Marina Mathey - Boneca Pau Brasil

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Depois de uma receptividade acalorada em relação ao seu single Boneca Pau Brasil, a cantora e compositora Marina Mathey decidiu inovar e lançar seu primeiro disco de estúdio. Também intitulado Boneca Pau Brasil, o material chega após quatro anos do primeiro show realizado por ela, no Risco Festival.


Canto de pássaros. Risadas. Sons tilintantes. Uma atmosfera que beira o psicodélico e o alucinógeno se constrói a partir do simples registro do acaso, do improviso, do estar à vontade. É nesse ambiente que um enredo lírico de cunho poético e de interpretação teatral se faz presente através da atuação vocal de Lyryca, que, com seu timbre agridoce, choca ao trazer um conteúdo que cheira, transpira e emana o senso sonhado, necessário e inquietante de libertação. Introduçáun nada mais é do que o relato de alguém que rompeu todos os medos e inseguranças para, finalmente, se despir da falsidade em prol da aceitação moral da sociedade. Alguém que encontrou a própria força e autoconfiança suficientes para enfrentar o intolerante e o conservador para, enfim, sair do estado morto-vivo e dizer, finalmente, um olá para a vida.


Swing e brasilidade são introduzidos no novo amanhecer através de uma levada macia e de notória consistência por parte de Alana Ananias. De estrutura quebrada e levemente acelerada, o groove é o único elemento sonoro a acompanhar Marina Mathey em seu enredo até que o baixo de Breno Barros entra em cena entregando ainda mais corpo e sensualidade. Assim como Introduçáun transpira liberdade, a faixa-título exala um senso de nacionalidade que chega até a ser comovente. De fundo contestador e imponente, a canção defende o poderio de um Brasil por muitos esquecido. Cheio de rimas e metáforas sexuais, a faixa-título, além de relatar os estupros vivenciados pelos povos nativos por parte dos colonizadores, destaca a intolerância, o egoísmo e o interesse como elementos regentes de uma sociedade vazia. E nesse sentido, a guitarra de Vico, com sua distorção melancólica que se assemelha com aquela melodia triste e áspera criada por Renato Rocha em O Dia Que Não Terminou, single do Detonautas, representa a decepção e o lamento, mas uma tristeza cujos olhos firmes e decididos, evidenciam a tomada de fôlego para a resistência e a manifestação contra o abuso, seja ele de poder ou sexual.


Um coro vocal traz uma suavidade valsante na base melódica. Depois de uma breve entrada de Marina, a sanfona de Rodrigo Zanetti introduz um ânimo comovente e nordestino do baião. Junto da percussão de Caê, uma espécie de mistura com marchinha carnavalesca se evidencia em Águas Para Marina, uma música que comunica a superação de decepções amorosas. Uma superação que recupera a autoestima e o senso de empoderamento de alguém que veio ao mundo simplesmente para ser livre.


A sanfona surpreende ao inserir no novo amanhecer a roupagem provocante do tango. Junto às notas graves, pontuais e precisas do piano, uma sensualidade cínica se instaura enquanto flerta, inclusive, com o fado. Junto do vocal de agridoce mais agudo de Susy Shock, que agracia a canção perto de seu encerramento, Tango Da Navalha é uma canção que desmistifica a ideia de que mulher é o sexo frágil e brinca com essa máxima ao trazer a sensibilidade como uma qualidade que aparece primeiro e acoberta, propositadamente, a imponência e o empoderamento. Assim como a faixa-título, Tango Da Navalha defende a brasilidade e reflete sobre o peso dos colonizadores na construção de uma cultura comportamental calcada no senso defensivo e ingênuo de maneira a beirar a futilidade. A típica imagem da mulher vazia. E é esse o dever de Tango Da Navalha: mostrar que a mulher é muito além que sentimento: é confiança, é consistência, é consciência. É forte.


