NOTA DO CRÍTICO
Quatro anos após o anúncio de Walk Between Worlds, o sexteto escocês Simple Minds libera em definitivo Direction Of The Heart. O trabalho representa o primeiro material pós-pandemia e o 19º álbum de estúdio do grupo, que em 2022 completa 44 anos de história.
A doçura e a acidez se confundem em um ambiente de energia levemente animada e setentista. Graças ao teclado de Charlie Burchill, existe maciez e um contágio curiosamente enigmático que imerge dessa roupagem de aroma floral. Com o auxílio da levada desenhada pela bateria de Cherisse Osei, a melodia amadurece como um expoente da clássica new wave, um gênero que, aqui, é dominado pelas notas sequenciais e gélidas do teclado que dão vasão para a entrada de um timbre vocal agridoce e nasal. É Jim Kerr introduzindo uma quebra rítmica que dualiza com a embriagante linearidade sonora. Lembrando inclusive da estrutura rítmica de White Wedding, single de Billy Idol, Vision Thing tem como mote o estímulo para que o ouvinte encontre o melhor que existe em si. Assim como o personagem lírico teve auxílio de uma figura mística e onipresente que o fez enxergar a realidade de que ainda há motivos que lhe conferem confiabilidade, o próprio ouvinte é instigado a defender a sua imagem e mostrar ser merecedor de confiança.
Um amanhecer psicodélico, embriagante, macio e levemente alucinógeno se constrói a partir do teclado. Como um relâmpago aveludado, a guitarra de Ged Grimes invade a cena a deixando contagiante e com uma estética melódica que se assemelha àquela de Talk, single do Coldplay. De ambiência indie rock com traços progressivos, First You Jump, além de ter marcante participação do baixo durante os versos de ar, é agraciada pela presença dos backing vocals Kathleen Macinnes, Gary Clark, Andy Wright em momentos decisivos. Na forma de um enredo que reflete sobre a superação associada com o amadurecimento, First You Jump tem em si uma mensagem de redenção. É a chegada de um novo dia regido pelo fortalecimento psicológico e pelo equilíbrio emocional.
Com uma guitarra aguda e gritante, a ambiência da canção que se apresenta é hipnótica ao ponto de conseguir deixar o ouvinte aquém de seus sentidos e ser guiado, sem questionamento, somente pela melodia. É como o canto da sereia. De flertes com o chiptune e a temática mais eletrônica da lounge music, Human Traffic, enquanto dialoga sobre a incapacidade de acessar o mundo real em um ambiente dominado por tecnologia, uma visão atual que tangencia com o metaverso, traz Russell Mael emprestando seu timbre suave e promovendo uma sincronia amaciada com Kerr.
O compasso rítmico é promovido por um sonar mudo. Apenas pelo ruído da palheta roçando suas cordas, a guitarra já informa uma melodia mais calcada no swing. Se mostrando macia, acústica e com temática folk, a sonoridade acompanha Kerr com uma voz que se apresenta em um tom que parece longe dos fones de ouvido, um efeito que perdura até a definitiva entrada da melodia. Misturando o indie rock e o rock alternativo com traços new wave, Who Killed Truth? se apresenta sedutora e com um apelo radiofônico inquestionável. Curiosamente, mesmo de forte apelo popular, a canção apresenta o enredo mais reflexivo e crítico de Direction Of The Heart até o momento. Pensando sobre o peso das fake news e a forma como elas, esse artifício de espalhar informações falsas, conseguiram unir as pessoas em prol de inverdades, Who Killed Truth? é simplesmente o questionamento da futilidade e da ausência de senso crítico das pessoas que conta, ainda, com o backing vocal de Sarah Brown, um ingrediente que suaviza e adoça ainda mais essa melodia setentista.
O som da gaita de fole trazido pelo sintetizador de Andrew Gillespie, junto da forma como a guitarra se movimenta, cria uma ambiência chinesa marcante. O interessante aqui é notar que existe um aroma místico e de harmonia timidamente crescente que desperta os sentidos do ouvinte. Comovente e grandiosa, a união harmônico-melódica faz da faixa um produto de extrema beleza e sensibilidade que ganha seu apogeu antes mesmo do refrão, na segunda metade da introdução. Com uma guitarra aveludada e melódica que amacia ainda mais uma estrutura rítmica simples, Solsitce Queen, além de se mostrar a balada de Direction Of The Heart, é uma canção de extrema delicadeza sensual que dialoga, de maneira não tão direta, sobre perdão e sobre o conhecimento das emoções. Uma lição de desarmamento do orgulho em prol de uma leveza espiritual.
Assim como em Human Traffic, o presente amanhecer também oferece um grande flerte com a temática chiptune. Interessante notar a evolução melódica da canção, que do chiptune e de levadas levemente sci-fi, flui para um hard rock ao estilo The Rolling Stones. Mantendo o caráter dançante, uma marca do Simple Minds, Act Of Love é uma faixa que consegue misturar a fé com os prazeres mundanos. É a sonorização da hipotética recepção da força astral como algo a imputar gana e vontade pela vida no personagem lírico.
