuvens cinzas. É assim que Dancing In The Rain atinge seu ápice: com um oferecimento de esperança. Falando de resiliência, persistência e até mesmo autocontrole, a faixa auxilia o ouvinte a ter a sanidade de que o Sol é a oportunidade de uma nova chance, de um novo amanhecer e de ser grato pela vida.
Seu início já denota o drama, o sofrimento e o torpor. Por meio do violoncelo insurgindo da base melódica e da guitarra em riff de afinação lacrimal, o ouvinte logo se sente fisgado por esse senso estranhamente contagiante de melancolia. Evoluindo melodicamente de maneira a fazer o ouvinte visualizar um céu poente de uma beleza capaz de difundir um irresistível senso de esperança, Weight Of The World tem um forte cunho motivacional, ao passo que, assim como ocorreu com You’re Not Alone e Dancing In The Rain, tenta incutir no inconsciente do ouvinte a verdade de que, mesmo nos momentos mais aflitivos, sempre existirá uma força superior oferecendo alento, auxílio, compaixão e proteção.
É a marca da evolução. Higher Power funciona como a metáfora de uma escada cujos degraus Scott Stapp subiu ainda mais no percurso da sabedoria da arte da composição lírica e da construção harmônica. É um produto em que a música se uniu à fé de maneira intensa e visceral, mas, ao mesmo tempo, delicada e generosa.
Apesar disso, é errado dizer que o álbum funciona como uma espécie de missa sonorizada ou um culto feito por melodias. Em verdade, é fato que o material tem uma essência lírica cristã, mas a forma como dissemina ensinamentos e representa aqueles indivíduos em profundo sofrimento e carentes de compaixão é de admirável senso de humanidade e altruísmo.
Capaz de tirar lágrimas do ouvinte com a sensibilidade de melodias presentes em faixas como If These Walls Could Talk, You’re Not Alone, Dancing In The Rain e Weight Of The World, Higher Power é um álbum de mensagens fortes de empoderamento, que instiga no ouvinte a resiliência e o equilíbrio emocional. Na tentativa de incitar um senso pelo desejo da superação, o álbum também tenta criar, ou ampliar, a confiança na presença e na compaixão de um ser onipresente, bem como o autocontrole para não se deixar levar pelo caminho das dores.
Ainda que com o mesmo intuito de The Space Between The Shadows, seu irmão mais velho, Higher Power possui uma quantidade menor de canções metalizadas em comparação com seu antecessor. São cinco contra quatro. Parece pouco, mas, mesmo que não sejam embebidas em distorção, a essência da imposição e da eletricidade está menos presente no novo full-length.
Tal comparação não faz com que Higher Power caia em qualidade, até porque seu som é tão equilibrado quanto do seu antecessor. Com mais drama e melancolia, o presente álbum explora mais em sentimentalismos palpáveis pela tristeza e pela insegurança ao passo que, gradativamente, vai oferecendo uma espécie de caminho de cura para tais angústias.
Para conseguir comunicar isso através do som, Scott Stapp recrutou Joel Wanasek e Chris Baseford para a tarefa da mixagem. Com tais profissionais na dianteira da função, Higher Power soou intenso e visceral enquanto transitava por ambientes introspectivos e explorava outras camadas do já tradicional metal alternativo de Stapp.
Como uma liga entre som, ideia e sentimento, Marti Frederiksen, Scott Stevens e KTRASH se aliaram também a Stapp na produção. Dessa forma, o álbum pôde soar autêntico em seu sentimentalismo e genuinamente altruísta ao oferecer, além de um caminho de alento, a representatividade para com as dores e aflições de ouvintes sofrentes.
Lançado em 15 de março de 2024 via Napalm Records, Higher Power é um álbum cristão intenso e visceral que se apresenta com generosas doses de altruísmo, humanidade e sensibilidade. Além de representar as dores e as angústias, ele é um material que motiva a encontrar e fomentar aquilo que há de melhor e mais forte dentro de cada pessoa, sem se esquecer do fato de que nunca alguém estará sozinho.