Lobo Guará - Lobo Guará

NOTA DO CRÍTICO
Nota do Público 5 (1 Votos)

Ele consiste em um projeto solo e nasceu, de certa forma, do hiato da banda Oito Mãos. Um trabalho feito com experimentações e materiais compostos de maneira caseira que leva o nome do alter-ego de seu criador. Lobo Guará, também colocado como pseudônimo de Felipe Bier, além de ser o nome de sua ‘banda de um homem só’, é o título do álbum de estreia do artista em carreira solo.


Sua delicadeza é quase etérea. De caráter agradavelmente transcendental, embriagante e, acima de tudo, favorecendo a criação de uma atmosfera introspectiva, a introdução se desenvolve de forma bastante branda, conforme um sonar adocicadamente ácido vindo do teclado de Felippe Pompeo sobrevoa o ambiente com uma postura onírica marcante. Dando um toque até mesmo harmonicamente gutural ao escopo sonoro, o instrumento é logo acompanhado por um violão que, dominado por Felipe Bier, entrega frescor à fragilidade escultural que vai cada vez mais amadurecendo. Em meio a essa suavidade reconfortante, o sonar ecoante e firme do tímpano, entregue também por Pompeo, confere um ar de precisão e consistência, além de certo quê de dramaticidade. Porém, essa dramaticidade não vem na forma da exaltação de um sentimento rascante, dolorido e triste. É apenas um ingrediente teatralmente dramatúrgico que auxilia no engrandecimento das percepções sensoriais da composição. Quando o primeiro verso enfim recebe a luz do dia por meio da voz agridoce e branda de Bier, a canção, a partir do auxílio de outros elementos percussivos, como o compasso tilintante do pandeiro e os batuques suavemente ocos do bongô, ganha uma fluidez macia que torna sua narrativa de fácil digestão. Porém, em virtude da interpretação lírica assumida pelo vocalista, Califórnia é abraçada por uma energia interessantemente melancólica com traços nostálgicos. Com direito a um baixo de grooves curtos, mas perceptíveis através de seus sonares bojudos preenchendo a base melódica, a faixa traz, em si, a história de uma personagem feminina em busca não apenas de independência, mas, acima de tudo, à procura de um senso de pertencimento. Uma longa viagem que nada mais é do que um processo profundo, por vezes confuso e autoinfringente, que é o autoconhecimento. 


Desde seu início imediato, a forma como o violão e o tímpano se comunicam faz com que uma paisagem adornada por um tom completamente cinza se forme através da lente sensorial do ouvinte. Apesar de macia e curiosamente contagiante, o que é oferecido aqui é uma espécie de melancolia dilacerante em que cada som e cada riff do violão funcione como uma pontada de dor aguda no fundo do peito. E nesse sentido, os olhos do espectador conseguem enxergar um horizonte, mas ele está longe demais para ser alcançado completamente. Amadurecendo através de seu veludo introspectivo cabisbaixo, é curioso perceber que, mesmo diante de uma sensorialidade preconcebidamente dolorosa, exista conforto e aconchego em meio ao caos. E é justamente aí, nesse instante sensitivo, que o sonar tremulante do teclado, ao preencher os espaços faltantes com um suspiro sereno de harmonia, parece lançar no ar jatos desprendidos de esperança na ânsia que a audiência o note. No momento em que o verso lírico ganha vida, porém, a forma como Bier coloca sua voz em cena dá à canção injeções de uma crueza que contrabalanceiam o macio melancólico até então sugerido. Ecoante, como uma espécie de mantra, o timbre do vocalista soa como o tom do inconsciente que dá vida a uma forma de prece. Orixá, portanto, parece ser uma oração, em meio ao sofrimento, aos orixás. Um pedido puro e simples do estanque da dor se torna evidente ao passo que os olhos do pedinte se vê cheio d’água.


