Gaby Guima - Grades

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O ano de 2021 entrou no seu último trimestre e já contabiliza um número significativo de lançamentos independentes. Nomes como Bié dos 8 Baixos, soul.za, UmQuarto, Isa Roth, Cicatrice e Fael são exemplos de cantores solos ou bandas que arriscaram disponibilizar um produto livre de gravadoras. Esse time agora ganha mais um nome. Vinda de Bauru (SP), Gaby Guima se lança no universo da música independente com Grades, seu EP de estreia.


O canto dos pássaros ululam como uma sinfonia natural enquanto as sinuosas e floradas notas do piano enaltecem uma ambiência tranquila e amena ao ponto de tangenciar com o exoterismo. Eis então que o ouvinte é surpreendido por uma voz de timbre grave, forte e imponente que muito se assemelha àquele vocal tão característico de Elis Regina. É Gaby Guima trazendo uma doçura confortavelmente melancólica que carrega tristeza e lamentação em sua interpretação. Com uma melodia de estética minimalista, a faixa-título possui um lirismo sem repetições. É um desabafo que se percebe há muito tempo calado no consciente do eu-lírico e que agora conseguiu força suficiente para ser extravasado. Denso em elementos, o lirismo apresentado aborda assuntos como a dor da perda, o conservadorismo, a rejeição e a metáfora latente sobre o auto-boicote que simboliza a insegurança. De maneira geral, a proposta de Gaby é confrontar a meritocracia, o personalismo e a noção de renda. Acompanhando esse regurgitar de adversidades sociais está uma ambiência mista de samba e MPB entregue, principalmente, pela cadência vocal acompanhada harmonicamente pelos dedilhares de Caio Santos.


Acompanhada do veludo das notas do teclado de Vitor Napolião, Gaby surge com um vocal mais anasalado e macio. Uma drástica quebra rítmica se faz quando ocorre a entrada de uma guitarra regada em distorção áspera junto de uma bateria de golpes simples e precisos e um baixo de notas encorpadas e suculentas. Cauê Gifalli, Lucas Dias e Helton Carmesan fazem com que a noção de sensualidade oferecida no abrir dos olhos de Vai e Vem seja amplificada. Com uma levada híbrida de soul e blues, a canção traz um lirismo mais leve em comparação àquele da faixa-título ao abordar um tema romântico e sedutor. Melodicamente com mais elementos, a canção possui uma estrutura cativante, harmônica e enérgica que a torna, indiscutivelmente, um single de Grades.


Beirando o solo nordestino, o violão de Sinuhe LP começa a construir a melodia de Antes do Final, uma faixa que é recebida por um vocal masculino. É João Baiano trazendo um realce de sabores com seu timbre agridoce. Os sabores melódicos da canção são baseados no ritmo do samba, mas um samba rodeado de elementos sonoros como o veludo do teclado, a cadência da bateria e o groove do baixo. Essa maciez contagiante serve de acompanhamento para a saudade, sentimento tido pelos cantores como algo ingênuo e imaturo. O interessante é que a presença dos vocais feminino e masculino fazem com que sejam expostos os dois lados da relação entre saudade e memória. A nostalgia da lembrança com a esperança por uma memória de um perdão que ainda acontecerá. 


A união do baixo, do teclado, da guitarra de João Vedana e da bateria faz criar uma atmosfera pop soul cheia de sensualidade aconchegante. Uma ambiência que abraça o ouvinte de maneira reconfortante. Com notas singelas de uma dramaticidade envolta na melodia de teor sensual graças às notas do baixo, a estrutura sonora dá passagem para um lirismo de ideologia hippie que preza pelo amor e o coloca como salvação das mazelas sociais. O senso de humanidade, altruísmo e compaixão regidos pelo amor, pela beleza das relações e da vida. Na ponte de Flores Morrem Sem Água, o ritmo se transforma para um reggae enérgico regido pelo vocal de Letícia Cazagrande e pelo backing vocal de Lizze Ferrer que entoam uma cadência rappeada tal como fez Lady Saw em Underneath It All, single do No Doubt.