O acordeon vem ácido, grave. Fúnebre. Como uma anunciação funesta, o instrumento surge carregado de dor e pesar misturados com uma instintiva e incontrolável nostalgia. Quase como um canto candomblezeiro, Marina mostra mais de seu potencial vocal ao trazer uma interpretação com direito a falsetes precisos e consistentes enquanto faz de Nina uma canção embebida em raiva que traz uma personagem triste, ausente de crenças e judiada pela vida e pelas eventualidades que ela traz. Nina é a lembrança inconsciente e pesarosa de uma pessoa que se perdeu entre as dores e se apagou ao não enxergar a luz do propósito e da motivação pela vida.


Um canto indígena surge acompanhado do compasso do chocalho. O aroma da natureza nativa embriaga o ambiente. O frescor da sombra, a umidade dos pingos que caem das folhas refresca o calor. O chão, áspero pelos troncos, raízes e folhas secas, dá uma textura áspera que roça os pés descalços do ouvinte que desbrava mentalmente esse novo cenário. Guiado pela sobreposição vocal formada pelos timbres de Marina e Susi, o ouvinte se percebe hipnotizado pelas palavras em espanhol profanadas pela segunda, o espectador se percebe sério assim que Lyryca entra com um lirismo que pede atenção. Meu Nome Não É Seu Nome discute a questão de posse em antítese ao senso de independência e liberdade. Meu Nome Não É Seu Nome é simplesmente a poetização da força e da eternidade.


Batuques ocos surgem desenhando e cadenciando a melodia em processo de construção. Sem delongas, Marina já entra no ambiente desdenhando o novo conteúdo lírico, fazendo de seu canto um contraponto sonoro à percussão. Com repentes melódicos mergulhados em profundo misto de progressão e psicodelia, Pantanal Pansexual é uma ode à liberdade de expressão e, principalmente, à liberdade sexual. 


Há pouco menos de dois dias para a eleição presidencial, Boneca Pau Brasil surge como protesto e provocação. É a representação de toda uma comunidade que não se cala e não se intimida com a opressão, o conservadorismo, a intolerância e o julgamento daqueles se escondem de suas próprias verdades através de atitudes agressivas.


Como uma ode à liberdade calcada no empoderamento, a obra de estreia de Marina Mathey é o contágio e a disseminação de uma postura firme e forte que desmente o senso comum da fragilidade daqueles que são socialmente marginalizados e socialmente colocados como desfavorecidos.

Através de cantos indígenas e candomblezeiros, do baião, da psicodelia, do progressivo, do tango, do fado e até mesmo de marchinhas carnavalescas, Boneca Pau Brasil é um grito de basta pela repressão. Suas referências melódicas, portanto, foram muito bem sintetizadas pela mixagem de Malka Julieta de maneira a respeitar o tom protestante que exala do álbum.


Sob a produção de Amanda Magalhães, Boneca Pau Brasil  surgiu e apresentou ao Brasil Marina Mathey, uma figura que, assim como Mavi Veloso, Mercedez VulcãoLayalex, Ryck, Dan Abranches, Nathan Dies,  é firme e forte em defesa da liberdade sexual e dos direitos garantidos pela Constituição ao LGBTQia+.


Fechando o escopo técnico do álbum, vem a arte de capa. Assinada por Christian Pentagna, ela vem com forte associação política e provocativa. A escolha das cores em tons terrosos sugere um apoio à camada da esquerda e um nítido rechaço à bancada da direita e extrema-direita por conta de seu intenso conservadorismo. Ao mesmo tempo, ao retratar uma bandeira tremulando o artista oferece ao espectador uma noção de luta pela liberdade em todos os seus sentidos.


Lançado em 27 de outubro de 2022 via Boia Fria Produções, Boneca Pau Brasil é a sonorização da liberdade, da imponência e da resistência. É um claro recado à comunidade conservadora de que, mais que existir, as pessoas que saem do padrão socialmente estipulado são fortes e, principalmente, possuem uma visão de mundo calcada, simplesmente, na aceitação de um ambiente plural e igualitário.  














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Sobre o crítico musical

Diego Pinheiro

Quase que despretensiosamente, começou a escrever críticas sobre músicas. 


Apaixonado e estudioso do Rock, transita pelos diversos gêneros musicais com muita versatilidade.


Requisitado por grandes gravadoras como Warner Music, Som Livre e Sony Music, Diego Pinheiro também iniciou carreira internacional escrevendo sobre bandas estrangeiras.