A brisa é fresca, mas não fria. O campo é verde e belo, oferecendo um senso de bem-estar profundo. A cada passo em meio a essa imensidão verde, é sentido um perfume que captura a atenção do espectador com grande profundidade. Ao chegar na colina, se vê um jardim de cores colorido moldando o terreno e dando ainda mais vida por meio de suas cores variadas. Ainda que imagética e prematura, essa é a paisagem que a sonoridade inicial fornece ao ouvinte. Nela, a guitarra, com seu riff curto e agudo, se une ao frescor do violão para favorecer a construção de uma sensorialidade delicada e até mesmo tocante, em certa medida. Entre os rompantes bojudos do baixo, os quais dão súbitos de corpo e consistência à melodia, as linhas líricas passam a ser acompanhadas por backing vocals ecoantes fornecidos por Christian Camilo. Criando a partir deles um curioso estado fantasmagórico, Um Campo De Girassóis Em Casa Branca se mostra uma canção que pode ser interpretada de duas formas. A primeira é uma pura canção de amor, de paixão. A outra, mais profunda, se mostra uma obra que apresenta uma personagem em processo de autocrescimento, autoconhecimento e amadurecimento. Uma pessoa em busca de novos horizontes, de novos lugares a se pertencer. Uma pessoa que faz do desconhecido longínquo sua nova opção de lar.


O tilintar do pandeiro já fornece, sem delongas, a impressão de uma cenografia interiorana. O bucólico. O sertão. Quando o violão entra em cena por meio de dedilhares calmos e melodiosos, o ouvinte, surpreendentemente, não é recebido com melancolia ou introspecção. É apenas uma recepção aveludada capaz de fazer o espectador, inclusive, sentir o cheiro do café recém-passado perfumando a cozinha. Da janela, o Sol vai surgindo em seu esplendor, iluminando a grama verde e fazendo a vida despertar para mais um dia. O ar fresco da manhã e a textura úmida em virtude do sereno ainda presente na superfície da grama e do capim, fazem com que um senso desmedido de pureza paire pelo ar externo. Chegada a hora de partir, o personagem é visto caminhando por uma estrada de terra rumo o desconhecido. Apenas seguindo o curso de seu destino ainda muito cru. Um destino sonorizado por um violão de frases ondulantes e insistentes capazes de hipnotizar o espectador. Claro que, nesse sentido, a maneira como Bier emprega sua voz tem grande peso. Sussurrante, ela é feliz ao ser acompanhada por uma guitarra que, dominada por Leandro Publio, traz consigo um outro tipo de maciez. Uma maciez capaz de ser áspera em virtude da distorção, mas que amplia a sensorialidade e o leque de sentimentos que podem ser percebidos a cada esquina. Com essa receita campestre, As Costas Do Céu é um processo nostálgico vivenciado pelo protagonista em relação à infância. É um lembrar da pureza, da ingenuidade infantil perante a vida. Um recordar de sonhos outrora reluzentes que perderam seu brilho com o passar do tempo ou que, simplesmente, mudaram de forma. Uma pura saudade dos tempos em que não havia preocupação e que tudo era belo.


O frescor e a maciez voltam em uma nova combinação sensorial através da melodia moldada pelo violão no novo despertar. Delicada, mas, acima de tudo, gentil e terna, a presente obra é a primeira faixa do track list de Lobo Guará que Bier narra sob o idioma inglês. Tendo ele em voga, a canção ganha outro movimento, outra paisagem, ainda que mantenha seu veludo estético habitual. Melancólica e densamente introspectiva, Summer Rain é como uma canção envolvente em utopia. Uma utopia sensorial e sentimental que permeia uma leveza descompromissada. Etérea. Assim como em As Costas Do Céu, aqui Bier parece trazer a saudade como parte do tema do presente enredo lírico. Uma nostalgia que traz a chuva de verão como uma espécie de válvula de escape de certos sofrimentos. Como se a chuva veranista, em sua máxima forma, funcionasse como um elemento que lhe fornecia necessários sensos de proteção, consolo e aconchego. 


É interessante perceber como com apenas alguns simples dedilhares o violão consegue fazer com que o ouvinte construa, sensorialmente, uma paisagem completa. Embebida em uma delicadeza melancólica banhada por uma chuva despejada por um céu cinza, a canção é capaz de oferecer um curioso estado de conforto em meio ao seu cerne melancólico. Assim que o primeiro verso se evidencia, momento em que o enredo lírico ganha vida, a obra é envolta em uma voz sussurrante e ecoante que se apresenta sob uma forma intrigantemente fantasmagórica. Porém, não há o que temer ou o que causar inseguranças. Afinal, apesar de ser de fato perceptível, esse quesito se esvai com o primeiro novo contorno do violão, o qual abraça o vocal de forma terna, o oferecendo não apenas um ombro, mas uma espécie de lar acolhedor. Afinal, o que acontece aqui é que o personagem lírico se mostra imerso em uma embrionária agonia. Por entre sobreposições vocais que transitam entre o grave e o falsete de forma a trazer ambivalência entre a fé e a racionalidade, Papoula se configura como uma canção sobre liberdade, mas aqui especificamente a uma certa independência que se percebe na busca por um lugar em que se sinta pertencente, seja ele físico ou sensorial.


