NOTA DO CRÍTICO
Ele é fruto indireto da pandemia e do processo introspectivo nascidos a partir de um isolamento por ela obrigado. Letrux Como Mulher Girafa é um material que, sem a intenção de se tornar um álbum, se transformou no terceiro álbum de estúdio da cantora e compositora Letrux.
Não há base melódica, não há som, apenas o silêncio branco. Porém, uma voz doce, tranquila e amena rompe o breu com sutileza. É Letrux que, entre sobreposições vocais ecoantes, traz um canto de estética quase mântrica que faz do interlúdio {Introdução Ao Reino Animal} uma pequena obra provocativa à liberdade. Uma faixa que, aparentemente, porém, aborda em poucas palavras a falsidade de maneira questionadora.
O timbre sege sereno e leve, mas agora ele é acompanhado de som, um som que, a partir do sintetizador de Arthur Braganti, traz acidez na forma de synth-pop. Inserindo pitadas de sujeira e movimento ao compasso melódico, a bateria de Lourenço Vasconcellos coopera com a sensação de linearidade estética. Entre o sonar decrescente de notas de piano, As Feras, Essas Queridas se matura como uma canção dançante que, de forma curiosamente cômica, traz a raiva como elemento central de uma atitude visceral, provocativa, sensual e ardente. É o extravasar do desejo e do instinto primitivo do prazer. É a vez da cobra devorar as algúrias.
O canto da ave oferece frescor e sutileza, quesitos que são amplificados pelo sonar suave do sintetizador. Com uma interpretação inicial visceral, Letrux, sem demora e intercalando os idiomas português e inglês, mostra um enredo sobre a quebra rítmica das emoções, a dissincronia entre sensações. Surpreendendo com uma quebra rítmica quase brutal, Louva Deusa se torna repentinamente um produto swingado e dançante com direito a batuques de bongôs e atabaques vindos de Jéssica Zarpey. Louva Deusa é o difícil dizer que os amores não são iguais e que aquilo que um sente não é o mesmo para o outro. As diferença, as decepções, as dúvidas. A faixa é simplesmente o som do respeito às emoções.
De voz grave e de teor teatral, Letrux entra em cena na companhia do piano em um ambiente que quase recria o aroma de casas de jazz. Como um interlúdio que captura a espontaneidade dos integrantes, {Intervalo Da Pantera Megera} é uma curta obra que mistura noções de desejo, egoísmo e imponência.
A bateria surge solitária a partir de um compasso macio e swingado que, logo, é acompanhado pelas notas graves e espaçadas do piano. Evoluindo para um ambiente minimalista e de densa dramaticidade, a canção traz a cantora em um tom sufocante e claustrofóbico enquanto proporciona uma quebra no torpor por meio da acidez da guitarra de riffs pontuais de Navalha Carrera. Sob a estética blues, Formiga oferece um enredo que, novamente transitando entre o português e o inglês, Formiga aborda, através de rimas, a incapacidade de aceitar e agradecer a felicidade. De base lírica no desejo pelo amor e por uma metafórica entrega carnal, Formiga traz o lascivo em meio à incerteza da produtividade do relacionamento.
Ácida como a recriação de uma ambiência setentista dançante. Enquanto o sintetizador desenha as silhuetas de um perfeito synth-pop, a estridência do sonar do sitar traz uma nova textura ao dulçor embriagante. De levada linear introduzida pelos beats de João Brasil, a canção surpreende por apresentar uma voz grave que traz sensualidade ao contexto melódico. É Lulu Santos, com uma interpretação lírica falada, dando as primeiras pistas do assunto a ser tratado na canção. De base contagiante, Zebra é a liberdade no relacionamento, nas experimentações do coração e nos desejos do corpo. É uma faixa que evidencia um personagem de peito aberto e não pertencente a apenas um indivíduo, um senso de autoconfiança e autoestima que amedrontam e chateiam aqueles de emocional mais sensível e dependente, como o coadjuvante que lamenta ter sido só um caso da protagonista de Zebra.
O violão vem com um riff macio, doce e sereno que, curiosamente, relembra tanto aquele desenhado por Dado Villa-Lobos em Pais E Filhos e Hoje A Noite Não Tem Luar, singles do Legião Urbana, quanto o feito por Nuno Bettencourt em More Than Words, single do Extreme. Fora as semelhanças estéticas, em {Intervalo Do Ovo Ou Da Galinha} é outro interlúdio de Letrux Como Mulher Girafa e traz a cantora em uma interpretação lírica adocicada e introspectiva que expõe a essência de seu ser, sua grandeza e sua vicissitude.
