NOTA DO CRÍTICO
Seis anos depois do lançamento de seu último álbum, o quinteto paulistano Paura enfim anuncia seu novo material. Intitulado Karmic Punishment, o trabalho, que foi concebido durante o período pandêmico, consiste no oitavo disco de estúdio do grupo e sucede Slowly Dying Of Survival.
Os sinos guturais badalam e rompem o silêncio incômodo que paira por uma cidade de veia medieval. Pelas ruas desertas e moldadas em pedregulhos, um sussurro tenebroso é ouvido enquanto uma curiosa mistura entre o drama e o transcendental é fornecida em uma introdução tensa. Eis que o fogo começa a tomar conta do lugarejo amolecendo as paredes e criando um caos sem participantes, mas de senho raivoso. Isso é perceptível através da fusão do riff áspero e grave das guitarras de Rogério Rodontaro e Ubirajara Pironi com chimbal aberto e sujo da bateria de João Limeira. Sombria e trevosa, a faixa-título tem seu enredo contado por uma voz rasgada, rouca e de despertantes urros guturais vindos de Fábio Prandini. Incendiária, a faixa-título amadurece como um produto hardcore ríspido e amedrontador que dialoga sobre a generosidade e o aproveitamento maléfico dessa virtude cuja base sínica é escondida atrás de um semblante transfigurado em coitadismo. Tanto a decepção da maldade e o preço a se pagar pelas atitudes exercidas são fatores englobados nesse enredo ardente e raivoso.
Introduzida pela reprodução de uma conferência apresentada por uma voz feminina que dialoga brevemente sobre humanização, a canção logo começa a fazer tremer os paredões rochosos. De temática sutilmente mais sombria que aquela da canção anterior, a faixa é protagonizada por uma interpretação de tom absurdista e repleta de uma cadência rítmica desenhada pelo uso de bumbos duplos. Sendo composta pela mescla de um timbre gutural vindo de Jê Landini, Last Response soa como uma crítica bruta e densa ao personalismo, à luta de classes, ao gap econômico-social, ao preconceito monetário, à impunidade. Last Response é um levante sensato de pessoas humildes que querem apenas assegurar o senso de igualdade e respeito.
É como a luz do Sol se esforçando para abrir brechas em meio à densa camada de nuvem cinza. Entre trovões e relâmpagos, a paz está acima do caos, mas em uma luta injusta para alcançar seu espaço. Com direito a frases solitárias que garantem rápidos protagonismos ao baixo de groove magro, grave e sutilmente estridente de Paulo Demutti, Retaliate não dá chance de respiro e imerge em uma ambiência cheia de insanidade, agressão e sujeira. Misturando o death metal e seu tradicional azedume em sua receita melódica, a faixa ainda conta com Anderson Nego e seu gutural de raspas curiosamente melódicas em meio à desordem. Nesse ínterim, Retaliate é o empoderamento, o enfrentamento da intolerância e a contestação de todo o ato insano que dela se origina. A verdadeira face de uma sociedade ludibriante em sua aparência benévola, altruísta e tolerante.
Uma sirene de ambulância é ouvida ecoando pelo ambiente. Pode ser um aviso de caos, mas também de esperança, expectativas que, tão cedo intrigam o ouvinte em sua ansiedade por desvendar um enredo ainda enigmático, consegue produzir mais palavras do que um verso cantado. Em pouco tempo, a bateria aparece com um groove cadenciado e sujo ao lado de um baixo seco e de groove quase mudo de maneira a, mesmo que de forma tímida, flertar com a estética de Epic, single do Faith No More. Depois que Prandini entra em cena com uma rouquidão quase gutural pronunciando o primeiro verso, a canção assume ares nebulosos, ásperos, mas curiosamente melódicos em seu aroma metálico. Transitando entre o metal e o thrash metal, The City Is Ours é uma obra imponente, raivosa e que beira uma postura de ordem. Como uma espécie de linearidade velada, a canção segue com o intuito esperançoso lançado como uma das interpretações do sonar da sirene inicial. É verdade que a faixa beira o caos em sua melodia, mas, no fundo, ela consiste em uma obra pura, bondosa e que visa incentivar a capacidade de sonhar livremente e de ter esperança mesmo quando parece que Deus não nos dá atenção. A sensação de coitadismo é uma das piores armadilhas para alguém emocionalmente instável e sonhar possibilita um repouso em relação às dores do cotidiano.
