NOTA DO CRÍTICO
O ano de 2021 é um período que, por mais que esteja caminhando para seu encerramento, ainda pode guardar surpresas. Uma delas foi a reaparição, depois de cinco anos longe dos estúdios, de Carlos Santana. Aos 74 anos, o multi-instrumentista anuncia o lançamento de seu novo trabalho. Intitulado Blessings and Miracles, disco é o 24º trabalho de estúdio em nome da banda Santana e o 33º da carreira do músico.
Um ecoar grave e sombrio. O tilintar da cúpula do prato de condução amplifica a sensação de insegurança e de certo temor. Ao mesmo tempo, o som crescente e decrescente do xilofono cria uma ambiência transcendental e extraterrena. É como se o ouvinte estivesse no fundo do mar e aquele silêncio embriagante fosse rompido pelos sonares das baleias passando pelas redondezas. Quando há uma elevada dramaticidade causada pelas notas do teclado de David K. Mathews, os golpes dos timbales de Karl Perazzo se fazem presentes e o prato de condução entra em cena como se fosse chuva caindo no horizonte, eis que um som ameno, colorido e aveludado passa a devolver a luz ao ambiente. Com seu blues característico, Santana faz uma espécie de oferenda sentimental como um abraço aperado e caloroso. Pela estética e melodia criada pelas linhas de sua guitarra, existe nelas uma semelhança harmônica com aquela desenhada por Slash na ponte entre a introdução e o primeiro verso de Since I Don’t Have You, single do The Skyliners e regravado pelo Guns and Roses. Ghost of Future Pull/New Light, uma música leve e recheada de texturas táteis, é a que abre a lista de canções de Blessings and Miracles.
O teclado surge trazendo em suas notas referências claras ao blues. Em contrapartida ao espaçamento entre os sonares, Cindy Blackman Santana surge com uma bateria de levada acelerada e explosiva enquanto a guitarra solo sobrevoa essa atmosfera com gritos de satisfação. É como fogos de artifício. Uma explosão de cores vivas ocorre no céu enquanto o ouvinte é dominado por misto de sensações de extrema energia, excitação e ânimo que abraça cada entranha do corpo. Isso é o que a melodia introdutória de Santana Celebration oferece ao espectador. É então que os elementos percussivos surgem em solo trazendo referências à banda sinaloense e imprimindo uma atmosfera tropical latente à canção. Aqui, a guitarra vai ganhando terreno de forma tímida, como se fossem brisas. Porém, quando a melodia parece entrar em seu ápice, o instrumento assume protagonismo com uma sonoridade quase cantada cuja estrutura remete à cadência vocal adotada por Myles Kennedy no pré-refrão de The Writing On The Wall, single do Alter Bridge. Apesar dessa semelhança, o que Santana imprime em Santana Celebration é swing, alegria e brilho de maneira que, trazendo referências do blues e hard rock, o músico consegue fundir ingredientes rítmicos do samba nesta que é uma canção de sangue quente com direito a um solo de teclado alucinante.
Um som áspero ecoante insere uma temática new wave. O baixo de Benny Rietveld entra logo em seguida com um riff grave, corpulento e groovado. Apesar da percussão entrar em peso na segunda metade da introdução, o ambiente passa a assumir contornos decisivos de música eletrônica até que, com repiques abertos na caixa, a bateria evoque uma divisão rítmica que encaminha o ouvinte para um ecossistema com base no gênero do reggaeton. Rumbalero é uma música que, assim como Santana Celebration, possui uma alegria extasiante que conquista facilmente o ouvinte e que, inclusive, tem gosto de família. Afinal, a voz que primeiro se apresenta, com seu timbre mediano e afinado, é de Salvador Santana, filho de Carlos Santana e quem, na presente faixa, divide os vocais também com Asdru Sierra.
Um blues afiado ao estilo de Joe Bonamassa é proporcionado por Santana no despertar de Joy. Porém, a guitarra não é a protagonista absoluta do trecho, afinal, nele existe a inserção de um instrumento até então ausente de Blessings and Miracles. Tammy Rogers emprega um violino de participação decisiva para a criação de um cenário misto do dramático com o épico. Este não é o único detalhe surpreendente na canção, até porque, fugindo de qualquer expectativa, o que se forma no primeiro verso é um reggae guiado pela levada delicada e gingada da bateria de Derek Mixon e pelo vocal aberto, anasalado e com sutis toques de grossura de Chris Stapleton. Joy é uma música que, com uma leveza estonteante na melodia, fala, como o próprio nome sugere, de alegria. A alegria como remédio das dores, dos sofrimentos, das tristezas e dos medos. A alegria como forma de trazer a cor e o brilho dos dias. A alegria como guia a da vida.