Sonares bojudos, crescentes e de uma estridência nascente rompem o silêncio introdutório até que a cantora entra em cena com um timbre propositadamente azedo e cujas pronuncias em inglês beiram o deboche. Regida pelo sonar do batuque do atabaque e bongô, bem como o chacoalhar do caxixi, a canção é de uma cadência rítmica penetrante e cujo sintetizador não deixa fugir a veia synth-pop da estética melódica. Crocodilo, como a primeira canção do álbum a ser narrada inteiramente em inglês, assim como em {Introdução Ao Reino Animal}, mas em doses mais explícitas, dialoga sobre a falsidade ao mesmo tempo em que mescla um senso de imponência, resiliência e persistência. Um título que acaba também refletindo sobre o mistério da vida.
Sensual e macia, o interlúdio traz uma Letrux de vocal limpo que, por veze, beira o empostado na simetria proposital de ampliar o senso de sensualidade expelido pela canção. Assim como o entre-faixas {Intervalo Da Pantera Megera}, {Intervalo A Respeito Do Faro Da Girafa} possui um grande viés de espontaneidade enquanto dialoga tanto sobre a aquisição da virtude da paciência quanto do desejo inconsciente de fuga ofuscado pelo ato falho da provocação sensual.
Um sonar ácido, psicodélico e abafado é ouvido em uma altura fixa até que, de repente, ele tem um salto gradativo nítido de decibéis. Com a presença do veludo do lap steel e do tilintar do carrilhão, a canção ganha texturas até então inéditas aos contextos melódicos do álbum e deixa a música comunicar uma estrutura macia de base blues. Aranha é uma faixa que mistura metáfora com experiência de vida, com observação. Uma música construtivista que tenta fazer despertar no ouvinte um senso de reparação e reconstrução ante a loucura, o ódio e a raiva. Acolher e não rejeitar. Entender e não ignorar. Integrar e não alienar. Aranha é, portanto, uma obra que mostra que a adaptação é uma virtude de pessoas emocionalmente fortes e equilibradas.
Alegre e contagiante, a canção se inicia com um groove sorridente unido às teclas agudas e sincopadas do piano. Depois de o carrilhão liberar um sobrevoo suave e tilintante na melodia, a canção tem estruturada a transição entre a introdução e o primeiro verso, momento em que a guitarra dá o ar da graça inserindo um riff capaz de romper com o dulçor, mas manter a suavidade melódica através da inserção singela de um nascente soft rock. De estética atraente, Leões possui uma conjuntura rítmico-melódica que a torna um primeiro grande single de Letrux Como Mulher Girafa e dialoga sobre a relação com o passado e sua influência no presente, com os impulsos do coração, do desejo. De outro lado, Leões parece refletir e representar os diferentes leões, na forma de metáfora às pessoas fortes e inspiracionais, existentes no universo social, como os campeões, os corajosos e até mesmo os que visam anonimato.
Com um piano de notas sincopadas, a canção toma ares cenográficos e teatrais ao passo que Letrux entra com um vocal empostado e de pronúncia arrastada de maneira a promover sonares roucos no final de algumas palavras. {Intervalo Que Pode Abocanhar} é outro interlúdio do álbum que, na ocasião, retrata o enxame de pessoas cruéis e traiçoeiras, mas também covardes existentes no meio social.
De acidez adocicada, mas curiosamente nauseante vinda do sintetizador, a canção é embebida em um profundo synth-pop de movimento macio e contagiante graças às linhas groovadas da bateria. Surpreendentemente, mas como um susto, um súbito, um repente, o baixo de linha grave e levemente bojuda de Thiago Rebello é ouvido como uma peça crucial na transição entre o pré-refrão e o refrão. Chegando ao seu ápice com um instrumental de harmonia dramática e swingada a partir da fusão do soft rock e o synth-pop com direito a um sintetizador imitando o som do rhodes, Hienas é uma canção cujo enredo traz um personagem vítima do egoísmo alheio, da falsidade emocional em prol da benfeitoria unilateral e posterior descarte frio e insensível. Repleta de rimas, Hienas tem um ar de decepção, mas não lamentoso ou sofrido e, sim, em um tom de pena, afinal, quem por hora foi a vítima é, na verdade, mais forte do que o caçador, que vive em um falso senso de superioridade e autoestima.
