NOTA DO CRÍTICO
Há pouco menos de uma semana, Santa Catarina teria mais um produto fonográfico lançado. Pegando essa proximidade temporal, Emília Carmona se une ao time catarinense composto por Pedro Casagrande, Fantástico Caramelo e Madu para se anunciar no mercado da música nacional com LaMachi, seu EP de estreia.
Um som tropical vai se formando gradativamente. É como se o ouvinte se visse em uma mata ouvindo ao fundo um som que desperta interesse e, assim que tira grandes folhas de bananeira da frente, a visão fica limpa e ele consegue enxergar o que está acontecendo. Com golpes certeiros da bateria, surge uma voz afinada e doce. É Emília Carmona imprimindo suavidade em uma estrutura melódica preenchida por notas de frevo proporcionadas pelo groove do baixo trazido pelo sintetizador de Mateus Romero. Estilisticamente, Dengo é uma música multifacetada, pois possui em seu DNA uma sonoridade mista de frevo e samba cujo swing é a base melódica. Animada e ao mesmo tempo sensual, a canção traz um lirismo preenchido por rimas toantes cuja mensagem é o blend de sentimentos que a proximidade causa ao eu-lírico, bem como a vontade de se sentir cortejado e desejado. Com direito a um solo de sax proporcionado por Nicolas Salazar, a canção ganha uma sensualidade propriamente brasileira cujas cores são de uma paleta de tons quentes-pasteis. Por outro lado, a contribuição da guitarra de Dani Postal em união ao teclado cria uma atmosfera pop disco tal qual aquele feito por Lulu Santos em Eu e Memê, Memê e Eu.
Sons não identificáveis criam um suspense incômodo no ar. É como caminhar sob um chão repleto limbo, sem claridade alguma e com texturas ásperas roçando a pele a cada passo dado. O suor gelado sai sem controle de cada poro corporal e escorre livremente por todo o corpo. Diferente de Dengo, aqui Emília surge com uma voz contida cujo tom expõe cautela, certo temor e a consequente timidez. Introspectivo, o som emitido por seu vocal é triste e contaminante. Enquanto o caxixi causa a impressão de chuva que cria um ar ainda mais entristecido, a canção ganha uma crescente dramática com as notas do teclado e uma sensação uteriana causada pela calmaria e o som das ondas recriando a sensibilidade do líquido uterino e o corpo maternal. Janainoyá é uma canção que mistura o torpor depressivo com desejos de uma entrega de amor, de uma paixão que ultrapassa o conjugal. O gestar, o ser, a dor, a solidão. O medo. A faixa é a perfeita ilustração dos devaneios inconstantes e conflitantes da maternidade.
O violão traz uma cadência estimulante que foge ligeiramente do torpor latente da canção anterior. Trazendo uma energia de tom reflexivo, o instrumento logo dá passagem para a entrada de Emília, que vem com um lirismo sobre perseverança, fé, esperança e honra a simplicidade da vida. Por entre versos cantados em espanhol, existem sobreposições vocais que amplificam uma espécie de swing latino que é estimulado pela guitarra. E nesse quesito, Postal traz em sua performance, além de flertes com o soft rock, influências visíveis de Santana. Porém, além da guitarra propriamente dita, o molejo presente em Encantaria é também proporcionado pelo beat de temática reggaeton, o que acaba entregando as cores quentes vindas de uma praia em dia ensolarado.
Um vocal cuja leveza e doçura lembra a desenvoltura aconchegante do timbre de Marisa Monte. Ritmos plurais e entrosados que vão do frevo ao disco, do soft rock ao reggaeton. Na letra, o disco traz desde um monólogo expressivo-sentimental ao poder da atração. Isso é LaMachi.
Com instrumentação minimalista, o disco conseguiu soar amplo e, portanto, sem limite experimental pré-estabelecido. De outro lado, as inserções de sons promovidas pelo sintetizador foram essenciais para dar movimento e uma trajetória de altos e baixos que representa a instabilidade sentimental do ser humano. Tais quesitos foram perceptíveis a partir da atuação de Francis Pedemonte, quem proporcionou uma lapidada mixagem e que acabou por oferecer uma sonoridade clara e limpa ao ouvinte.
Instabilidade pode ser, inclusive, o mote da arte de capa. Feita em união entre Marcos D’Elboux e Emília, ela traz um misto de psicodelia e acidez que são traduzidas pelo eco corporal. Cada camada desse eco é como um estado de espírito denotado por cores que vão de tons quentes aos frios. É a união da tristeza entorpecida com o ânimo exacerbado que possui, no meio de tudo, uma personagem cujo olhar penetrante evoca a paralisia perante o incerto e à mudança, mas cujo espírito está sedento por mudanças. Na arte de capa existem ainda referências ao nordeste, em especial Pernambuco a partir do objeto portado pela personagem, pela grafia do nome do EP e pela mistura de tons.
Lançado em 22 de outubro de 2021 de maneira independente, LaMachi é mais um feliz lançamento que mostra, acima de tudo, a versatilidade da música brasileira e a desenvoltura desimpedida de seus representantes. Um EP calorosamente tropical e convidativamente analítico.