NOTA DO CRÍTICO
Pouco menos de dois anos depois de anunciar o bem-sucedido The Battle At Garden’s Gate, o Greta Van Fleet retomou as atividades de produção. O intitulado Starcatcher é, além do terceiro álbum, o quinto material de estúdio da discografia do quarteto de Frankenmuth, marcando seus 11 anos de vida.
A melodia se apresenta como uma perfeita mistura de maciez e acidez promovendo um cenário enigmático em que tenta se observar, do topo da colina, o horizonte escondido. Dominada pelo wurlitzer sonorizado através do teclado de Samuel Kiszka e pela guitarra de Jacob Kiszka, a introdução tem uma quebra narrativa quando Danny Wagner surge com um golpe certeiro, preciso e quase ecoante na caixa da bateria, fornecendo aí uma leve estridência. Daí em diante, Fate Of The Faithful passa a ter uma aparência semelhante àquela de Age Of Machine. Ainda assim, a presente faixa provém de notáveis diferenciais estéticos. A guitarra entra como um dos protagonistas da odisseia com seus riffs sensualmente uivantes em sintonia com o timbre agudo de Joshua Kiszka e sua interpretação que soa como uma contação de fábula céltica. Tendo todo o contexto sonoro em um único primeiro plano, o áudio da canção vem alto e claro ao ouvinte, o favorecendo a percepção de leveza, tranquilidade e fluidez com que a melodia é construída. Envolvida por um enredo sócio-analítico, Fate Of The Faithful vem como uma lancinante alfinetada naquilo que soa como hipocrisia religiosa, pois põe na mesma balança a questão da fé e da devoção em uma figura maior, juntamente com a inclinação ao puro senso instintivo ausente de ponderação. É a sabedoria contra o ímpeto do descontrole. É a realidade de ter o caminho na mão e o orgulho de pensar na sua não necessidade. No fim das contas, a ignorância fará da humanidade um conglomerado de mentes vazias.
O violão surge doce, solitário e macio. Envolvido em um adorável frescor, seu movimento traz consigo ligeiras notas de melancolia, enquanto sua frase-ponte para a segunda parte introdutória apresenta uma estética que rememora o folk de The Writing On The Wall, single do Iron Maiden, como também a ambiência de jam session do amanhecer de Voodoo Kiss, faixa do Mr. Big. Quando o novo cenário introdutório se matura, Waited All Your Life amplifica a maciez com o sonar do fender rhodes e flui para um primeiro verso cuja interpretação de Josh soa como uma espécie de adoração. De aroma sertanejo com sua base folk aveludada, ainda que, a partir de certas cadências vocais, rememore a harmonia de Light My Love, Waited All Your Life é uma canção que apresenta um personagem na busca pelo caminho a ser seguido em sua própria vida. A procura do sentido, do se encontrar, do sintetizar querências, carências e necessidades. É como se sentir livre na atitude de vasculhar aquilo que te move, que incite motivação, energia. Que faça querer ficar e experienciar o ato da vida e suas improbabilidades.
O hard rock folkeado que marcou a figura do Greta Van Fleet em canções como Safari Song tem seu retorno com a ensolarada, mas com pitadas sombrias que remetem à energia de The Edge Of Darkness e Brave New World, The Falling Sky vem com um swing marcante e um groove preciso e contagiante. Com direito aos gritos afinados, agudos e estridentes de Josh, a canção soa como uma reflexão para a pronúncia de um pedido de ajuda. Agraciada por um solo de gaita, The Falling Sky é uma faixa cujo enredo narra um indivíduo no que parece ser sua segunda chance de vida, superando o passado e entendendo as regras para continuar no jogo da existência.
A bateria surge seca, solitária e ecoante como um único instrumento a dialogar sobre o início de uma batalha ou o simples aviso de que haverá um embate. Quando os instrumentos de corda entram, uma base melódica semelhante àquela de The Edge Of Darkness. Quando Josh entra em cena, sua interpretação vocal faz com que o ouvinte visualize um cenário nebuloso embebido em uma fumaça esbranquiçada cheia de feixes avermelhados que simbolizam o fogo deixado pelo fim de um confronto. Com um baixo grave e bem audível principalmente no refrão, momento em que soa como trovões de uma tensão bojuda que rompe a metafórica calmaria desenhada pela sinergia entre voz e guitarra, Sacred The Thread é uma música que, por meio de um lirismo de viés narrativo e fabulesco, trata de um indivíduo no seu processo de autoconhecimento. O amadurecimento relacionado com o senso de liberdade e superação movidos pelo propósito da autoconfiança que desenha o destino.
