Sonora Fantasma - Adeus Mundo Véio

NOTA DO CRÍTICO
Nota do Público 5 (3 Votos)

União e cinema e música. Melodia e palavra. Reflexão e o presente. Pandemia e pré-pandemia. Essas uniões dicotômicas estão presentes em Adeus Mundo Véio, o disco de estreia de Sonora Fantasma, projeto idealizado por Diego da Costa e expoente do rock alternativo.


Chiados. Um narrador de voz estridente se pronuncia. Costa instaura um diálogo que propõe refletir sobre a morte, sobre a vida, sobre a ideia. Ambientado como se fosse um programa radiofônico com equalização típica dos anos 60, essa pausa para o ato de pensar dá passagem para uma brisa de ventos reconfortantemente nostálgicos. Responsável por essa energia, as notas aveludadas e melancólicas do piano tomam a dianteira, mas ao fundo, tal como um observador, está uma melodia que mistura drama com um princípio de caos anestesiante. Eis Intro Vida Morte Existência.


O chiado continua presente, mas por um breve período. Afinal, o que se segue é algo como uma queima de fogos em uma mescla de tons quente, pastéis e frios. É como se, afrente dos olhos do ouvinte, explosões se formassem e os abraçasse com suas fumaças multicoloridas. Rapidamente, o ritmo toma sua devida forma. Assume certo toque de swing, cadência e um suspense propositadamente estimulante. Uma das características marcantes de A Cigarra e a Formiga é a presença de não apenas uma ou duas, mas três guitarras criando uma atmosfera abrangente em tons, sensações e ambiências. Ao lado do convidado Bruno Cardoso, Costa e seu companheiro Rafael Sartori caminham livremente por entre o rock alternativo, punk e o indie rock. Aqui, existe a pura ilustração do cenário do aumento do desemprego por conta da pandemia e do consequente desespero do proletariado. Tudo a partir do ponto de vista lúdico e metafórico da cigarra e da formiga.


É como abrir os olhos embaixo da água. Sob o efeito ululante de suas ondas e da sensação flutuante, o ouvinte consegue enxergar, tocando a superfície, uma luz amena e acalentadora. A questão do conforto segue em latência a partir do sample, mas toma força com a entrada do riff tranquilo da guitarra, o qual é acompanhado por uma presença pontual, mas marcante do baixo. De voz sussurrada, o eu-lírico joga ao vendo um diálogo monólogo-reflexivo sobre a liberdade e as ações automáticas do ser humano que recebe a inclusão de um vocal suave como a brisa do vento ao entardecer de um dia de verão. É Soraia Félix imputando leveza e doçura a partir de um voz que funciona como personagem onipresente na canção. Eis então que, nesse ínterim melancólico, surge um bailar de notas de saxofone, o qual, trazido por Pedro Iuá Fontes, busca imprimir um contraponto de pensamento sobre a questão levantada em O Provável e o Possível, uma faixa melodicamente melancólica, mas que em sua totalidade harmônica representa, nada mais nada menos, do que o renascimento. O encontro da esperança com a assumição de uma consciência coletiva que busca um cenário de igualdade para a coexistência das diferenças.


Simplesmente uma bandeja de texturas. A base é sem dúvida calcada no blues, mas existem elementos sonoros que fogem da maturidade do gênero e imputam um ar de ingenuidade que faz com que o ouvinte acesse um êxtase quase alucinógeno a partir da melodia criada. Uma união de maciez e veludo com toques de exoterismo que chega a arrepiar os poros por sua simplicidade e harmonia. Com a companhia de Liz MC, Feira é um instrumental confortavelmente multissensorial. 


Notas melancólicas e tristes de piano são inseridas. Drama. Uma voz feminina e metalizada surge trazendo cenários que promovem raciocínios pensantes e reflexivos sobre o capitalismo e sua forma de exercício ao mesmo tempo em que traz a dúvida de se o socialismo seria a melhor opção. Dando roupagem para o assunto está uma sonoridade que mescla o caos, a anti-melodia, o temor e o incerto. Essa é a arquitetura de É Mais ou Menos Assim Que o Capitalismo Funciona.


Groove. Essa é a palavra que melhor define a introdução da faixa. Porém, apesar de as linhas do baixo se mostrarem em uma cadência acelerada, muito se vê da melodia de Bad Guy, single de Billie Eilish, em sua estrutura. Há aqui, também, um rock de toque retrô, pois ele recupera aquela sonoridade de um Brasil oitentista. Junto de Costa, que reflete sobre a vida real ante aquela apresentada ideologicamente nas instituições de ensino, vem uma voz que mistura o suave com o encorpado. É Bruna Soares que, por vezes trazendo um vocal mais aberto, apresenta, a partir de uma roupagem indie-alternativa, algo liricamente interessante. É justamente quando a melodia de Vento do Leste assume ares de uma agressividade controlada que, ao lado de Diego da Costa, Bruna exala sua vontade de querer ser imortal, mas ainda assim, morrer. Essa colocação diz muito da realidade atual: a dicotomia que se tornou infelizmente comum entre vida e morte, a vontade da vida eterna, mas também pela força de lutar por um recomeço. Importante também mencionar que o The Innernettes, com seu sintetizador, também foi uma peça marcante na conjuntura melódica da música.


