NOTA DO CRÍTICO
Não é somente Pedro Casagrande e Italo Azevedo que quiseram anunciar novos produtos no início do segundo semestre de 2021. Além de divulgar um EP, João Marcos Bargas usou o período também para promover sua estreia no mundo fonográfico nacional. E isso se deu com Cantinho, seu primeiro EP.
Uma voz agridoce surge como uma brisa se movendo em uma valsa macia pelo ambiente. É João Marcos Bargas trazendo calmaria e um perfume doce preenchem cada canto da natureza em um cenário desenhado com cores de uma espiritualidade transcendental. Como um monólogo, uma prece, uma conversa com o próprio íntimo, o eu-lírico se debruça sobre desabafos sobre temores, mas mais do que isso. Na faixa-título, o personagem prepara aqueles que almejam conhecê-lo por dentro como prevenção ao espanto de descobrir a desordem emocional com que ele se encontra. De melodia minimalista, o synth de Diego Vargas aumenta as texturas de um ambiente solitário e extraterreno ao passo que consegue comunicar o ouvinte de que a história se passa dentro da mente do protagonista. Um mantra que denota a cautela e a atenção.
A maciez continua latente, mas agora ela ganha a companhia de um swing aveludado que preenche a melodia como um abraço aconchegante. E nisso, a guitarra de Pedro Henrique Marques em união com o beat da bateria de Lucas Teixeira têm grande responsabilidade. Afinal, são eles que imergem a estrutura rítmica de Meu Canto para um misto de pop com singelos elementos do R&B. Trazendo um lirismo sobre autoconhecimento e sobre aceitação, Bargas mergulha em uma autoanálise sobre os dois lados de sua personalidade numa clara tentativa de se encontrar. E nesse processo, é interessante como a estrutura sonora da canção possui uma divisão rítmica bem estruturada entre as duas estrofes. Até porque, na segunda parte da faixa, a melodia recebe acentuação no groove e uma cadência mais estimulante que conta ainda com a participação cheia de doçura e suavidade de Marina Reis oferecendo apoio vocal na ponte. De certa maneira, Meu Canto, além de ser um misto de pop e R&B, possui temperos de MPB.
A guitarra grita, mas não em tom de sofrimento e, sim, como uma demonstração de libertação. Enquanto isso, a base rítmica desenha contornos com traços do jazz e do blues em uma paleta de cores abrangente que chega até mesmo, a partir de uma aspereza proposital na voz de Bargas, a remeter o timbre tão característico de Cássia Eller. Trazendo novamente uma estrutura de subdivisões bem definidas, Não Era Você expõe atitudes feitas sob excesso de excitação, energia e alegria, mas também a ambivalência, a bipolaridade em que a possessão surge e fere o outro. Um lirismo sedutoramente cativante que faz com que a faixa se encaixe no título de single de Cantinho. Cheia de drama e groove, a canção guarda ainda uma ambiência teatral de conteúdo astrológico.
É como se um rádio fosse ligado e a canção nele transmitida fosse contemplada. É então que um ritmo cheio de gingado é exposto. Imergida no universo do blue-eyed soul, Amor Meu é uma canção que já se mostra diferenciada. Afinal, a forma como a melodia foi construída permite uma maior atração e degustação por parte do público justamente por conta da sonoridade e da cadência a que ela se apresenta. No refrão, inclusive, a canção caminha para o soft rock de maneira a casar ainda mais com o conteúdo lírico, o qual trata da descoberta do amor. Mais um importante single para Cantinho.
Um clima embriagante e, até de certa forma, psicodélico se forma com o auxílio do coro que acompanha Bargas no início de sua dissertação. Dramática, intimista e melancólica, Me Deixa tem grande participação do sintetizador na elaboração de um cenário entristecido. O que mais chama a atenção, porém, é como Guilherme Cunha conseguiu sintetizar essa energia e transpô-la nas linhas do baixo, as quais parecem de fato chorar e sofrer de maneira entorpecidamente controlada e tímida como se não quisesse assumir a dor. Esse é o cenário de Me Deixa, uma música que busca sentido no ato do abandono como forma de proteção contra o vazio dos achismos.
Se a melancolia era latente em Me Deixa, o piano de Leandro Pacheco tenta oferecer uma morfina para tal sensação em Segunda Opção. Suas notas graves em união ao som igualmente grave do violino trazido pelo sintetizador cria uma ambiência melódica reflexiva. Aqui, Bargas repete a base do tema lírico de Me Deixa ao abordar o relacionamento, mas com um porém. O eu-lírico se vê forte em assumir sua colocação de segundo plano e também expõe sua insatisfação de entrega amorosa em via única, sem reciprocidade. Ele não quer ser deixado sentir a dor consigo mesmo, mas quer expor essa dor para que o outro também saiba desse sofrimento. Uma libertação. Um desabafo do coração dito com muito pesar: “foi só eu que amei”.
Difícil alguém se lançar no mercado e conseguir conquistar o ouvinte logo na primeira tentativa. No entanto, João Marcos Bargas foi com sede nessa tentativa e, com uma ousadia, preferiu arriscar um EP, um produto de poucas e cuidadosamente selecionadas músicas. O curioso é que a dupla trinca de faixas foi sim o suficiente para que Cantinho conquistasse o ouvinte.
O ato veio pela simplicidade, pela honestidade, pela entrega e pela melodia. Transitando por ambientes que partiam de um swing atrativo, passavam por uma felicidade alegremente entorpecida e chegasse em uma dobradinha melancólica capaz de capturar o sentimentalismo do espectador pela dramaticidade harmônica.
Nesse caminho, Cantinho experimentou o pop, o R&B, o bule-eyed soul e o soft rock. Uma mistura inusitada, mas que felizmente surtiu bons efeitos com a união da voz de Bargas e do coro participativo em algumas ocasiões. Isso mostra um espírito experimental, mas ao mesmo tempo consciente, uma vez que a base de tudo estava alicerçada na MPB. Isso, inclusive, foi bem captado pela união da produção de Felipe Martins e Pedro Henrique Robes, com a mixagem de Hugo Silva.
Lançado em 18 de outubro de 2021 via Rockambole, Cantinho é um EP que expõe a nova textura da MPB. Mais ousada em suas misturas e com lirismos que transitam entre os extremos do sentimentalismo, ela exorta a ambivalência na qual a sociedade atual lida com seu íntimo e como o meio externo o afeta. Um trabalho atencioso de João Marcos Bargas.