Depois que uma voz grave surge dando uma textura introdutória, o chimbal vem seco e denominando a cadência rítmica da canção de maneira a rememorar aquela de Whole Lotta Love, single do Led Zeppelin. Em uníssono, em seguida surge a bateria completa ao lado da guitarra em golpes rápidos e igualmente secos que fazem uma referência despropositada à sonoridade do AC/DC. Após um rugido crescente de Josh em efeito fade in ser percebido, Runway Blues traz, como o próprio nome sugere uma energia blues. Ela, porém, não é lenta ou macia no tradicional compasso em 4x4. De aroma sensualmente provocante e embebida em uma aura folk, Runway Blues é um interlúdio sexy, provocante e de lirismo simples cujo verso monossilábico-repetitivo “na na na na” fica guardado no subconsciente do ouvinte enquanto a melodia flui para um hard rock até seu encerramento em fade out. Uma canção curta, mas que em seus lapsos verbais traz o máximo de vivacidade.
Solar, alegre, contagiante. Mantendo a sensualidade oferecida em Runaway Blues, a canção já amanhece com um hard rock folkeado de rompantes ácidos vindos do sonar do hammond. Embebida em harmonias vocais fornecidas pelos integrantes do grupo, The Indigo Streak dá a oportunidade de o ouvinte degustar claramente dos dedilhares groovados e bluesados do baixo enquanto traz um personagem categorizado como um pintor sonhador que enxerga a beleza do mundo. Trazendo o quesito da pureza, The Indigo Streak também faz menção à origem do indivíduo de maneira literal e faz refletir sobre a ausência de bondade.
Os tilintares opacos das baquetas, junto a uma contagem progressiva, faz emergir um ambiente abrigado no grave, mas respaldado por um embrionário swing que, curiosamente, consegue flertar com a melodia desenhada por Herbert Vianna para a guitarra na introdução de O Calibre, single d’Os Paralamas do Sucesso. Contagiante em seus rompantes entorpecidamente embriagantes, Frozen Light traz Josh com um vocal amplamente respaldado pelo efeito reverb, o que confere à canção um caráter ecoante como um grande diferencial. De refrão harmônico e potente, Frozen Light possui uma cenografia noturna, abraçada pelo breu, mas com uma fome de ousadia. Essa mesma coragem torna a faixa uma obra que oferece uma narrativa sobre o retorno às origens como uma forma de reset dos vícios comportamentais. Tal como a oportunidade do recomeço, Frozen Light ainda insere em seu dialogar sobre expectativas, ganâncias positivas pela mudança do amanhã. Tudo como forma de metaforizar a possibilidade do recomeçar.
A paisagem é árida, desértica. O calor é escaldante e a textura da terra seca é nitidamente sentida ao impregnar a sola dos pés. O aroma puro e com toques interioranos é sentido em profundidade enquanto as paredes rochosas fazem ecoar o som da valsa do vento. Essa cenografia é construída através da união entre a guitarra e o violão ressonador, dupla que, além de criar uma harmonia surpreendente, dá uma amplitude às texturas até então experienciadas nessa faixa que, até o momento, apenas viu o sol nascer. Crescendo ainda mais em harmonia e ganhando corpo, The Archer passa a ter, nos tilintares do prato de condução, a contagem do tempo rítmico. Com precisão a partir de algumas frases em que o groove oco da bateria se funde ao groove bojudo do baixo, a canção é regida por uma guitarra que ousa no excessivo, mas não cansativo, uso da técnica hammer on e pull off. Tal como Waited All Your Life, The Archer tem uma estética lírico-vocal de adoração, mas, diferente da primeira, a presente música traz uma narrativa em formato de storytelling. Além de abordar o senso de justiça, seu principal mote, The Archer traz a história de um indivíduo que tenta vingar a morte de sua amada. E é aí que vem a metáfora do arqueiro, o símbolo-justiceiro.
O amanhecer vem com o frescor do sereno misturado com um Sol de luminosidade energética. É como a chegada de uma nova oportunidade, um alvorecer com aroma de segunda chance. É verdade, porém, que dentro dessa mesma suavidade, os dedilhares de Jake no violão entregam, inclusive, uma ambiência curiosamente medieval à sua melodia folk. Eis que a voz de Josh invade o cenário com a mesma delicadeza. Serena e limpa, ela assume a função de narrativa verbal enquanto vai se aconchegando no contexto melódico. Majoritariamente minimalista em elementos sonoros, Meeting The Master, somente pela união voz e violão, garante ao ouvinte uma grandiosidade harmônica sem muito esforço. Mostrando a mesma força e afinação que lhe tornaram icônico, coube a Josh fazer a ponte entre o mínimo e o máximo que Meeting The Master pode oferecer. Folclórica, a faixa recebe a bateria apenas a partir do refrão enquanto torna clara a sua história. A história de um indivíduo conhecendo seu mestre, aprendendo com ele e levando, ao fim das aulas, seus ensinamentos para casa. De certo ponto, a canção pode ser uma metáfora do encontro com Jesus e a consequente transmissão de sua sabedoria, gentileza e humanidade. Em Meeting The Master, porém, o mestre também pode ser o Sol, aquele que dá vida a tudo e a todos. É uma verdadeira aula de gentileza, humanidade e tolerância.
