Ana Maria e Bel - Memórias De Carvalho

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Ele se vende como um projeto multimídia de brincadeiras cantadas. Intitulado Memórias De Carvalho, o trabalho marca a inserção das irmãs Ana Maria e Bel Carvalho ao mundo da música. Material foi elaborado a partir da interação das irmãs com educadores, parentes e crianças.


É como um despertar alegre e banhado por uma luz solar rejuvenescedora. Em grande tom folclórico e ao mesmo tempo suave e adocicado, a sanfona de Edu Guimarães entra entregando, mesmo sem palavras, a energia do enredo que está prestes a ser narrado. Didaticamente e, principalmente, ludicamente narrativa, Lavadeira é uma faixa que tem seu dulçor amplificado pela delicadeza da flauta transversal de Toninho Carrasqueira e sua melodia transformada em um caldeirão de texturas cristalinamente delicadas a partir de elementos percussivos empregados tanto por Noel Carvalho quanto por Ariel Coelho. Com um delicioso misto de samba e xote em que a conga e o pau de chuva abrilhantam a melodia, Lavadeira é, sob a voz aberta e levemente grave de Ana Maria Carvalho, o recorte de um momento para muitos desvalorizado, mas que muito carrega de cultura e comportamento: o ato de lavar roupa. E aqui, essa atividade tem grandes toques de sertão e de pureza de espírito.


Êta trem baum. Essa é uma frase bastante coloquial para um momento de intenso ânimo em festas juninas, algo muito incentivado pelas animadas canções de xote, baião e xaxado. Aqui, porém, Ana Maria e Bel Carvalho oferecem ao ouvinte um brinde de exaltação. Puxada pela aguda e doce flauta, a canção logo já apresenta versos líricos bem cadenciados e até mesmo grudentos e, consequentemente, cativantes. Tendo o coquinho e o tilintar sincopado do triângulo como elementos que abrilhantam o compasso rítmico, Para Dentro E Para Fora pode apresentar dois lados de enredo. Um é uma descrição lúdica do ato de lavar e esfregar janelas, mas também que, indiretamente, incute noções de respeito e responsabilidade. O outro soa como um incentivo à dança e ao companheirismo. Tanto um quanto o outro fazem de Para Dentro E Para Fora um material puramente cativante, a tornando o primeiro single de Memórias De Carvalho.


Puxado pelo tamborim e amadurecido com o dulçor da flauta e o pandeiro, Coqueiro Tão Alto já vem com uma base samba bastante macia e contagiante, mas sem o ânimo exalante de Para Dentro E Para Fora. O dueto formado entre Ana Maria e Bel não apenas oferece uma harmonia bela, mas também deixa o conteúdo lírico que profere mais lúdico, penetrante e até mesmo possibilita abrir as portas da imaginação. O interessante, nesse ínterim, é o sonar estridente e pontual do apito entregando diferente textura e rompendo com o dulçor quase embriagante. O instrumento funciona quase como o retorno da consciência por parte do ouvinte. De ritmo dançante, Coqueiro Tão Alto é uma cantiga poética e rimada que soa como um pedido da personagem central, a viuvinha, ao coadjuvante, o coqueiro. É como se um funcionasse como fonte dos desejos, mas ao mesmo tempo representasse o libertar do desabafo. 


Em seu despertar, um novo elemento é cristalinamente audível. O violão sete cordas de Helô Ferreira não apenas traz um grave interessante, mas funciona como um perfeito abre-alas para um samba xote bem marcado pelo surdo. No escopo melódico, porém, é o caxixi que rouba a cena como principal elemento da criação do compasso rítmico de Bom Barquinho, uma música que conta, ainda, com um coro infantil de seis vozes que cria um enredo que soa quase como a herança de Ciranda Cirandinha e Cai, Cai, Balão, canções de Heitor Villa-Lobos e Assis Valente, respectivamente. É uma canção pura e ingênua como a alma de uma criança. 


Coloquial e pura. Chora Margarida tem uma doçura extra empregada pela flauta doce de Márcia Fernandes que se soma à flauta transversal de Carrasqueira. Além de ser uma canção minimalista, tendo apenas esses instrumentos, Chora Margarida é o ápice da simplicidade e da leveza que, com auxílio do trio sincrônico de vozes formado por Ana Maria, Bel e Aline Fernandes, conseguem, simultaneamente, contagiar e emocionar até o ouvinte mais frio e ranzinza.


O coaxar do sapo, que dá o nascimento da nova canção, é brilhantemente reproduzido por Leonardo Escobar. Em seguida, um vaivém de notas sanfonescas se faz ouvir de forma acelerada até encontrar o equilíbrio da cadência rítmica. Macia, suave e valsante, a melodia tem, novamente, a doçura da flauta como um contagiante elemento. Interessante notar que, a partir das notas do violão sete cordas, uma tímida, mas notável inserção de frases de axé também pode ser ouvida enquanto o ouvinte se delicia por um lirismo divertido e puro sobre um sapo que cozinha e dança. Eis aqui uma repaginada na cantiga Sapo Cururu, outra obra de Villa-Lobos agraciada em Memórias De Carvalho.