Cavalgante, suja e ríspida. A introdução bebe de uma insanidade crescente que escorrega em uma maturação linear metalizada que, em dado momento, surpreende pela quebra rítmica. É o ponto em que Aftermath se permite entrar em ambientes mais melódicos, mas sem perder o rancor e a raiva. Por isso, entre o metal e o metalcore, a canção é, assim como Last Response, outra obra de Karmic Punishment a dialogar sobre a luta de classes. Aqui, porém, existe mais profundidade e sensibilidade. Afinal, a presente faixa, além de trazer uma busca por justiça, ela é igualmente carregada por uma densa veia de vingança da própria ausência de justiça e igualdade. Aftermath é, então, o desejo da reconstrução da sociedade de maneira que todos estejam iguais perante a questão monetária, o que, de certa forma, bebe de parte da filosofia do socialismo.
O crocitar dos corvos é ouvido ecoando pelo ambiente então solitário. Sem tempo da assimilação completa da proposta cenográfica, um rompante bruto, áspero e insanamente embebido em raiva toma conta de todo o contexto. Entre incessantes pedais duplos e um misto de hardcore e death metal executados à máxima potência, We Won’t Be Sold é uma faixa de sabor azedo que dialoga sobre a sensação de não pertencimento frente uma realidade de sucesso financeiro. Com uma postura de resistência, a canção defende os interesses daqueles que por ventura se sentem ludibriados pela falsa expectativa de mudança de vida. Ao mesmo tempo, porém, ela representa também a essência daqueles que levam suas vidas com simplicidade e honestidade, ainda que o coitadismo, em We Won’t Be Sold, esteja presente em sua base de diálogo.
A rispidez das guitarras, o punch seco da bateria e a estridência do baixo já comunicam, na melodia introdutória, que o thrash metal é um dos subgêneros que regem o enredo melódico da presente canção. Depois de um rugido de abertura crescente, a faixa entra em uma conjuntura sonora que, apesar de melódica, é como uma faca afiada rasgando qualquer intenção de maciez. É assim que Time Heals No Wonder se assemelha com a estética proposta em Symphony Of Destruction, single do Megadeth. De desespero agoniante, a faixa tem na presença de Felippe Max e seu timbre tão rasgado, grave e gutural quanto o de Prandini, a finalização de um desenho que narra a sensação de uma vida desperdiçada e sem brilho. É a melancolia do lancinante senso de inutilidade.
Rápida, ríspida e de um hardcore insano. Entre transições de um metal brutal, Deserve The Planet apresenta uma guitarra solo que tenta, sem sucesso, se manter sobressalente em meio ao caos destruidor e inserir sutis sonares de uma aspereza melódica. Deserve The Planet surge com um enredo de dupla possibilidade de interpretação, podendo representar o descaso em relação à saúde dos insumos naturais do planeta quanto uma reflexão sobre o merecimento de algumas pessoas, tendo em vista suas atitudes degradantes, poderem viver no Planeta Terra.
Assim como Last Response, a presente canção tem sua introdução construída através da reprodução de um discurso de sentenciação de prisão feito por uma voz feminina. Sem demora, o hardcore chega robusto e afiado em seu tom raivoso. De cadência mais paulatina em relação àquelas de Retaliate, Aftermath, We Won’t Be Sold e Deserve The Planet, a faixa é embebida em linearidade e rompantes propositadamente dissincrônicos que beiram o caos. No Face No Case é a inversão da realidade. É uma espécie de anacronismo regado pelo caos fertilizado pela falta de representatividade.
A mesma voz feminina retorna com um discurso em prol da igualdade. Como trovões sonorizando o caos. Como relâmpagos rasgando o céu. Como clarões representando a raiva de Zeus. World To Be Free acaba apresentando uma ambiência semelhante àquela de No Face No Case, com seu hardcore ríspido, mas de cadência amaciada em sua própria ira. De transições regidas pelo prolongamento da distorção da guitarra em união a uma bateria cavalgante e um baixo estridente, World To Be Free é simplesmente o desejo por um mundo melhor, sem julgamentos. Um lugar em que a imperfeição não seja sinônimo de desmerecimento e onde a inveja não impeça o progresso do indivíduo.
Enquanto as guitarras surgem em rompantes rasgados, o tilintar do cowbell aparece propositadamente desgastado de forma a, junto ao chimbal aberto e sujo, sugerir uma breve imersão no campo do nu metal. Depois de um grito curiosamente melódico, mas não limpo, a canção se matura como um hardcore misto de thrash metal de estética cuja degustação é mais fluida. Com direito a frases azedas de um embrionário death metal, Day Of Reckoning, assim como World To Be Free, dialoga sobre a convivência com o próprio fracasso, mas aqui sem o julgamento alheio.