O som ondulante e adocicado do sintetizador ao fundo recria a melodia marcante de Adventure Of A Lifetime, single do Coldplay. Fluindo para um ambiente surpreendentemente sexy, em que a guitarra e a bateria se fundem como o elemento-chave para a construção da sensualidade rítmica, a canção consegue se maturar através da mistura do indie pop com o indie rock e o synth-pop. Natural é uma canção que, sem delongas, traz um personagem que se questiona e pede ajuda para encontrar um meio de ser natural e fiel à sua própria essência, sem se pautar por questões socialmente pré-definidas.
Com uma levada percussiva precisa e abraçada por uma ambiência que remete levemente à estrutura sci-fi, a canção flui para um ambiente swingado em sua estética sutilmente industrial misturada com lounge music. Dançante em seu clima de suspense, ela é marcada pela participação de Sarah que aqui, mais que em Who Killed Truth?, tem uma participação de destaque ao pronunciar, com protagonismo, o verso “I saw a whole of fire”. Planet Zero, como o próprio nome sugere, discute a crença e o mistério em torno da origem dos povos.
De sonoridade ácida em seu compasso harmonicamente contagiante, a introdução já comunica um novo mergulho na roupagem synth-pop. Atraente e animada, a canção traz um Kerr se arriscando nos drives e em uma colocação vocal mais potente enquanto a bateria, levemente acelerada, se torna o pilar da cadência rítmica. De linhas de guitarra marcantes no refrão, The Walls Came Down é uma canção que discute a governança a partir do medo e a revelação da verdadeira face dos responsáveis pelo poder. É como pensar a falsidade manipulatória do mundo, um assunto que flerta com grande parte do enredo contido, inclusive, em Pawns & Kings, álbum do Alter Bridge.
O suspense é construído a partir de uma estrutura que se mistura entre o progressivo e a psicodelia. Capaz de promover calafrios por meio das gélidas notas do teclado que sonorizam o órgão hammond, se percebe, no decorrer da melodia, uma espécie de redenção vagarosa. É como se, entre as densas paredes rochosas, frestas de luz acariciassem a escuridão. Se tornando macia e contagiante principalmente pela união do teclado com a guitarra, Direction Of The Heart (Taormina 2022), ao mesmo tempo que discute a corrupção do homem pela ganância e a inveja, traz consigo a visão de que a bondade e a caridade são qualidades existentes dentro de todos e que basta humildade para acessá-las.
Mareante, a sonoridade construída a partir da continuidade do sonar das teclas do teclado surte em sensações desconfortáveis que, do enjoo à insegurança, dominam o ouvinte. Apesar disso, quando Kerr entoa, ao longe “wonder times”, a melodia se transforma em algo harmônico e contagiante em sua levada macia de mistura pop e indie alternativa. Também dançante, Wonder Times é um material que dialoga sobre memórias, superação, nostalgia e sobre a vontade de fazer o futuro com pedaços de um passado agradável e memorável. Ao mesmo tempo, a canção estimula no ouvinte o desejo pela vida a partir de uma gana intensamente contagiante.
Dançante é a palavra que define Direction Of The Heart. Porém, muito além que um material que resgata as danceterias dos anos 70, o novo trabalho do Simple Minds vem acompanhado de swing, de leveza e de melodias abraçadas por memoráveis e penetrantes harmonias.
Possibilitando ao ouvinte experienciar, através de suas melodias, sensações de desconforto, insegurança, náusea, mas também ânimo, alegria, nostalgia e contágio, Direction Of The Heart consegue ser eclético em cada um dos 11 temas líricos que compõem sua tracklist.
Ele é um trabalho que dialoga primariamente sobre religião e sociedade. Enquanto a crença é colocada como um apoio e um estímulo pela positividade da vida, a sociedade é colocada como ponto de partida para uma análise profunda que beira a corrupção do ser humano através da ganância, da inveja e da manipulação como meios de conquistar seus objetivos.
Esse caminho foi amadurecido principalmente por meio do auxílio que o sexteto escocês recebeu de nomes como Wright e Gavin Goldberg. Por meio da produção oferecida pelos profissionais, o Simple Minds conseguiu ter um trabalho cuja finalização representou seus ideais socio-reflexivos e sua essência rítmica.
E aqui, além do bem alicerçado new wave, Direction Of The Heart é agraciado por uma abrangente mistura quer compreende o indie rock, o indie pop, o indie alternativo, o rock progressivo, o rock psicodélico, o sci-fi, o hard rock, o folk e a lounge music. Ficou, portanto, a cargo de Tom Herbert e Caesar Edmunds sintetizar todas essas referências rítmicas para formar algo original e que soasse algo ao mesmo tempo inovador e tradicional do Simple Minds.
Lançado em 21 de outubro de 2022 via BMG, Direction Of The Heart é um produto alicerçado na base da new wave. Sensível, reflexivo e analítico, ele é um trabalho que surpreende por conter contagiantes, vibrantes e memoráveis harmonias que convidam o ouvinte a dançar e pensar sobre si, sobre a vida e sobre o futuro.