Sereno é o amanhecer do novo cenário. Graças à forma como o violão sete cordas se movimenta, o ouvinte consegue sentir um conforto quase extrassensorial. Surpreendentemente, a sincronia entre os elementos percussivos do bongô e da conga dá à cantiga Lagarta Pintada uma base melódica de bolero, algo até então não experienciado no álbum. Rimada e com direito a uma nova participação do coro infantil de seis vozes, a faixa tem um aroma doce de sertão.


Seguindo com o inédito, o que puxa o novo ambiente não é a dupla de vozes feminina ou a doçura da flauta, nem mesmo o grave compasso do violão. Aqui vem uma voz rouca e levemente grave trazendo uma nova textura à narrativa. “Olha a onça aí, senhor”, diz Tião Carvalho ao dar passagem para uma melodia mista e doce de forró e xote. Com um refrão cantado a quatro vozes, No Tempo Da Tiranica é, certamente, a canção mais ousada de todo Memórias De Carvalho, não por questões melódicas ou estéticas, mas por questões líricas. Ana Maria, Bel e companhia transformaram um evento histórico trágico e dramático em algo lúdico e contagiante. O desbravamento das terras brasileiras virgens por descobridores portugueses e do oeste europeu, a agressividade com que eles lidaram com a fauna, a flora e os povos nativos, bem como o senso de egocentrismo e egoísmo, são os temas abordados nesta curta, mas sutil cantiga.


Arrepiante. É assim que um coro harmônico em sua heterogeneidade de timbres transforma a introdução de Paparu em uma cantiga de temática candomblezeira. Ainda assim, a faixa se vende por um refrão marcante marcado pela repetição de seu título. Com a participação de Martinha Soares, Naloana Lima e Naruna Costa nos cantos da segunda metade, Paparu se confirma como algo simples, mas de ritmo e harmonias marcantes.


Um violão doce e swingado puxa a melodia açucarada com base no xote. Seus aromas florais funcionam como a luz solar banhando cada pétala de flor em um amanhecer despretensioso de verão. Com destaque para as texturas do reco-reco e do coquinho, Lá Vai A Bola é uma canção simples em lirismo, levemente complexa em melodia, mas, acima de tudo, lúdica.


Uma voz aguda, pura, ingênua e doce de criança ainda em aprendizado de fala puxa o primeiro verso de Cipó De Miroró, uma música que, tão logo, se mostra uma verdadeira festa. Animada, alegre e contagiante, a canção, com sua base dançante e marcada pelo coro infantil, traz principalmente a mensagem de igualdade entre as pessoas. Além disso, há o ensinamento para que as crianças façam um futuro calcado no altruísmo. 


Maravilhosamente surpreendente. Harmonicamente belo. Melodicamente contagiante. Liricamente simples. Memórias De Carvalho é uma história musicada que ensina e diverte. Uma obra que mistura literatura e música de maneira doce, suave, mas, principalmente, altruísta.


Educar tem sempre aquela ideia de algo maçante, chato e cheio de beabás. Porém, o que Ana Maria e Bel fizeram foi provar que é possível divertir e ensinar ao mesmo tempo. E nesse aspecto, por mais que o trabalho da dupla seja de fato focado para o público infantil e, por isso mesmo, mais simples, o álbum se assemelha fortemente ao caráter educacional e contagiante de obras como No Rio Dos Siris, Adeus Mundo Véio e até mesmo Livro Vivo.


Na forma de cantigas, Memórias De Carvalho mistura ritmos latinos dançantes como o xote, o axé e o samba com outras temáticas sonoras que passam pelo bolero e por cantos candomblezeiros. É assim que o material ensina a repartir, ensina sobre os bandeirantes, a aceitar as diferenças e a ser altruísta. 


É aí que entra o exercício de Pedro Romão. Com sua mixagem, o ouvinte, além de se deliciar com a pureza lírica do trabalho, consegue depositar a devida atenção a cada textura sonora presente nas 11 canções. Isso inclui até mesmo os variados elementos percussivos que, por muitas vezes, passam despercebidos.


Fechando o escopo técnico do álbum, vem a arte de capa. Assinada por Sofia Fajersztajn, ela é uma obra aquarelada em que a figura central se evidencia como duas imagens. Primeiro e o que salta aos olhos é, de fato, a representação de um carvalho, mas, ao olhar atentamente, a própria árvore se transforma no busto de uma mulher. Com feição suave, ela, com seus lábios grossos e seu cabelo blackpower, representa a comunidade preta brasileira, sendo assim mais um fator de ensinamento sobre inclusão que o álbum fornece às crianças.


Lançado em 17 de janeiro de 2023 de maneira independente, Memórias De Carvalho não tem amarras conservadoras ou morais. Ele é simplesmente um álbum que une literatura e música como um intuito de educar as crianças a partir de algo que entretenha e que seja valorosamente construtivista. É assim que Ana Maria e Bel oferecem um compilado de cantigas lúdicas e amplamente melódicas a quem quer se desprender de vícios comportamentais e ser alguém melhor.

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Sobre o crítico musical

Diego Pinheiro

Quase que despretensiosamente, começou a escrever críticas sobre músicas. 


Apaixonado e estudioso do Rock, transita pelos diversos gêneros musicais com muita versatilidade.


Requisitado por grandes gravadoras como Warner Music, Som Livre e Sony Music, Diego Pinheiro também iniciou carreira internacional escrevendo sobre bandas estrangeiras.