Swing é a palavra que define os raiares de luz de Move. Guiada por Santana, a canção logo recebe outras cores ao presenciar um vocal agridoce invadindo o cenário. É Rob Thomas trazendo um lirismo que consagra a alegria como sendo a assinatura lírico-melódica de Blessings and Miracles. Incentivando a dança, o sorriso no rosto e o ânimo pela vida, Thomas não apenas cria harmonia com o ritmo, mas também traz elementos lírico-vocálicos que fazem de Move o primeiro single incontestável do álbum. Com um groove acentuado graças às linhas do baixo, a melodia da canção recebe uma atmosfera ainda mais festiva a partir das participações pontuais, mas indispensáveis, do grupo dos metais formado por Andy Snitzer, Raul Agraz, Tony Kadleck e Michael Davis.
Um clima mais reconfortante e com respingos de soul são percebidos através das notas aveludadas do Hammond B3 e da batida igualmente macia da bateria. É então que os olhos dos ouvintes se abrem em contemplação surpreendente pelo vocal grave e aberto de Steve Winwood que acompanha a melodia até então minimalista guiada pelos elementos percussivos e pelo blues exalado pela guitarra. Na questão melódica, é curioso notar como mesmo com o poderio do Hammond é possível notar a doçura e a sutileza com que os teclados de Narada Michael e Justus Dobrin se apresentam timidamente por entre a estrutura rítmica. No entanto, o mais surpreendente é notar que Whiter Shade Of Pale é a canção de teor lírico mais melancólico de Blessings and Miracles. Afinal, o conteúdo aborda a história, sob a perspectiva de uma terceira pessoa, de alguém que foi convencido pela tristeza a abandonar a vida.
Se a melancolia estava no lirismo em Whiter Shade Of Pale, em Break ela se encontra já na melodia introdutória. Guiada pelas notas embriagantes do teclado, ela causa de imediato uma sensação de torpor no ouvinte, o qual acompanha a canção de maneira anestesiante. Outro ponto que muda aqui é o dono da voz. Com uma agudez controlada e grave, Ally Brooke caminha pela sonoridade minimalista apresentando um conteúdo lírico que, diferente daquele da canção anterior, retrata uma pessoa que oferece ajuda, apoio e proteção para aquele que se encontra em momento de fragilidade. Afinal, como o próprio eu-lírico entoa, na companhia de Andy Vargas “I'll give you strength, restore your faith. I'm the one who'll be around if it all falls down. I will hold you!”. Como um fecho da receita melódica, Santana inclui um solo com sabor de extrema dramaticidade.
Assim como em Rumbalero, o reggaeton retoma presença na estruturação melódica em She’s Fire, uma música apresentada ao ouvinte com o vocal de teor sutilmente sussurrado e com notas de sensualidade de G-Easy. Apesar de ter o lirismo mais pobre de Blessings and Miracles por tratar a simples arte da sedução indireta, She’s Fire leva crédito por criar uma harmonia chiclete entre voz e instrumental e por, inclusive, inserir versos de cadência rap que dão um estímulo maior à degustação da faixa. Por essas razões, a canção se posiciona ao lado de Move no time de singles do álbum.
Swing, ânimo e excitação. O início de Peace Power foge drasticamente do ambiente introspectivo da dobradinha Whiter Shade Of Pale e Break, mas também se distancia do minimalismo melódico de She’s Fire. Com direito à uma guitarra distorcida e com teor sensual, Santana puxa uma introdução enérgica e estimulante cuja cadência é até mais acelerada do que de costume. Com mais peso e uma ambiência hard rock californiana, a canção traz Tommy Anthony como guitarrista base amplificando a pressão empregada por Santana e Corey Glover no comando do microfone. De vocal aberto e nasal-grave, o cantor emprega na faixa um lirismo que exorta a liberdade e enaltece o black power. No que tange a melodia, ainda, Peace Power é uma canção que flerta com a acidez sonora proporcionada da mistura entre o rock psicodélico e o rock progressivo.
Uma mudança melódica é visível no despertar de America For Sale. Nela é evidente a existência de uma agressividade diferenciada na estrutura, algo que é introduzido a partir da participação de Kirk Hammett na criação da harmonia com Santana. Afinal, enquanto um traz traços rígidos de agressão, o outro sobrevoa com a maciez do blues. O que sobressai, no entanto, é o peso e a rispidez, detalhes que são enaltecidos através da voz rasgada e áspera de Marc Osegueda, quem, além de introduzir sobreposições vocais, traz consigo um lirismo selvagem. Por essas razões, os músicos-base de Santana são estimulados a entregarem mais de si na canção. Mais punch, mais groove, mais sabor. E isso também é notável no campo da bateria e do baixo, pois é visível o trabalho de desenvoltura feito por Cindy e Rietveld. Uma música que definitivamente foge da zona de conforto explorada em Blessings and Miracles.
