Gorillaz - Cracker Island

NOTA DO CRÍTICO
Nota do Público 4 (1 Votos)

Pouco menos de um ano após o anúncio oficial do EP Meanwhile, o Gorillaz decidiu iniciar os preparativos para aquele que seria o sucessor de Song Machine: Season One - Strange Timez, seu até então último álbum de estúdio. Como uma espécie de emenda das sessões desse trabalho, o quarteto se manteve no Studio 13, em Londres, até maio de 2022 para finalizar as gravações de Cracker Island, o oitavo disco do grupo inglês.


Com uma acidez adocicada ambientando o ouvinte como se estivesse em uma danceteria, o teclado de Noodle entra em cena junto ao vocal de timbre grave e levemente metálico de 2-D. Com um beat inicialmente em downtempo fornecido por Murdoc Niccals, o compasso rítmico vai sofrendo uma leve aceleração ao passo que a faixa-título vai se maturando como uma expoente da lounge music. Com auxílio do vocal em timbre quase fantasmagórico nos backing vocals de Thundercat, a canção acaba imergindo para uma atmosfera inebriante, mas ao mesmo tempo entorpecida enquanto sua base melódica se torna ainda mais dançante da house music. A faixa-título fala de um novo lar, uma espécie de paraíso artificial calcado no senso de censura, manipulação, autoritarismo e egocentrismo. Uma receita percebida apenas por quem manda, e quem recebe, por sua vez, apenas vive como se essa fosse a normal realidade. 


De melodia macia e contagiante graças à base orgânica promovida pela bateria de Russel Hobbs, a canção, que através do teclado de notas embriagantemente nauseantes e adocicadamente entorpecidas remonta a estética criada por Johnny Marr em Boys Don’t Cry, single do Morrissey, conquista um contágio quase manipulatório com o ouvinte. De baixo bem presente na base rítmica new wave-indie rock, Oil tem uma energia melancólica intensa que entra em sinergia com o lirismo que, através da participação do vocal agudo e igualmente entorpecente de Stevie Nicks, narra a busca por algo que crie uma sensação reconfortante em meio à escuridão da depressão. Oil é como um grito desesperado por atenção, por afeto. Por salvação.


É como estar submerso na água. Os sons borbulhantes da escaleta enquanto o beat, ao lado do baixo, vai criando uma base bem marcada e encorpada. Ainda assim, o ouvinte consegue se sentir tão leve que consegue se imaginar flutuando através da valsa miligrâmica da melodia. Oferecendo uma interpretação lírica igualmente leve e até mesmo descompromissada, 2-D levita entre rompantes ondulantes e aveludados de uma guitarra que ambienta o espectador em solo havaiano através de seu lap steel. Através do trip hop, Tired Influencer se apresenta como a busca, ou melhor, a nostalgia lamentosa de um sentimentalismo real hoje inexistente. A influência da tecnologia e, em especial, das redes sociais e da tela dos smartphones e computadores, trouxe a necessidade do afeto tátil, sensível ao toque. E aí, a dark web, citada no último verso, surge como tentativa desesperada de recuperar o amor realista. Uma boa reflexão para as novas relações interpessoais em tempos de hiperconexão.


O teclado surge aveludado, mas ao mesmo tempo nauseante. Na companhia de uma guitarra de riff trotante e levemente grave, a bateria vai desenhando uma base mais orgânica que encaminha o ouvinte para uma esfera setentista da new wave. Ondulante e com mesclas de lounge music enquanto um assobio ecoante deixa a melodia grudenta e ao mesmo tempo hipnótica, Silent Running traz uma interpretação lírica mais presente, porém com toques pensantes. Oferecendo, ainda, uma estética tech house, a faixa, ao dialogar, assim como na faixa-título, sobre um novo mundo, traz Adeleye Omotayo nos backing vocals oferecendo raspas de R&B à dinâmica rítmica. Diferente da faixa de abertura, porém, Silent Running é dotada de notável esperança, de um ingênuo brilho no olhar que sonha por um alvorecer de liberdade e tranquilidade. Ao mesmo tempo, porém, Silent Running soa como uma canção que narra o uso de entorpecentes como estratégia para fugir da realidade triste, dolorosa e lancinante. Versos como “you make me feel so alive (I'll never be)”, “make me cry (Memories and triumph)” e “I decide (This is the season of madness)” são capazes de justificar tal interpretação. E aí, Silent Running parece ser uma continuação linear de Oil.


