NOTA DO CRÍTICO
A tarde de 07/03 era de um céu claro com poucas nuvens, apesar de ser preenchida com sinais de chuva. Ainda que com essa paisagem, os termômetros urbanos marcavam 28°C, o que surtia em um clima quente não sufocante, mas a ponto de fazer transpirar. Mesmo sob essa aparente inconstância, linhas de pessoas vestindo preto banhavam as calçadas da Avenida Francisco Matarazzo.
Seguindo a trilha, percebeu-se que o formigueiro se encontrava no Allianz Parque, local que, às 17h39, era frequentemente abastecido por sorrisos, pedestres de caminhares frenéticos, gritos e uma energia que transcendia a satisfação. Essa energia contaminava o ambiente por completo.
Curiosamente, esse cenário, vivenciado em plena terça-feira, indicava que algo importante estava prestes a acontecer, afinal, as pessoas ali presentes tiveram de dar ao menos uma satisfação plausível para sair do trabalho mais cedo. E sim, havia um motivo plausível e até palpável.
Dali a algumas horas, aquele público que ia e vinha assistiria a uma reunião improvável e até, quem sabe, a derradeira. Mötley Crüe e Def Leppard, duas gerações do hard rock, no mesmo palco, separados por apenas alguns minutos. Antes disso, porém, Edu Falaschi faria a abertura desse evento no mínimo excêntrico e que recebeu o nome The World Tour pelo simples fato de sair dos Estados Unidos.
Enquanto as arquibancadas eram timidamente preenchidas, as pistas viviam um cenário diferente. Mais e mais pessoas iam chegando e colocando diferentes tons de preto sob a branca proteção do gramado. O mais interessante era notar existiam olhares confusos para algo que parecia um defeito. Um corredor elevado dividia a pista premium em dois, mas o que ele comunicava, em seu silêncio provocante, era que seu espaço seria usado nas e pelas apresentações, prometendo altos graus de frenesi.
Faltando quatro minutos para o início das apresentações, de acordo com o cronograma da produtora, o estádio seguia com grandes gargalos em todos os setores. Entre os pagantes, camisetas do Mötley Crüe e do Def Leppard dividiam a paisagem de forma igualitária. Com relação a Falaschi, nada se via, nem mesmo produtos de bandas que participou anteriormente. No lugar, bandas como Sabaton, Iron Maiden, Ozzy Osbourne e Black Sabbath eram representadas por bandanas ou camisetas.
Edu Falaschi
Às 18h15, enquanto o céu permanecia claro e com temperatura ainda quente, Edu Falaschi e companhia entraram no palco já performando a potente Acid Rain para uma plateia silenciosa, mas que visivelmente curtia o som. Para Falaschi, comportamento pareceu incomodar, principalmente quando sua tentativa de chamar por uma participação mais enfática do público falha.
Durante a performance de Fire With Fire, a única canção de Vera Cruz, novo material solo do paulistano, pôde ser percebido que, apesar de forte e firme, o som não estava devidamente equalizado. Fator fez com que o soar instrumental sobressaísse sobre o vocal. Mesmo assim, o show seguiu.
E foi com outra canção do Angra que Falaschi atingiu o ponto alto de sua apresentação. Em Bleeding Heart, pediu para que a plateia iluminasse o estádio com as luzes dos celulares, o que foi obedecido de bom grado. Apesar da dessincronia da valsa dos braços, tal participação fez ainda mais dramática a execução da faixa.
Enquanto In Excelsis era tocada pelo alto-falante, Falaschi era chamado no canto por um homem que pareceu fazer parte da organização do evento. Ao voltar, o cantor comunicou que seu set deveria ser encurtado e que, então, teria de fazer a saideira. E a escolhida foi Nova Era, outra canção do Angra.
Às 18h45, com um grito em falsete estendido, Falaschi colocava fim à sua performance, retirando a si, os guitarristas, o baixista, o tecladista, o baterista e as duas backing vocals do palco. Do mesmo jeito que entrou, o paulistano cinquentenário deixou o estádio Allianz Parque. Sem gritos ou palmas, apenas o silêncio. Uma prova de que o público ou pouco o conhecia, ou de fato a ele foi pouco receptivo.
Curioso notar que, apesar de tal comportamento da plateia e de defender o power metal, Edu Falaschi se apresentou vestindo uma roupa que comunicava algo mais glam por conta dos brilhos, mostrando que até mesmo ele estava incomodado com alguma coisa. Não por acaso, Falaschi não escondeu o desconforto de se sentir um estranho no ninho, um indivíduo que, aparentemente, em sua visão, rompeu com a energia hard rock proposta para o evento.
