Bié dos 8 Baixos - Bié dos 8 Baixos

NOTA DO CRÍTICO
Nota do Público 5 (3 Votos)

Da música informal, tocada para si e um público seleto à assinatura com um selo musical. De Feira de Santana, cidade do interior da Bahia, para o Brasil. Essa foi a trajetória percorrida por Francisco Sena, conhecido como Bié dos 8 Baixos, até o lançamento de seu disco autointitulado de estreia.


Pássaros. As folhas bailando conforme a sinfonia do vento. Um ar bucólico e roceiro domina a atmosfera assim que uma voz grave e levemente rasgada se pronuncia, ao lado do tilintar do cowbell, a cantarolar. É Eraldo Aboiador entoando o aboio, canto de condução do gado, como uma introdução para o início de uma história a ser contada. Em Cheguei no Centro, como o próprio nome sugere, o eu-lírico se apresenta chegando ao centro do que aqui seria Feira de Santana (BA). A aglomeração causou dúvidas até que, enfim, foi dito ao personagem que as pessoas estavam ali por conta de um sanfoneiro chamado Bié. Interessante é como, a partir da simplicidade narrativa e sons extremamente característicos, o ouvinte pôde montar em sua mente as cenas e as sensações descritas na faixa.


Araras cantando. Pessoas falando. Passos. Uma voz ao fundo, como em um alto-falante, anuncia os lojistas e seus respectivos produtos à venda. Um típico ambiente de feira livre. Com um leve toque do efeito fade out, esses sons ambientes perdem protagonismo, ficando apenas ao fundo. Enquanto isso, uma sonoridade alegre e aveludada começa a aparecer. Tomando a dianteira da melodia está Bié dos 8 Baixos e sua sanfona de 8 baixos, os quais criam uma atmosfera caipira que se encrusta na roupagem do baião. Dedéu da Zabumba chega em seguida proporcionando  o compasso e uma cadência acelerada a partir da percussão da zabumba. Conforme Boca da Noite evolui, tilintares enfeitam as paredes melódicas tal como as luzes natalinas emoldurando as paredes. O triângulo de Bel da Bonita não deixa dúvidas de que a canção imerge profundamente na ambiência nordestina e sua sonoridade extremamente típica. Assim como aconteceu em Cheguei no Centro, aqui também acontece de haver propagandas de lojistas e produtos à venda na feira.


Desde cedo, ele se mostra sincopadamente acelerado. Existe aqui uma sensualidade diferenciada daquela oferecida por ritmos como o hard rock ou mesmo o soul. Tem traço latino, tem malandragem, tem molejo e tem quadril solto. “É difícil entrar... Samba não dá confusão, não”, essa frase é dita por uma voz debochada, preguiçosa e até mesmo com tempero cômico. É assim que Bié começa a introduzir Pisa no Chão Ligeiro. A faixa o possui base tão tropical que é possível perceber a zabumba andando de mãos dadas com as congas. Uma mescla de percussão bastante ritmada que serve de cama para um lirismo cômico e divertido sobre o lazer. Sobre o passatempo. Sobre o samba.


O mesmo tom hilário e descontraído, como uma história contada em uma roda de amigos num sábado à noite, continua sendo um alicerce. Uma introdução lúdica, que dá asas à imaginação do ouvinte a partir da sutileza e da originalidade, monta o ambiente interno de Samba do Boiadeiro. Sutilmente agitada, a música é imersa no universo do forró, proporcionando ao ouvinte identificar ritmos que vão do baião ao xaxado. Mas há outro detalhe importante. O coro feito entre Pedro Patrocínio e Uyatã Rayra entrega um ingrediente agridoce que engrandece a sonoridade ao encantar o ouvinte e contagia-lo a ponto de este querer cantar em união às vozes. De um lado, o coro entoado pelos cantores cria um clima religioso, quase uma imersão no campo da umbanda, que, a partir dos elementos percussivos, os quais ainda se somam com o pandeiro de Iraldino do Pandeiro, e das palmas de Bié e Dona Santinha, se torna um mantra macio e alegre.


De repente, uma nostalgia. Assim como em Cheguei no Centro, Aboiador faz, em Aboio Pra Bié, um canto de aboio como se estivesse celebrando o retorno de Bié à roça e, ao mesmo tempo, comemorando a possibilidade de poder ter a companhia dele consigo novamente. E no que tange a roupagem, ela segue a mesma linha. Sino, cowbell e triângulo são os elementos de criar além de uma paisagem bucólica, mas um lugar que é possível até mesmo sentir o chão de terra, o odor do capim e a textura da madeira da porteira.