O sintetizador oferece algo hipnoticamente repetitivo como aquele do teclado de Pete Townsend em Baba O’Riley, single do The Who. Acompanhado pelo amanhecer do sonar épico do órgão hammond através do teclado. No mais, a forma como a guitarra se movimenta na introdução oferece uma curiosa lembrança da melodia introdutória de Owner Of A Lonely Heart, single de Hindley Street Country Club. De base groovada, New Gold tem o lirismo puxado pelo timbre fanhoso e levemente agudo de Kevin Parker. Dançante, New Gold é agraciada pela sequencia de um verso rappeado e de lirismo bem cadenciado pelo rapper Bootie Brown, quem deixa mais claro o viés do enredo, que trata, inicialmente, de futilidades. New Gold é uma canção sobre uma cidade em que as pessoas vivem sem propósito, incentivo ou motivação.


Sintetizador, teclado e baixo se unem na criação de uma melodia macia, mas de base melancólica. Com raspas de sensualidade e um veludo tal como as cortinas valsando em sintonia com a brisa fresca do entardecer, Baby Queen é o relato de um sonho nostálgico em que Damon Albarn reviu a imagem da princesa da Tailândia, agora crescida após os passados anos desde 1997, quando o Blur se apresentou no país.


Com um trip hop afiado de maneira a flertar com o synth-pop e inclusive o soft rock, Tarantula amanhece macia e dançante. Groovada e sincopada, a faixa é regida por uma interpretação lírica suave que, por vezes, chega a beirar o sussurro. Assim como garante os hábitos de uma tarântula, a faixa de mesmo nome apresenta um personagem imerso em uma solidão cortante. Uma espécie de exílio autoimposto que busca por uma motivação. Curiosamente, por vezes Tarantula dá a ideia de, assim como Silent Running, trazer um indivíduo que, através do uso de entorpecentes, tem lapsos de conforto por alcançar a plenitude do bem-estar.


O barulho da chuva caindo é percebido ao fundo enquanto uma guitarra de riff aveludado e minimalista vai se apresentando de maneira tímida. Com um dueto ecoante de cunho fantasmagoricamente onipresente, 2-D e Bad Bunny se unem em um misto de reggaeton e dub. Porém, o que chama a atenção em Tormenta é a ambiência latina promovida, além dos gêneros musicais experienciados, também pelo canto espanhol de Bunny, que com seu timbre grave, convida o ouvinte para caminhar por um enredo romântico sobre beleza, pureza e amor. Tormenta é como outro capítulo sequencial e linear de faixas como Silent Running e Tarantula, o ponto em que o personagem definitivamente encontra seu êxtase de propósito e motivação. Em uma única palavra, Tormenta é uma faixa sobre esperança.


Inovador, reconfortante, aconchegante. O folk se confunde com o aroma rural e a textura do pé nu em uma rua de terra batida. Entre a valsa amaciada das guitarras acústicas e as sobreposições vocais unidas ao backing vocal de Noodle, a faixa cria uma interessante familiaridade estética com aquela de Turning Stones, single de Myles Kennedy. Com a inserção de frases sonoras metálicas e ácidas com um groove sincopados, Skinny Ape traz a curiosa visão da alta tecnologia chegando em uma comunidade humilde. Os olhos curiosos pairam por essa peça que parece vir de outro mundo, mas que, pela sua programação, segue seu rumo sem dar atenção ao cenário ao seu redor. Skinny Ape é um produto que é, inclusive, agraciado por um refrão enérgico e até mesmo divertido que consegue representar a ingenuidade perante o novo. A perfeita fusão entre o folk e o indie rock.


