NOTA DO CRÍTICO
Ele chega como uma continuação do projeto da disponibilização de sucessivos singles. Intitulado Imperioso Encantamento, o material, além de ser o décimo álbum de estúdio de André L. R. Mendes, celebra a marca de 100 composições gravadas pelo também multi-instrumentista baiano.
O vento balança a folhagem das palmeiras, mas não em uma valsa desesperada ou aterrorizada por uma chuva torrencial. Seu movimento é mais brando e de veia melancólica propositadamente nauseante. Macia na proposta de união entre violão, guitarra em riff suave com delicadas inserções de lap steel e um beat de aparência eletrônica, Bicho Gente-Gente Bicho propõe um revisitar para um rock mais artístico e teatral tal como fez o Secos & Molhados durante sua estada. A partir de uma voz empostada e suavemente grave vinda de André L. R. Mendes, Bicho Gente-Gente Bicho é embebida em uma linearidade cuja melodia serve apenas como um singelo acompanhamento a um lirismo carregado de convites pensantes sobre ser humano homem. Convidando o ouvinte a pensar o sexismo associado ao machismo como um senso de ludibriosa perfeição, a faixa, com sua educação quase tátil, faz com que o espectador reflita sobre os instintos impulsivos de raiva, ódio, agressividade e até mesmo a censura como instrumentos de rompimento da harmonia social. Bicho Gente-Gente Bicho ainda surpreende por trazer, em seu cerne, uma discussão sobre se o animal homem é passível de salvação ou se sua veia rudimentar o bloqueia de qualquer espécie de redenção, ainda que ele tenha a plena consciência, mas não a capacidade de assumir e conformar, de que o amor é o principal catalisador para as verdadeiras transformações sociais.
Um som seco, semelhante ao percussivo, recepciona o ouvinte em um ambiente que, sem demora, se torna floral e doce, mas também curiosamente entorpecido. A partir de um assobio ondulante, até mesmo a melancolia passeia livremente pela paisagem em processo de nitidez. Acompanhada por um beat igualmente macio e uma guitarra de riff levemente agudo pincelando repentes de soft rock, a cenografia se forma mais clara e o espectador consegue visualizar, à sua frente, uma janela aberta abraçada por uma cortina que samba no compasso de uma brisa tropical que encanta desde o pedestre aos banhistas em uma praia de um céu poente de verão. É com essa tarde que A Cantora E O Veranista é narrada com um Mendes de timbre mais aberto capaz de fazer o ouvinte degustar mais facilmente sua voz agridoce. Com direito a sobrevoos aveludados vindos da flauta, o que confere à canção uma amplitude caiçara, A Cantora E O Veranista é a apresentação do antagonismo de duas pessoas de personalidades opostas. A liberdade e a leveza contra a sisudez e os vícios comportamentais. Mas foi daí que surgiu um romance improvável. A Cantora E O Veranista traz em si uma estética semelhante àquela das canções de Iandé e é baseada na máxima de que os opostos se atraem.
É uma exaltação às texturas. É a sensibilidade sendo aguçada. A introdução propõe se imaginar em um local ausente de iluminação em que, no breu, cada som simbolize um tipo de superfície. O agudo estridente se une a um beat de veia ecoante enquanto a umidade e o chão molhado e levemente lameado dão uma estranha noção de cremosidade. Diferente das canções anteriores, em que Mendes ofertou ritmos mais populares, em Remix o que vem é o puro post-rock embebido em uma melancólica MPB. Mostrando um vocal de fraco alcance, mas macio em seus melismas e tímidos falsetes, o cantor faz de Remix uma obra em que serve de base para apresentar um indivíduo assumidamente imperfeito perante a visão alheia. Uma imperfeição latente pela sua necessidade de reconexão com a própria essência. Um processo intrínseco de autoconhecimento. Como uma alma romântica, o personagem de Remix, por meio de frases embebidas em um propositado senso nauseante, traz no amor a proposta do reencontro com os pedaços de uma memória negada pela fuga do sofrimento para, enfim, surtir em superação.
Entre o grave do baixo, a macia estridência do violão e um beat de textura opaca, a canção vem com um ritmo mais contagiante e curiosamente divertido em sua cadência lírica regada em rimas simples. Curiosamente, a partir de uma proposta de enredo penetrante em seu cerne de storytelling, Totozinho é a representação da luta de classe, da cobiça, da ambição. Do desejo de subir na vida, mas bloqueado pelo personalismo e pela métrica capitalista. Se maturando como um samba bem pronunciado, Totozinho é uma história baseada no cenário escravocrata e traz um personagem ambicioso e ausente de bondade. Que começou debaixo, alcançou o topo, mas foi derrubado por seus iguais pelo seu senso de grandeza.