Uma contagem crescente é ouvida ao fundo rompendo o silêncio espectral. Ainda que não seja esse especificamente o elemento que dá o devido despertar à composição, ele é, sim, o primeiro fator sonoro a ser ouvido. Surpreendentemente, o que acontece em seguida é o despir do arranjo focado no acústico e introspectivo ao ousar sons mais vivos e elétricos. Tal como aconteceu em As Costas Para O Céu, mais precisamente, aqui a guitarra readquire os holofotes por dar, à atmosfera, um toque de aspereza viva, mas ainda assim repleta de brandura. Em meio a uma sonoridade de caráter suspirante capaz de construir uma paisagem bucólica sob a lente sensitiva do ouvinte, tal instrumento, ainda que reintroduzido, não consegue romper a camada melancólica pungente da sonoridade da canção. Com o pandeiro criando uma textura tilintante e o baixo proferindo uma camada de sisudez, Dezembro, surpreendentemente, imersa no etéreo, traz consigo um caráter introspectivo latente. Marcada pela sua densa maciez, a faixa, liricamente, se configura simplesmente como um poema de amor. Uma dedicatória. Uma declaração cheia de sentimento e honestidade que toca o mais fundo do espectador pelo seu amplo estado de gratidão e plenitude.


As folhas das árvores valsam do lado de fora. Não há qualquer sinal de agressividade da natureza. É apenas a dança regida pelo compasso da brisa. Com o Sol poente formando pontos de uma luminosidade branda e de calor amornante, a vida vai se despedindo de mais um dia, mas ainda repleta de satisfação. Uma satisfação que se mostra tão acalentador como o reencontro. Tão transformador quanto um abraço apertado. Tão confortável quanto um olhar cheio de reciprocidade. A maneira com que o violão se movimenta surte em uma experiência sensorial quase transcendental em vista de sua delicadeza tão serena. O interessante é que, quando o instrumento passa a ser acompanhado pelos pulsos do baixo e da voz de Bier, ele assume uma conotação nostálgica pungente. Rememorando as estéticas folks desenhadas por Myles Kennedy em sua empreitada solo, Querer se funde linearmente com a intenção de Dezembro. Afinal, ambas são composições de puro amor. De pura paixão. De puro respeito, admiração e ternura. O querer é um desejo da alma. Uma vontade tão primária quanto a arte da negação. E o amor, o encanto, o encontro de almas, uma consequência do acaso. Um acaso que nasce com o Sol, mas que não dorme com a Lua. Ele segue seu curso até o fim dos tempos. Querer é o simples desejo de estar, aproveitar e viver as experiências que o ser amado tem a oferecer.


Apesar de seu início em tom de improviso, a obra é mais uma que, tal como sua antecessora, assume uma forma puramente minimalista. Um minimalismo terno, delicado e fresco que instiga a introspecção e possibilita até mesmo a obtenção de um senso entorpecente. Alcançando tons transcendentais em meio à sua fragilidade cristalina, Amarelo traz Bier trazendo um enredo que, novamente embebido em forma narrativo-poética, parece trazer a experiência da concepção da vida, do parto. Da chegada de outro ser ao mundo. Ainda que questione a saudade, essa é uma obra de união. Do amor incondicional. Ao mesmo tempo, surpreende que Amarelo também possa representar a primeira entrega de duas pessoas ao prazer. A descoberta do corpo. O desejo. A penetração. A intensidade. O suspiro de deleite. Uma viagem pelo etéreo onírico. 