Macia, reconfortante, entorpecente. Emocionante. Com pouco, a união dos tilintares da escaleta com o veludo constante do teclado consegue fazer os pelos do ouvinte se eriçarem e deixar seus olhos marejados por uma motivação quase enigmática. No entanto, é o violão que, com sua sutileza adocicada e gentil, que promove uma base indiscutivelmente emocional. Espirituosa, Possession Island, com sua mistura entre indie e tímidos recortes de flamenco, traz um diálogo nostálgico-melancólico que convida o ouvinte a refletir sobre o peso e a força do perdão. Adquirindo doçura e requintes de uma leve dramaticidade através das notas do piano, Possession Island tem no dueto entre 2-D e Bech um pico de sensibilidade enquanto, na melodia, o mellotron consegue fundir toques de mariachi em um som doce, nostálgico, macio, melancolicamente reconfortante e reflexivo. Não à toa que Possession Island se une à Tormenta no que tange o oferecimento de um lirismo que convida o espectador a pensar, somente.


Pode ser que Cracker Island tenha sido inspirado ou até mesmo motivado pelo cancelamento do longa-metragem sobre o Gorillaz pela Netflix. A verdade é que o fato, que inicialmente soou compreensivelmente desgostoso, proporcionou ao grupo lançar um disco de enredos lírico-melódicos profundos, reflexivos, delicados e cheios de textura.


E nesse aspecto, parece até que o presente álbum segue a aposta de experimentação de Song Machine: Season One - Strange Timez. Afinal, uma série de gêneros musicais é fundia em histórias sobre perdão, esperança, hiperconectividade, solidão, insensibilidade, ausência de pertencimento e senso de propósito, e a busca por salvação .


Com o auxílio do ecletismo e da sabedoria de Mark “Spike” Stent, Cracker Island se tornou um material melodicamente complexo por unir, além da zona de conforto do Gorillaz, como o trip hop e o dub, outros gêneros musicais. Eles transitam entre o indie rock, folk, mariachi, flamenco, reggaeton, soft rock, synth-pop, lounge music, tech house, new wave, house music, rap e R&B.


Toda essa gama foi sintetizada de maneira equilibrada aos objetivos líricos de cada canção através da curadoria de produtores como Greg KurstinRemi Kabaka Jr., Kevin Parker, Tainy e do próprio cantor Damon Albarn. Essa coletividade conferiu ainda mais legitimidade e autenticidade ao material.


Fechando o escopo técnico, vem a arte de capa. Novamente assinada pelo colaborador de longa data Jamie Hewlett, ela traz as personificações digitais dos integrantes em frente a uma cabana. De aspecto místico, o que mais chama a atenção é a pose ligeiramente angustiante de 2-D, que parece se despedir, com dor, der algo não ilustrado. Tal sentimento capturado pela imagem é talvez o que norteia todo o enredo narrativo de Cracker Island: a angústia do incerto.


Lançado em 24 de fevereiro de 2023 via Parlophone Records, Cracker Island é um material lancinante, melancólico e nostálgico. Sua amplitude melódica suaviza seus enredos, mas as interpretações líricas não deixam o ouvinte se perder do intenso viés socior-reflexivo que o álbum sugere. Diferente de Song Machine: Season One - Strange Timez, em que o convite era para curtir, em Cracker Island o convite é para pensar.

















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Sobre o crítico musical

Diego Pinheiro

Quase que despretensiosamente, começou a escrever críticas sobre músicas. 


Apaixonado e estudioso do Rock, transita pelos diversos gêneros musicais com muita versatilidade.


Requisitado por grandes gravadoras como Warner Music, Som Livre e Sony Music, Diego Pinheiro também iniciou carreira internacional escrevendo sobre bandas estrangeiras.