Veludo, aconchego, conforto. É como estar no conforto da cama vendo a chuva cair e embaçar o vidro da janela. É interessante como Gaby possui certa predisposição e conhecimento na criação de harmonias sensuais. Afinal, a característica presente em Vai e Vem e Flores Morrem Sem Água está fortemente presente em Nosso Cais, uma música que repete o teor romântico adotado na faixa-título, mas sob uma nova perspectiva harmônico-melódica. Um dos artifícios que oferecem uma nova roupagem é a participação de Isabel Balderramas nos vocais. Afinal, seu timbre mais grave e firme faz o mesmo efeito de realce de sabores feito por João Baiano na faixa-título. Contagiante e melódica, a estrutura sonora da faixa faz com que ela seja, ao lado de Vai e Vem, outro importante single de Grades.


O nome parece frase dita em refrões repetitivos de músicas de sertanejo universitário. Não à toa, a impressão é confirmada não somente no título como também em ingredientes presentes na melodia. Afinal, Me Bota na Tua Playlist além de ser uma música que mergulha em uma roupagem funk melody com direito ao típico compasso estipulado pelas batidas do pancadão, ela possui uma cadência e uma estrutura vocais que bebem da fonte do sertanejo universitário por extravasar simplicidade estética e aptidão em proporcionar versos-chiclete. É apenas no refrão que Me Bota na Tua Playlist retoma com o samba tão particular de Gaby Guima e reforça o lirismo de sedução baladeira.


É realmente grande. Grande em harmonia, grande em experimentação, grande em melodia e grande no lirismo. O que Gaby Guima conseguiu fazer com Grades foi, além de unir gêneros que pouco ou nada se conversam, fazer com que, juntos, eles construíssem uma química sedutora que transparecesse ao ouvinte.


O desafio foi alcançado. Afinal, o funk melody e o pancadão se harmonizaram com o samba assim como o rap se uniu ao reggae. Essa experimentação mostrou ousadia, mas mais do que isso, mostrou musicalidade e conhecimento técnico suficientes para fazer essa ousadia funcionar.


Claro que, nesse processo, Gaby seria pouco ou quase nada sem a companhia dos competentes músicos e cantores recrutados para criar as linhas melódicas de Grades, time que se completa com Criston Lucas, quem fez uma ponte em Flores Morrem Sem Água.


Tratando majoritariamente sobre relacionamentos e temas amenos regados em um romance sensual, os lirismos que preenchem as faixas de Grades ainda discorrem por temas sociais densos e suspirantes que merecem fôlego para serem digeridos e refletidos.


Esse processo musical de sonoridade limpa, melódica e contagiante é concretizado graças à mixagem de Lucas Dias, Cauê Gifalli e Daniel Sanjines, que, inclusive, ficaram a cargo da produção de Grades ao lado de ​Casca, um disco de visual caricaturesco. Afinal, a arte de capa feita por Júlia Sardinha traz uma pintura em aquarela que apresenta, ao centro, uma caricatura realista de Gaby Guima que transmite simplicidade e leveza.


Lançado em 08 de outubro de 2021 de maneira independente, Grades é um EP que lança ao mercado nacional um forte nome para o campo da MPB. É um trabalho que oferece à música brasileira a figura de alguém que tem competência na arte da experimentação e sabe como combinar gêneros adversos. Um brinde.

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Sobre o crítico musical

Diego Pinheiro

Quase que despretensiosamente, começou a escrever críticas sobre músicas. 


Apaixonado e estudioso do Rock, transita pelos diversos gêneros musicais com muita versatilidade.


Requisitado por grandes gravadoras como Warner Music, Som Livre e Sony Music, Diego Pinheiro também iniciou carreira internacional escrevendo sobre bandas estrangeiras.