O beat é simples em sua marcação, mas ainda assim consegue construir uma cadência contagiante. Atraente mesmo quando o sintetizador entra inserindo notas de torpor, ele mantém sua linearidade como consistência para um enredo narrado por uma Letrux de timbre aberto e nasal. Abelha é uma canção que dialoga sobre a ausência do caráter de confiabilidade na sociedade, mas também trata da fertilidade como forma de trazer alusões ao renascimento e à esperança. A polinização como ato de perseverança.
Nauseante, hipnótica e groovada. Os tempos de brilhantina voltaram com a apresentação de um ambiente puramente dançante em sua silhueta new wave. Trazendo o sintetizador como protagonista absoluto em sua recriação do som do teclado, de maneira a rememorar a icônica frase criada por Eddie Van Halen em Jump, single do Van Halen, Teste Psicológico Animal é onde Letrux se coloca de forma transparente. Uma faixa que, ao trazer pitadas políticas e críticas às instabilidades políticas e sociais do Brasil, a cantora reflete sobre o julgamento de terceiros a respeito da forma como as pessoas são. E se fortalecer a partir do deboche é a melhor forma de calar os responsáveis pelo assédio moral.
O mesmo fundo de crueza dos outros interlúdios se faz presente nesse lapso melódico criado pelo violão de notas graves de Thiago Vivas. De interpretação lírica embriagada e cambaleante, Letrux exala um misto de deboche e espontaneidade ao fazer de {Encerramento Com A Obviedade Humana} a evidência de que todos os indivíduos possuem um bicho-símbolo, aquele que representa toda a essência do ser sob um viés animalesco.
Ele é dançante, animado, psicodélico e debochado. Porém, ele é muito mais do que um produto de texturas e melodias ácidas. Letrux Como Mulher Girafa é um álbum regido por algo que pode ser chamado como metáforas simbolistas ao apresentar uma cantora que usa da chacota como sua própria força interior.
Ridicularizada pela sua altura e pejorativamente chamada de girafa, Letícia Novaes, ou Letrux no meio artístico, se fortaleceu a partir de uma ação que poderia derrubá-la. E o álbum é o próprio atestado musicado desse processo de conquista de autoestima e autovalorização.
Por vezes se usando de imponência, por outros da confiança e por outros do deboche, a cantora escolheu mostrar, entre metáforas, simbolismos e enredos lascivos e socio-analíticos, que a sociedade é repleta de animais. Cada um com sua característica, a partir da observação de Letrux é possível perceber que, em uma comunidade plural, a essência das pessoas é como os próprios bichos.
Não à toa que a cantora se utilizou, entre outros animais, da formiga, da abelha, da hiena, do leão, da aranha e da zebra para dialogar sobre a falsa noção de não merecimento do que é bom, sobre esperança, falsidade imponência, aceitação e liberdade corporal. Tudo a partir de um senso espontâneo e teatral.
Para trazer mais eficiência na compreensão desses diálogos, Letrux empregou Paulo Emmery na engenharia de mixagem para dar vida às ambiências estéticas de Letrux Como Mulher Girafa. Em 16 faixas, os enredos transitam entre o synth-pop, a new wave, o soft rock e o blues de maneira a, inclusive, evidenciar a influência de Cazuza e Rita Lee no estilo de canto adotado pela vocalista.
Fechando o escopo técnico, vem a arte de capa. Assinada entre Katja Tauebert e Giulia Fagundes, atesta o estado de desleixo de Letrux em relação ao julgamento alheio referente à sua altura e a evidencia vestida apenas com uma legging com listras de girafa. É a sintonia com toda a mensagem de superação e autoestima emanados pelo álbum.
Lançado em 30 de junho de 2023 de maneira independente, Letrux Como Mulher Girafa é a verdadeira confirmação da autoestima de uma pessoa que tinha tudo para sofrer pelo assédio moral sofrido. É um álbum que, soando quase como uma autoanálise teatral, pede liberdade, aceitação e que discute comportamentos sociais nocivos. É o segredo lançado aos quatro ventos de que a girafa, antes mesmo de ser uma ofensa, é, na verdade, símbolo de imponência, beleza, excentricidade e exuberância.