Uma voz em eco repete, em sussurros, a frase ‘é preciso ser esperançoso’. No primeiro plano, vem uma guitarra de riff alegre que não apenas injeta ânimo, mas também imputa, de fato, esperança e felicidade na mente do ouvinte. Eis então que, para deixar marcada a passagem de É Preciso Ser Esperançoso, Costa enfatiza que não basta ter apenas esperança, mas sim ter a consciência de que o amanhã é feito a partir das ações, individualizadas ou não, das pessoas.


Com uma clara e indiscutível adaptação lírica, a introdução de O Fim da Grande Farsa / Adeus Mundo Véio é construída em cima da melodia de Blitzkrieg Bop, icônico single do Ramones. Com a entrada do primeiro verso, a faixa segue, a partir das linhas da bateria com base no pop punk, mas em função das guitarras há uma imersão na levada surf music mesclada com o blues. No que se refere ao vocal, ele se apresenta de maneira debochada tal como fez Dinho afrente dos Mamonas Assassinas, mas apresenta, ao mesmo tempo, questões sérias sobre o comportamento social e sobre política. De pré-refrão com toques psicodélico-progressivos, a faixa possui um refrão cuja estrutura sonora e cadencia vocal muito trazem de semelhança com Confortably Numb, single do Pink Floyd


É como o Sol. Como se o Sol estivesse despertando por entre as nuvens crepusculares do amanhecer. A batida da bateria, firme e precisa, já começa a desenhar a cadência da canção. Empolgante. Clara. Iluminada. A introdução de Mundo Novo, assim como aconteceu em O Provável e o Possível, joga feixes de esperança por entre os poros do ouvinte para que esse sentimento se enraíze em seus corpos e mentes. Nostalgicamente melancólica, Mundo Novo acaba por assumir um caráter blues tradicional a partir de uma levada lenta e macia. Quando um vocal feminino, aveludado e ululante toma a dianteira da melodia, o ouvinte se percebe embriagado pela delicadeza e sutileza construídas na conjuntura harmônica. Claudia Noemi insere, ainda, empostação e toques abertamente guturais na sua interpretação lírica. Como um produto unicamente sensorial, a faixa faz com que o ouvinte entre em transe com sua imersão synth-pop, mas também o faz temer e enrijecer. Ter esperança e receio. Tudo sempre na mesma medida. Tudo em equilíbrio para conhecer o desequilíbrio, o desconhecido. O novo mundo.


Assim como em O Fim da Grande Farsa / Adeus Mundo Véio, Costa assume, em Adeus Mundo Véio II, um caráter debochado. Aqui, porém a base da estrutura melódica recai sobre o xote, mesmo havendo, pelo teclado e baixo, flertes com o brega e o forró. Liricamente, a música possui, tal como em É Mais ou Menos Assim Que o Capitalismo Funciona, uma afiada crítica ao sistema político capitalista, mas aqui existe o adendo da corrupção.


Não é diversão. Não é passatempo. Não é história de ninar. Apesar de ser tragicômico e debochado em alguns momentos, o que Adeus Mundo Véio propõe ao ouvinte é pensar. Pensar sobre o efeito da pandemia. Sobre o efeito da meritocracia. Sobre o capitalismo e, por que não, o socialismo. O que esses fatores estão fazendo com a sociedade não é transformação. Na visão de Diego da Costa exposta no álbum, esses elementos ludibriam e entorpecem as pessoas com suas falsas promessas de mundo novo.


Outro detalhe importante é que para dar vasão aos seus pensamentos críticos, Costa não se utilizou de subgêneros chocantes do rock, como o thrash metal ou death metal. Mais que isso. No álbum não há uma estrutura melódica unilateral. Não há apenas rock. Há sim variantes como o psicodélico, o progressivo e o alternativo, mas existe também o brega, o forró e o xote incrementando o ambiente. O choque aqui não está no som, está na fala.


E nisso, Costa, em seu trabalho inaugural pela Sonora Fantasma, teve grandes ajudantes. Não só aqueles que emprestaram vozes, mas aqueles que emprestaram conhecimento musical fizeram com que Adeus Mundo Véio fosse um trabalho palpável, cheio de texturas e ambiências.


Esse caos social que recheia algumas das letras do disco está, inclusive, bem representado na arte de capa. Feita por Keila Martins, ela demonstra harmonia em cores, as quais se posicionam até mesmo como elementos psicodélicos. Mas também comunica que a beleza da Terra está sob o comando de poucos, mas muito bajulados pelo seu proletariado. 


Lançado em 10 de junho de 2021 via Abbey Roça, Adeus Mundo Véio é um trabalho teatralmente dramático, humoristicamente debochado, socialmente inquieto, melodicamente bilateral e politicamente consciente.

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Sobre o crítico musical

Diego Pinheiro

Quase que despretensiosamente, começou a escrever críticas sobre músicas. 


Apaixonado e estudioso do Rock, transita pelos diversos gêneros musicais com muita versatilidade.


Requisitado por grandes gravadoras como Warner Music, Som Livre e Sony Music, Diego Pinheiro também iniciou carreira internacional escrevendo sobre bandas estrangeiras.