A percussão puxa novamente o ritmo. E a sanfona se pronuncia em seguida trazendo compasso e conforto aos ouvidos, mas ao mesmo tempo traz estímulo para a dança do forró.  Com base no xaxado, a melodia de Bonito e Carinhoso de apresenta de maneira linear, mas enfeitada pela percussão da zabumba e da conga, instrumentos que dão o swing necessário para a faixa. 


Logo de cara se nota uma harmonia mais complexa. Não há apenas os instrumentos que o ouvinte estava habituado a identificar nas faixas de Bié dos 8 Baixos. Apenas pelo fôlego de Nilton Azevêdo se percebe que, ao lado da sanfona, a tuba e a flauta caminham juntas criando uma atmosfera florida e de cheiro doce. Apesar dessa roupagem alegre e sincopada, o que a letra oferece é uma reflexão sobre comportamentos ainda existentes em partes tanto do Brasil quanto do mundo. Contada pela voz de Dona Santinha, Fui na Macumba conta a história de Margarida, uma mulher que, lutando para manter o casamento, ameaça voltar à casa dos pais caso o marido a agrida novamente. Com ênfase trazida pelo coro formado por Letícia Peixinho, Rayra e Maiara do Carmo, a faixa narra ainda outras opções encontradas pela personagem em manter ou vingar-se pelas mazelas que passava ao lado do companheiro. Sem dúvidas, é uma crítica ao machismo estrutural encrustado na sociedade brasileira.


Bié dos 8 Baixos é indiscutivelmente um disco que exala melodia e brasilidade. É belo pela simplicidade lírica e interpretativa. Robusto pelos elementos sonoros. Admirável pela propagação da sonoridade nordestina e encantador pela harmonia existente entre os músicos que compõem cada uma das sete faixas.


A química existente entre eles faz o ouvinte se sentir como parte da família ou, com certo grau de distância, cheio de intimidade na roda de amigos proporcionada por Bié em sua empreitada musical com produção assinada por Rayra. Esse entrosamento só é possível de ser notado por conta do trabalho de mixagem.


São muitos elementos sonoros. E por isso, o desafio para fazer com que todos os instrumentos sejam notados é grande. Mas a tarefa foi bem executada por Patrocínio. Por meio de suas mãos, cada sonoridade pôde ser ouvida tanto separadamente quanto em conjunto. É justamente no conjunto da obra que o ouvinte é levado para uma viagem pelos ritmos brasileiros.


É verdade que Bié destaca nas canções que existe samba. O samba que por ele é referido se trata no movimento, na cadência das canções estruturadas pela conjuntura sonora. Afinal, o que Bié dos 8 Baixos tem é xaxado, é baião, é xote. A impressão que dá é o de estar em uma festa junina.


Basta saber então que a festa junina em si é uma ocasião em que se toca os ritmos do nordeste que o ouvinte logo se dá conta do quanto a festividade é rica não só pela culinária ou vestimenta, mas também no campo da música. O nordeste tem muito mais que acarajé e isso Bié conseguiu mostrar.


Conseguiu mostrar, inclusive, que ainda existe machismo e violência doméstica. Que existe êxodo rural. Que existe viagens para se conseguir o ganha pão. Mostrou uma realidade pouco observada nas sociedades brasileiras do sudeste e sul, mas que ainda é muito comum nas outras regiões, especialmente no norte e nordeste.


A arte de capa vem para fechar essa soma elementar em algo cativantemente ilustrativo para atrair não os ouvidos, mas os olhos dos ouvintes. Feita em união entre Eduardo Quintela e Don Guto, ela mostra o principal do disco: a simplicidade. Porém, a partir dos elementos que compõem a capa existe menção à pobreza social contrapondo à riqueza de alimentos naturais do nordeste. Suas cores vivas transmitem alegria. Sentimento de direito de todos a ser sentida, mesmo nos momentos difíceis. 


Lançado em 15 de junho via Banana Atômica, Bié dos 8 Baixos é aquele trabalho singelo, mas que exala uma alegria resplandecente  que encrusta no ouvinte de uma maneira que o sorriso se fixa. Ao mesmo tempo, com ele Francisco Sena quis informar e desmistificar. Dentro do humor, do descompromisso, da sutileza e da simplicidade existem fatores que devem se tornar escassos. É esse o recado final que Sena dá.

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Sobre o crítico musical

Diego Pinheiro

Quase que despretensiosamente, começou a escrever críticas sobre músicas. 


Apaixonado e estudioso do Rock, transita pelos diversos gêneros musicais com muita versatilidade.


Requisitado por grandes gravadoras como Warner Music, Som Livre e Sony Music, Diego Pinheiro também iniciou carreira internacional escrevendo sobre bandas estrangeiras.