LAIALEX - DELIRIA

NOTA DO CRÍTICO
Nota do Público 5 (1 Votos)

Mais um nome entra para o time de artistas independentes do Brasil. O paulistano LAIALEX, assumidamente um queer, escolheu junho, o mês do orgulho LGBTQIA+ para se lançar oficialmente no mercado musical nacional. Feito então se dá com DELIRIA, seu EP de estreia.


Um borbulhar de cores vivas é visto através do gelo seco. Tal como em Alice No País Das Maravilhas, essas cores de intensidade nascente encarnam um senso psicodélico que embriaga o ouvinte através do piano elétrico de Marcel Enderle. Eis que o sequencial vaivém de notas alucinógenas recebe uma levada quase estridente vindo da bateria que, executada por Pedro Lauletta, ajuda a construir uma ambiência de danceteria da década de 70 com sua base rítmica new wave. Quando Rodrigo Passos invade a cena promovendo um rompante encorpado a partir do baixo e uma guitarra macia repleta de wah wahs, uma voz surpreendentemente grave cujo timbre traz um misto de Djavan e Jorge Vercillo assume a dianteira melódica. É LAIALEX ampliando a sensorialidade dançante que reluz da conjuntura sonora da faixa. De swing extasiante e uma alegria tímida vinda dos sopros do saxofone na coxia rítmica, Flecha é quase como uma alusão a Eros, o Deus da paixão na mitologia grega. De outro lado, assim como Marcelo D2 esteve à procura da batida perfeita em seu single icônico e homônimo ao verso, em Flecha, LAIALEX se vê à procura da paixão perfeita.


O piano elétrico traz notas de uma acidez e um compasso que fazem o ouvinte rememorar a base melódica de Let’s Dance, single de David Bowie. Fora essa rápida assimilação, a canção nasce com uma levada mais lenta em comparação à anterior e, já no primeiro verso, apresenta uma novidade. Em forma de dueto, LAIALEX recebe, ao seu lado, Tôrta e seu timbre ameno, levemente aveludado e com uma sensualidade despropositada. Ainda sob a base da new wave, a música segue a premissa de construir um ambiente baladeiro e dançante que convida o espectador a mexer o corpo à sua maneira. É assim que Gelo se apresenta ritmicamente enquanto que, no contexto lírico, ela segue o conceito da paixão, mas sob uma nova ótica. Aqui ela dialoga, de maneira timidamente divertida, sobre a maneira como o inicial desprezo pode ser um gatilho para a paixão, a excitação e o desejo. Não à toa que o conjunto de versos que melhor a define é: “aquele gelo que você me deu botei num drink aqui só meu. Quem derrete primeiro, você ou eu?”.


O veludo do fender rhodes constrói uma cenografia que é como um Sol poente por traz das colinas ao longe no horizonte. Quando a noite então se instaura, aquela aura de aparente conforto, evidencia um ilusório senso de aconchego. Afinal, a entrada de LAIALEX traz uma dramaticidade latente na forma como vai narrando os primeiros versos da canção que ainda se encontra em processo de construção. Com uma tensão iminente e um suspense quase incômodo, a melodia traz misturas interessantes entre o rap e o R&B enquanto é pincelada por tons gélidos e quase sem vida. Aumentando o senso dramático que dela exala está Eva Treva, quem imputa um vocal aberta e nasal que soa como um eco que visa destacar os versos cantados por LAIALEX. Não precisa de muito para notar que Vinho é uma canção de lirismo autobiográfico em claro tom de protesto que escancara uma angústia visivelmente represada há tempos. É uma canção que trata sobre a forma como a comunidade LGBTQIA+ é tratada, negligenciada e negada em uma sociedade conservadora, intolerante e cegamente autoritária. É o grito que busca direitos iguais em um lugar que não aceita heterogeneidade social. É o choro, é o desamparo, é a dor, é o autoconhecimento. Mas também é a força, a perseverança e o autocontrole. Vinho é o relato biográfico de muitos e uma motivação protestante que é ouvida e comprada por poucos.


O ruído é crescente. Ao seu lado, uma sequência gélida e entorpecida de notas embriagantes explode em uma ambiência alucinógena que, ao fundo, é adornada por uma voz aguda e digital que repete o questionamento “quem é você?”. Emaranhada por uma melodia mista entre ingredientes chiptune, forró eletrônico e pisadinha, Duelo soa como a continuação de Vinho. Ao contrário da anterior, porém, a presente faixa não é adornada em uma dramatização quase sanguinária, mas dialoga sobre o autoconhecimento, a percepção da essência, a assumição da verdadeira identidade e da independência em relação aos valores e morais sociais de uma comunidade conservadora. Nesse processo, LAIALEX e Clara se dividem entre as versões do espelho e entre vocais abertos e nasais com outros mais suavizados.