O pandeiro, com seu toque excêntrico e autêntico que, sem muita dificuldade, traz em voga um cenário sertanejo, é novamente colocado sob certo protagonismo. Depois de seu tilintar característico, ele permite que batuques secos e um violão suspirante se fundam na criação de texturas sensoriais variadas. Gradativamente se transformando em uma espécie de narrativa urbano-melancólica, a canção tem, na figura do pandeiro, o elemento a lhe garantir não apenas macies rítmica, mas, principalmente, maciez e fluidez no que tange o campo percussivo. Misturando referências estéticas com músicas como Aonde Quer Que Eu Vá?, single do Paralamas do Sucesso, Ondas Congeladas é uma composição em que o personagem lírico, ao passo que se mantém em contato direto com o inverno, uma estação fria e nada atraente no que diz respeito à interação ao ar livre ou mesmo corpo a corpo, se vê em conflito com sua própria farsa de imagem viril. Nesse aspecto, a faixa soa como a verdadeira demonstração da essência de um ser há muito reprimida. Um nome que carrega histórias, desejos, querências. É a metáfora do salto da ilusão para a tão sonhada liberdade de ser quem se é.


Definitivamente, aqui está um álbum que pode ser definido de diversas formas. Em suma, o que se tem aqui é um presente acústico e introspectivo de Felipe Bier. Um presente que se mostra entre a delicadeza, a maciez. Mas também a acidez. Lobo Guará é um álbum em que se permite, em suma, e principalmente, criar a intersecção linear e simétrica entre o transcendental, o etéreo e o onírico.


É verdade que na maciça parte do material, o ouvinte é confrontado com diferentes pontos de vista do que é maciez. Mas o que chama a atenção no material é, também, a maneira como ele combina crueza com melodias minimalistas. Dessa união, surgem arranjos excêntricos capazes de despertar o mundo do inconsciente e levar o ouvinte rumo ao seu próprio mundo particular.


Nesse aspecto é que mora outras importantes definições de Lobo Guará. Diante de tanta fragilidade estética, em que o violão, na maior e esmagadora parte das vezes, é o elemento que liga o lúcido ao sensorial, o álbum convida o ouvinte a mergulhar por um universo cheio de melancolia e nostalgia, mas também de plenitude.


Enquanto ele é capaz de colocar sob os holofotes sentimentos como agonia e desespero, também consegue misturar sensos de esperança e determinação. Nostálgico, mas também cheio de romances apaixonantes, Lobo Guará é onde existem diversos processos que se desdobram entre o autoconhecimento e necessidades íntimas e viscerais em relação ao autoconhecimento e pertencimento.


Agraciado pela produção unida entre Pompeo e Bier, Lobo Guará é um trabalho que, liricamente, muito mais que avançar no mundo do autodescobrimento, é onde se estabelece o confronto entre ilusão e realidade. Um lugar em que o indivíduo enfrenta suas diversas facetas e descobre suas verdadeiras identidades. 


Entre ambiências que vão do bucólico ao interiorano básico, a mixagem, também assinada por Pompeo, destaca esse intimismo exacerbado. Essa densa camada de melancolia que preenche todo o material em uma espécie de valsa sincrônico-linear faz, da maciez estrutural, um falso conforto, ainda que seja repleta de suspiros que lhe garantem o alívio necessário à tensão. 


Fechando o escopo técnico, vem a arte de capa. Assinada por Brunela Succi, ela evidencia a figura do lobo-guará em sua pose de descanso. A partir daí, se tem a noção da delicadeza e leveza, qualidades as quais o álbum abriga com destreza. Porém, ao se atentar às cores adotadas, o azul pode ser entendido como a melancolia. Um estado de espírito que se mantém no lugar com medo do confronto. Por outro lado, se tem o rosa. Um tom de natureza mais viva e quente que chama para a ação, para a vida. Que puxa para o real e afasta da ilusão. Eis aqui o movimento, em cores, de toda a narrativa do disco.


Lançado em 24 de janeiro de 2025 de maneira independente, Lobo Guará é mais um som que reverbera da nova era da MPB. Um álbum em que a música encontra poesia. Uma poesia em que cada linha guarda o máximo de sinceridade e honestidade. Um trabalho visceral, mesmo que de carapuça suave e delicada, que destaca um indivíduo se dilacerando conforme avança perante o caminho do autoconhecimento.

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Sobre o crítico musical

Diego Pinheiro

Quase que despretensiosamente, começou a escrever críticas sobre músicas. 


Apaixonado e estudioso do Rock, transita pelos diversos gêneros musicais com muita versatilidade.


Requisitado por grandes gravadoras como Warner Music, Som Livre e Sony Music, Diego Pinheiro também iniciou carreira internacional escrevendo sobre bandas estrangeiras.