Um banho de água fria é jogada sobre o calor e sobre a energia demasiadamente estimulada em America For Sale. Afinal, as guitarras de Santana e Avi Snow entram em uma espiral melancólico-transcendental contagiante em Breathing Underwater. É então que um vocal agudo, anasalado e com leve força é presenciado. Eis Stella Santana imprimindo delicadeza em sua interpretação lírica sobre eventos inerentes a relacionamentos amorosos cuja base rítmica é o pop. Criando um enredo de comunicação entre as partes, no refrão de estrutura rítmica entorpecida, quem se pronuncia é Snow trazendo declarações de amor e sincronia para com a mensagem anteriormente trazida por Stella.
Swing e groove. O tropical e o denso. Mother Yes traz uma combinação que casou no âmbito melódico. O hard rock, aqui, se conversa com o rock progressivo e, inclusive, com o funk. É aqui também que Anthony, além de ser responsável por ser o guitarrista base, passa a assumir a função de vocalista, algo que fez com destreza. De timbre rouco e rasgado, ele possui um vocal cuja pronúncia bebe da fonte de James Brown e B. B. King.
Longe da energia e do movimento de Mother Yes, Song For Cindy chega com uma calmaria embriagante. Quase como um mantra, a canção traz protagonismo do teclado na criação de um ambiente aconchegante e reconfortante. Uma instrumental declaração de amor à Cindy, a canção possui lampejo de cores quentes em meio ao veludo instrumental. É como o fogo da paixão aquecendo o sangue e proporcionando a união.
Se Song For Cindy foi uma espécie de mantra romântico, Angel Choir é o acesso ao universo transcendental trazido pelo coral melódico, crescente, harmônico e angelical proporcionado por Chick Corea e Gayle Moran Corea. De repente, a bateria e o piano invadem a cena colocando dramaticidade e novas cores que, de gélidas, passam a ter mais brilho quando Santana entra com uma guitarra de riff aveludado.
Os elementos sonoros são maiores e, portanto, o sensorial testa novas texturas e novos sabores. Até porque, mais do que em Ghost of Future Pull/New Light, Ghost of Future Pull II traz uma participação mais enérgica de Santana e conta, ainda com coro e mais elementos percussivos preenchendo a melodia trazendo influências do bolero.
O mais importante de notar em Blessings and Miracles é que, mesmo aos 74 anos, Carlos Santana ainda se encontra em plena forma. Conseguindo manter a sua assinatura sonora, o batizado Carlos Humberto Santana Barragán não se rendeu à zona de conforto e ousou em texturas, ritmos, melodias e sabores.
Afinal, além da maestria com que lida com o blues, o multi-instrumentista trouxe, ao longo das 15 faixas do álbum, a banda sinaloense, o reggaeton, o hard rock, o soul, o funk, o pop, o rock progressivo, o rock psicodélico e o bolero. Por isso, pode dizer que o disco teve uma estruturação ousada.
Ousadia essa que se mostra na companhia de músicos que, dificilmente, teriam algo em comum para partilhar entre si. Um bom exemplo é Kirk Hammett que, mesmo bebendo de uma fonte thrash e mais áspera, conseguiu casar seus conhecimentos e construir, ao lado do anfitrião e de Marc Osegueda, a música mais agressiva e pesada de Blessings and Miracles.
Mas no álbum existe também o aconchego da família. Afinal, além de já partilhar os palcos com sua esposa, Cindy, entre o casting de cantores recrutado estão os filhos Salvador e Stella Santana. É o lar fora do lar, algo tão importante que proporcionou a Carlos Santana a sensação de estar realmente à vontade, o que surtiu visíveis e positivos efeitos nas suas participações.
Além da questão harmônico-melódica que abraça o álbum, o que é importante notar é que Blessings and Miracles é um álbum que exala alegria mesmo quando os conteúdos líricos possuem uma energia mais introvertida. O fato é que o disco também caminha por temas delicados da vida, mas o seu legado incontestável é a alegria, a excitação e o êxtase pela vida.
Do ponto de vista visual, o disco funciona como uma homenagem à cultura centenária do México e de suas antigas civilizações. Afinal, a arte de capa traz uma escultura maia em pose de celebração e adoração. É como se estivesse dando bênçãos por uma vida cheia de positividade.
Lançado em 15 de outubro de 2020 via BMG, Blessings and Miracles é um produto multifacetado. Um disco em que diversos gêneros se conversam a partir da base blues. Um disco que prova que Carlos Santana é muito mais que Smooth e Corazon Espinado e Maria Maria. Muito mais que Supernatural.