Tocante, macia e fresca, É como sentir o cheiro de café recém-coado saindo da cafeteira da cozinha. O sentir da primeira brisa da noite invadindo a janela da sala e confortando os presentes pela companhia em um ambiente quente. O calor do lençol. O carinho de boa noite de uma mãe. Voltar A Dormir é suave a partir da união adocicada do violão e da viola e tem na guitarra o equilíbrio melódico pela inserção serena de acidez promovida pela educada e pontual distorção. Com uma base lírica romântica e de sensualidade branda, o que Voltar A Dormir traz é a elaboração do luto do término de relacionamento. É a nostálgica relação com as memórias e com um sentimento inquietante de saudade. Um reencontro improvável possível somente no universo do sonho. Voltar A Dormir, com seu torpor incandescente e saudoso, é a primeira balada de Imperioso Encantamento.
A maciez de viés nostálgico e fresco tem seu seguimento no alvorecer do novo ambiente. A partir de uma melodia ondulante efetuada entre violão, baixo e bateria, Pescaria De Arpão vem como um monólogo acimentado em um devaneio de conclusão de falta de pertencimento. A necessidade de mudar o mundo para torná-lo mais adequado ao caráter do indivíduo versus a oportunidade de mudar a essência do ser para se encaixar no contexto social. Pescaria De Arpão é, também, a demonstração do destino agindo na vida do indivíduo, a metáfora da certeza e do imprevisto cujo ritmo é também bem desenhada pelo suavizar do balançar do caxixi. Tal como A Cantora E O Veranista, aqui também se tem dois opostos que se fundem, mas na arte da vida.
A chuva é tão fina que parece um véu. Não há nuvens, apenas um entardecer de luminosidade reconfortante e melancólica no além-mar. Com um toque extra de dulçor proporcionado pelo piano e sobrevoos de violino, essa mesma paisagem ganha rompantes melodramáticos que acompanham o protagonista de Monções, Mel E Pimenta no encantamento do amor. De estética lado b de contos de fadas disneirescos, a canção é o puro romance. A verdadeira face da paixão.
Não existe introdução sonora. Seu amanhecer já traz a base MPB regada por um lirismo de cadência serena, mas com pressa de mostrar seu enredo. A faixa-título é o venerar da relação social presencial, da arte da conversa, da interação tátil. Também soando como uma alegre comemoração do fim da pandemia, a música propõe a reunião da prosa, do sorriso, da alegria e da entrada franca para que todos que queiram possam participar do entrosamento.
Ele é fresco, macio, tropical. Entre melancolias nostálgicas e nostálgicas melancolias, Imperioso Encantamento reforça a presença de André L. R. Mendes na seara da nova MPB com um trabalho que mistura, de forma equalizada, o romance e a paixão com críticas sociais, a brincadeira de palavras e a reconexão com a essência do indivíduo.
De base branda, educada e gentil, as melodias acompanham um personagem embebido em pureza na sua reconexão com o próprio eu, na relação com o luto do fim do relacionamento. Acima de tudo, é um trabalho sobre liberdade e sobre o valor do amor nas relações humanas.
Tendo isso em mente, Mendes faz de seu décimo material uma experiência de texturas que faz com que, entre seus diálogos, o ouvinte caminhe por diferentes ambientes que passam entre a MPB e o soft rock entre perspectivas melodramáticas, alegres e densamente melancólicas. Com frases capazes de ser cativantes e tocantes, mas também nauseantes, o álbum tem interessantes pontos altos.
Faixas como Bicho-Gente, Pescaria De Arpão com enredos estruturados em importantes reflexões sociais. Já Voltar A Dormir, entre todas as românticas de Imperioso Encantamento, traz a melodia mais bem trabalhada em sua simplicidade estética. Por fim, A Cantora E O Veranista e novamente Pescaria De Arpão trazem enredos líricos penetrantes que, sozinhos, já conquistam o ouvinte por trazerem histórias despropositadamente sob a ótica do conceito de storytelling.
Ainda que as melodias sejam presentes em todas as músicas, o álbum tem uma diferença de equalização vocal entre as duas primeiras faixas e o restante de seu tracklist. Enquanto nas primeiras o ouvinte se perde entre frases que soam opacas como a pressão da altura entupindo as arestas auditivas, nas restantes o vocal de Mendes é mais bem compreendido e melhor degustado, de forma a fazer o ouvinte perceber suas limitações de alcance, mas também de notar que seu grave tem um aroma generosamente floral.
Fechando o escopo técnico, vem a arte de capa. Assinada também por André L. R. Mendes, ela é a representação cromática de cada uma das oito faixas. Como uma onda dividida em oito camadas, ela metaforiza, por si só, o tropical e a leveza, mas também o romance, o destino, o movimento e o incerto.
Lançado em 15 de julho de 2023 de maneira independente, Imperioso Encantamento é a fluidez da vida caminhando entre paixões, passados desajustados, o desejo de mudança e a comemoração do fim do caos. O álbum é a simples representação de uma alma pura que deseja apenas ser feliz, amado e, principalmente, física e mentalmente livre. Livre para criar, para cantar, para falar. Livre para interagir. Livre para viver.