Poucos minutos depois, às 19h18, o estádio encontrava-se completamente preenchido. Os olhares das pessoas ali presentes, mesmo sabendo ainda estar cedo para o próximo show, miravam famintos um palco vazio na esperança ingênua de ver alguém da equipe do Mötley Crüe, o próximo a se apresentar.
Mötley Crüe
Quando Requiem In D Minor, K. 626, de Mozart, começou a ser executada nos alto-falantes às 19h25, o público já sabia. A hora estava chegando. Durante a introdução, feita por um episódio chamado Breaking News Report criado para a turnê e transmitida debaixo das luzes artificiais do estádio, o público não conteve sua ânsia desenfreada por ver o Mötley Crüe oito anos depois daquela que seria a última performance do grupo em terras brasileiras.
Às 19h30, as luzes do estádio se apagam e o público fica ensandecido até o quarteto californiano se posicionar no palco e iniciam Wild Side. O mais curioso é que, apesar de a plateia estar definitivamente em êxtase pelo início da apresentação, boa parte dela se agarrava ao celular para captar o momento, seja em vídeo ou foto. Isso acabou criando gargalos de silêncio, que eram rompidos sempre que Vince Neil pronunciava o nome da canção, cantado eu coro pelo público.
E não foi apenas em Wild Side que os celulares tiveram participação vip. Também em Don’t Go Away Mad (Just Go Away), os aparelhos eram frequentemente escalados para capturar a imagem do grupo durante essa que foi a primeira performance de uma balada na lista de faixas.
Isso quer dizer que o show foi regado a canções explosivas e dançantes. De fato. O que o Mötley Crüe entregou foi uma seleção de 16 músicas caprichada em hits, que criaram diversos pontos altos durante sua uma hora e meia de duração. E o primeiro deles aconteceu com Too Fast For Love, com direito a gritos ensandecidos e uma participação ativa da plateia.
A sequência Live Wire e Looks That Kill é outro exemplo, apesar de que a primeira teve uma plateia com olhares de uma nítida dose extra de pura adrenalina e êxtase. Porém, uma música em questão surpreendeu não por ser incluída no set, mas pela receptividade que teve da plateia.
“You guys are the best audience in the world! This is a song that we made for a movie…”, provocou Neil enquanto Nikki Sixx puxava o groove marcante da introdução de The Dirt. Apesar de bem recebida pela plateia, a forma como o som ressoou deixou a canção com um nível de pressão e poderio curiosamente abaixo da versão de estúdio, pois a apresentação, por parte dos Crüe, não teve ímpetos explosivos ou algo que deixasse o momento marcante.
Um momento que certamente ficará marcado não diz respeito a uma música, mas sim a uma interação. Após o compilado Rock and Roll, Part 2 / Smokin' in the Boys Room / Helter Skelter / Anarchy in the U.K. / Blitzkrieg Bop, Tommy Lee se posicionou na área extendida do palco e começou uma conversa com o público. “Hey, may I move here? I hate America”, começou, recebendo gritos de aprovação. “Guys, give me a favor: put your girls in your shoulders and let me see his tetas”.
Após certos segundos, algumas mulheres se empoleiravam nos ombros de seus respectivos pares, mas nenhuma com o seio a mostra. No máximo, de sutiã. Mas já foi o suficiente para Lee, que, com os olhos brilhando e um sorriso largo e debochado, confessou: “wow, I’ll definetly move here”.
Home Sweet Home veio depois para acalmar os ânimos, sendo a responsável por encerrar a lista de baladas do set. Além de já ter uma base macia que mistura drama e melancolia, a plateia teve grande parte no aumento dessas emoções. No refrão, ela cantou todos os versos, fazendo dos trechos quase um recorte à capella. Além disso, o público ascendeu as lanternas dos celulares iluminando a escuridão da noite com pontos luminosos espalhados por todo Allianz formando uma bela imagem.
Doctor Feel Good teve uma participação ativa e definitivamente necessária das dançarinas recrutadas pelo quarteto. Durante a performance, tal como foi nas outras canções, Ari e Hannah apresentaram passos com o triplo de sensualidade e provocação, sempre com seus olhares firmes e elétricos.
Para quem pensa que não houve surpresa, engana-se. Para a performance de Girls, Girls, Girls, considerada outro ponto alto por ter tido grande participação do público no refrão, o Mötle Crüe foi acompanhado, além das dançarinas, de dois balões gigantes com a forma de um corpo escultural feminino. Eles fizeram parte do cenário até o fim da apresentação.
Dali a pouco, John 5, o substituto de Mick Mars, puxou uma intro que tirou o público do chão e fez necessário o uso de protetores auriculares de tão alto que foram os gritos. Aquele som que mais soou desarmônico, foi simplesmente uma forma dissonante de chamar por Kickstart My Heart, a derradeira performance do set, que formou um frenesi incontrolável em todo o público até seu oficial fim, às 21h01.