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Um vento doce, macio e fresco vem do horizonte oferecendo sensações de conforto e nostalgia. A partir de uma melodia floral e educadamente contagiante de forma a curiosamente flertar com a proposta de My Way, Soon, a faixa é como o vislumbre de uma vida, uma história transmitida no reflexo de um espelho cristalino. Entre dulçores da viola confundidos entre a agudez da guitarra, harmônicas sobreposições vocais insurgem entre Josh e o trio de backing vocals. Mantendo a essência que mistura o folk com a sensualidade do hard rock, a canção apresenta um Josh sem estridência e de vocal limpo, uma interpretação que auxilia na inserção de suavidade na composição harmônico-melódica. É assim que Farewell For Now se apresenta ritmicamente ao ouvinte enquanto seu enredo lírico traz como ingredientes uma base céltica e uma narrativa sobre memórias, legado, liberdade e companheirismo. Uma faixa de estrutura nostálgica, mas uma nostalgia sem tristeza e, sim, de alegria ao ver o que já foi percorrido com o acréscimo do vislumbre daquilo que ainda será vivido após a despedida com gosto de amadurecimento.
Aqui é onde o Greta Van Fleet apresenta sua maturidade artística. Como uma obra em que a filosofia se funde em melodias, Starcatcher é um álbum, basicamente, pensante sobre como o ser humano usa da vida enquanto apto para fazer dela sua liberdade para aprender sobre si, sobre respeito, sobre a valorização do tempo e sobre legado.
Em Starcatcher é onde a vida é a escola de um personagem de essência pura, curiosa, pensativa, generosa, sensível e com grande senso de humanidade. Mais do que em seus álbuns anteriores, o Greta Van Fleet parece ter solidificado seu terreno lírico-estrutural e se permitido ser livre para pensar, talvez sobre as mesmas coisas, mas sobre óticas diferentes das que foram utilizadas anteriormente.
Pra onde vamos, de onde viemos, quem somos. Essas são as questões-guias de uma obra que, em sua larga essência, tem no caráter da liberdade a possibilidade do descobrimento da motivação, do propósito e da direção a ser seguida para alcançar certa elevação espiritual. E solidificar esse caminho só foi possível com auxílio de Dave Cobb.
O georgiano, com sua veia folk, fez de Starcatcher o resultado de um estudo de campo baseado na liberdade e conforto para que o Greta Van Fleet se sentisse leve o suficiente para escrever suas composições. E isso ressoou em cada uma das 10 canções do álbum. Todas com uma essência leve e trazendo uma sonoridade crua, e de garagem, fazendo com que o quarteto de Frakenmuth se apresentasse como se estivesse em uma verdadeira jam.
Nesse aspecto, Cobb conseguiu recriar o mesmo brilho conquistado em 4, quarto álbum de estúdio de Slash feat. Myles Kennedy & The Conspirators. Nele, o produtor, além de puxar a criatividade do quinteto para um ambiente sonoro novo, também fez de sua textura final algo cru por ter sido gravado com todos os integrantes em um mesmo cômodo. No entanto, Starcatcher mostrou uma fragilidade do profissional.
Feliz por ter conseguido bravamente capturar a essência sonora do Greta Van Fleet, Cobb acabou, nesse mesmo êxito, caindo em uma armadilha. Ainda que tenha promovido um enxugamento estético por meio da retirada de sonoridades clássicas vindas da viola, violino e violoncelo, presentes massivamente em The Battle At Garden’s Gate, o produtor falhou em não puxar a criatividade do grupo a ponto de alcançar algo novo.
Isso fez com que Starcatcher, apesar de seu frescor e maciez, soasse um material mais do mesmo, com diversas semelhanças estéticas com as de outras canções do próprio grupo. Fora da direção e entrando no campo estético do som, Mark “Spike” Stent fez uma mixagem cuja finalização sonora foi cristalina na proposta de exalar um som de garagem, mostrando com vivacidade um Greta Van Fleet dos primeiros anos de atividade reverenciados por uma melodia hard rock folkeada de toques blues.
Lançado em 21 de julho de 2023 via Lava/Republic Records, Starcatcher é um álbum de estética teatral, cenográfica e filosófica, em que o Greta Van Fleet se mostra propositadamente cru ao fortalecer sua essência lírica puramente existencialista. Apesar da maciez e frescor, porém, o álbum não traz o grupo experienciando novas texturas.