A calda do vestido de veludo baila em compasso com a brisa da noite. O caminhar é lento, mas o olhar é penetrante e confiante. Como um narrador onipresente, LAIALEX começa a introduzir o conteúdo lírico entre ecos hipnóticos que perambulam livremente pelo ambiente. Em meio a uma new wave adormecida e de um torpor embriagante, a melodia vai caminhando tranquilamente de forma a conquistar o ouvinte a partir de sua calma ensurdecedora. Contudo, essa doma de sonar amorfinado logo se dissipa e flui para uma roupagem mais dançante calcada no soft rock e regida por um baixo de linhas marcantes e encorpadas que, ministrado por Titouan Lageat, dá um ar sensual à faixa-título. Curioso é perceber que, apesar da melodia, o lirismo é de uma fogosidade estonteante. Afinal, ele trata do prazer, da entrega, do ato e é imerso em metáforas sobre situações vividas durante a relação. Não à toa que o eu-lírico se encontra em um estado de transe extasiante. 


A guitarra surge amena como os primeiros raiares de Sol em um amanhecer de verão. A luz vai tomando mais corpo conforme o instrumento vai aumentando seus rompantes e a bateria entra a acompanhando com uma levada macia que se encontra em processo de despertar. Com um pop rock ao estilo Nando Reis que flerta com a estrutura narrativa de All Star, Jaqueta Jeans é uma canção que fala do último encontro, das lembranças sensoriais e de pensamentos delirantes de ‘e se...’. Uma boa maneira de, com um ritmo contagiante, uma letra que dá asas à construção cenográfica imagéticae a participação de Camila Chang fazendo o backing vocal nos versos finais, encerrar DELIRIA. Afinal, Jaqueta Jeans se mostra uma importante música radiofônica que, ao lado do desabafo protestante de Vinho, molda o time de singles do EP.


Ao contrário do que se vê em artes sonoras LGBTs, há surpresas em timbres, de ritmos e de enredos líricos. Contudo, como todo trabalho LGBT, há protesto, há insatisfação, há relatos biográficos e há uma intensa busca por pertencimento e aceitação social. Inegável é notar que o principal prato que DELIRIA oferece ao ouvinte é autoconfiança.


Com uma conjuntura rítmica que vai da new wave, forró eletrônico, pisadinha, R&B, chiptune, rap, soft rock e pop rock, o EP se soma a obras como Criatura, Travesti Biológica, Titan, InstintoAGROPOC​Sem Ar e Aqui e Agora na defesa pela comunidade LGBTQIA+. Na defesa pela igualdade, pelo respeito, pela aceitação e, principalmente, pela liberdade de expressão.


É verdade que, mesmo entre canções como a faixa-título, não há uma roupagem melódica ou mesmo lírica gritantemente explícita em suas reais intenções, mas são metaforicamente passíveis de compreensão. Em todo o caso, não é pela vertente sensual ou propriamente sexual que LAIALEX se apoia para conquistar seu objetivo de, ao menos, ser ouvido.


Ele apresenta linguagens maduras que respeitam ambos os espectros, seja ele LGBTQIA+ ou não. Apresenta linguagens críticas e dolorosas que buscam aproximar o ouvinte e comunicar que, se existe alguém passando pela mesma situação, essa pessoa não é única e a dor não é unilateral. Já foi ou é sentida por uma infinidade de outros indivíduos que ainda se encontram presos em uma realidade de escravidão da moral social conservadora. Por isso que faixas como Vinho e Duelo são importantes hinos de união na busca por um lugar ao Sol.


Produzido e mixado por Giacomini, DELIRIA é um EP que exala drama, torpor, sensualidade e inquietação. É um EP de linguagens rítmicas variadas que se combinam no propósito de representar uma comunidade marginalizada. É um EP de melodias equilibradas e de fácil digestão.


Encerrando a conjuntura analítica do EP vem a arte de capa. Assinada por Renan Riso, ela traz uma grande variedade de leituras. Primeiramente, a divisão da paisagem entre tons azul escuro e vermelho vivo já comunica algo como a imersão em ambientes sombrios. As torres de castelo ao fundo da parte superior e o homem deitado e acorrentado na parte central inferior, por outro lado, induzem a leitura da Santa Inquisição. E os olhos penetrantes existentes na parte central superior reproduzem o julgamento e a intolerância. Nesse aspecto, é interessante notar a semelhança existente com a arte de capa de Detroit Stories, álbum de Alice Cooper.


Lançado em 29 de junho de 2022 de maneira independente, DELIRIA é um EP biográfico, protestante, inquietante e melodicamente plural. É um trabalho que, acima de tudo, defende e representa a comunidade LGBTQIA+ na busca por uma convivência desmarginalizada e livre de julgamentos. É um grito de basta.

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Sobre o crítico musical

Diego Pinheiro

Quase que despretensiosamente, começou a escrever críticas sobre músicas. 


Apaixonado e estudioso do Rock, transita pelos diversos gêneros musicais com muita versatilidade.


Requisitado por grandes gravadoras como Warner Music, Som Livre e Sony Music, Diego Pinheiro também iniciou carreira internacional escrevendo sobre bandas estrangeiras.