A bateria surge em trotes mudos que fluem para uma melodia bruta, mas, tal como aconteceu em The City Is Ours, constroem um ritmo perigosamente contagiante.Entre frases de protagonismo do baixo estridente, que dá uma textura densa a mais ao ambiente, XXV é uma música de lirismo curiosamente tocante cujo enredo tem uma base no conceito do êxodo rural. Um produto que traz uma representatividade aos peões, aos profissionais do chão de fábrica. Àqueles que fazem acontecer, nascer, progredir. Que viajam para ter o ganha-pão e ficam muito tempo distante da família em ciclo vicioso da falta do afeto, mas também da liberdade. XXV é um pedido singelo de reconhecimento desses profissionais por parte do governo e da bancada econômica.
Uma voz masculina e incompreendida é ouvida a partir da reprodução de uma rápida frase. Eis que, de maneira surpreendente, o baixo tem o seu máximo e verdadeiro protagonismo em relação a todo o enredo de Karmic Punishment. Aqui, ele não apenas desenha a base ou é mais um elemento da introdução. Ele é a peça-chave do amanhecer, aquele detalhe que dá cor, corpo, ritmo e swing. De groove encorpado e de um grave curiosamente sensual, o instrumento traz consigo uma veia grunge que muito remete à estética de Jeremy, single do Pearl Jam. Surpreendendo pela segunda vez, Free Speech Is Not Hate Speech flui para algo verdadeiramente melódico com generoso acréscimo de drama. Com a sobreposição de uma guitarra aguda lamentosa e cujos dedilhares fazem com que a conjuntura sonora remeta à estética rítmica criada pelo Metallica, a faixa rompe com o melodrama assim que a introdução se encerra. Esse é o momento em que Free Speech Is Not Hate Speech retoma seu hardcore bruto padrão, áspero e raivoso, mas com direito a um refrão contagiante e curiosamente de cunho comercial. Dialogando sobre uma espécie de cegueira moral, a canção é mais um produto do álbum a abordar a intolerância, mas aqui com o acréscimo da reflexão acerca da liberdade de expressão. Uma obra que defende a liberdade e condena o ódio.
Ele é bruto, ardido, estridente. Incendiário, raivoso, lancinante, afiado. Karmic Punishment é um material intenso que, sobre bases melódicas insanas, traz consigo um discurso que condena diversas práticas de uma sociedade que vive em um ambiente onde o dinheiro é quem manda.
Não é difícil perceber sua veia socialista em meio às suas críticas à luta de classes, ao personalismo e ao menosprezo dos menos favorecidos. É justamente nesses quesitos que o material se assemelha com o mesmo tom de rechaço ao modelo capitalista encontrado tanto em La Civilisation De La Graine e, em menor grau, Life Is But A Dream….
Existem algumas ressalvas a serem feitas, no entanto. Admirável é, de fato, a intenção de representar a classe menos favorecida e a desejar um necessário e urgente senso de igualdade e liberdade em uma sociedade regida pelo autoritarismo e intolerância, mas não há motivos para exageradas noções de coitadismo.
O coitadismo existe e, por vezes, é útil por evidenciar determinados gargalos em uma sociedade que esconde suas imperfeições. Por outro lado, ele pode desmerecer ainda mais um determinado grupo por diminuir a luta, a vontade, a resistência e a própria resiliência que ele possui na batalha pela conquista de melhorias em suas vidas.
Ainda que essa enfermidade psicológica esteja bem presente no álbum, Karmic Punishment é lembrado pelo seu sonho de mundo ideal e por um raivoso desejo de vingança aos mais favorecidos que, pelos enredos líricos, são trazidos como indivíduos que ignoram e menosprezam todos aqueles que estão a um nível social e econômico abaixo do seu.
Para dar embasamento a esses diálogos, o Paura se aliou a Thiago Bezerra na aquisição da sonoridade ideal. Por meio do profissional, que ficou encarregado da mixagem, o álbum apresentou uma mistura rítmica suja e intensa que compreendeu subgêneros como o metal, o thrash metal, o death metal, o metalcore, o nu metal, o grunge e o hardcore, sua base-mãe.
Fechando o escopo técnico do álbum, vem a arte de capa. Assinada por Alexandre Kool, ela traz um plano de fundo trevoso, cujo primeiro plano consiste em um compilado de imagens mórbidas, sombrias e até mesmo infernais. É uma chocante ilustração da punição que aguarda todos aqueles que não tratam o próximo como um igual.
Lançado em 03 de julho de 2023 via Canil Records, Karmic Punishment é um material insano, denso, drástico, ríspido e azedo, mas cujo coração é puro e deseja ardentemente por um mundo regido pelo senso de igualdade e respeito. Não há dúvidas que ele incomoda e que choca o ouvinte, mas esses artifícios são necessários para refletir sobre a generosidade e o senso de humanidade em um ecossistema em que o dinheiro dá a palavra final.