Em retrospecto, o show foi bom, mas menos do que o esperado. É verdade que ele foi preenchido por grandes hits, mas mesmo eles, não foram suficientes para garantir a atenção absoluta do público. Além disso, não houve explosão, fogo ou pirotecnia, tendo Lee como principal integrante a mostrar os sinais da idade, mesmo estando fisicamente em forma. Não houve sequer lembranças de uma selvageria vinda de uma perigosa banda de L.A dos anos 80. Uma despedida com goles generosos de saudosismo pelo que um dia foi o Mötley Crüe.
Ainda assim, uma situação curiosa viria a acontecer. Grande parte do público que preenchia o gramado começou a se movimentar rapidamente em direção às saídas, com muitos burburinhos como “já vi a banda que tinha pra ver” ou “o show acabou”. Em poucos minutos, grandes gargalos se formaram em todos os setores, dando espaço para que aqueles que ficaram pudessem se mexer com maior conforto.
Def Leppard
O que pareceu apenas um momento acabou se solidificando. Quem saiu, de fato não voltou e a performance do Def Leppard ficou com um volume de público visivelmente menor. Ainda assim, o quinteto inglês não se abalou e, às 21h32, entrou no palco para dar início à última performance da noite.
Take What You Want pareceu dar razão para aqueles que deixaram o estádio. Enquanto o som estava estourado, quem ficou se mostrava com feição prostrada, cansada e até mesmo com ar de ignorância para o que estava sendo apresentado. Porém, tudo mudou a partir do segundo ato.
A enérgica Let’s Get Rocked, além de vir com um som mais bem trabalhado, conseguiu boa participação do público, que cantava o refrão a plenos pulmões enquanto retraiam e esticavam os braços com mãos chifradas. Animal, que veio em seguida, teve interação ainda maior, com uma plateia que cantou e, inclusive, pulou e bateu palmas ao fim em tom de agradecimento. Foolin’ seguiu a mesma receita finalizando um primeiro grande trio de canções.
Depois de apresentar Kick com o intuito de promover Diamond Star Halos, seu disco mais recente, o Def Leppard trouxe Love Bites, música que assumiu o posto de primeira balada do set. Nesse momento, enquanto as luzes das lanternas de celular deixavam a plateia iluminada, outros indivíduos se preocupavam em registrar a performance, fazendo dos aparelhos a extensão de um grito, um canto, uma participação muda.
Ao fim de Promises, Joe Elliot se posicionou no fim do corredor extra do palco e fez as apresentações indicando Phil Collen, Vivian Campbell, Rick Savage e Rick Allen, o mais jovem do quinteto, no palco. A cada um apresentado, urros e palmas se confundiam em um grande uníssono.
Rocket foi outro momento importante. Nela, apesar de o público estar tímido, mas com nítido ânimo, houve entrega de participação com danças, vaivéns de cabeça e mãos chifradas ao alto. Tal cenário, se repetiu em Bringing On The Heartbreak, que já foi recebida aos gritos e teve intensa participação no refrão.
O ponto máximo, aquela histeria desgovernada, viria apenas após Hysteria. Quando o riff da guitarra ficou nítido, o estádio desabou. Gritos, uivos, assovios e danças desengonçadas tomaram conta da plateia durante Pur Some Sugar On Me, faixa que deu à performance do Def Leppard o primeiro e declarado frenesi viral.
Rock Of Ages teve mesmo efeito, mas foi com Photograph, a saideira, que outro êxtase coletivo se formou até às 23h, momento em que o Def Leppard deixou, sob aplausos, assim como foi também com o Mötley Crüe, o palco do Allianz Parque. Assim, a The World Tour se finalizava, ao menos para São Paulo.
Foi simplesmente um show honesto. Cheio de baladas e canções radiofônicas, a performance do Def Leppard teve um som mais bem equalizado e conseguiu, com sinceridade, entregar uma apresentação viva, contagiante e, se for possível dizer, mais viva e orgânica que a anterior.
No que tange a performance do Mötey Crüe, ainda, é que foi possível notar que John 5 estava solto e livre com a atmosfera glam e as músicas essencialmente sensuais do grupo californiano. Parecia mesmo estar em casa e honrou a função de Mick Mars. Porém, na somatória, o cenário fica um pouco diferente.
Rememorando o primeiro show do dia, Edu Falaschi não poderia nem ao menos participar da disputa pelo título de melhor show da noite, pois além de estar desconfortável, seu set foi encurtado. Curioso é perceber que, apesar de ter parecido mais parado, o show do Def Leppard teve respostas positivas mais frequentes e consistentes, além do som ter estado melhor em relação ao do Mötley Crüe.
É verdade que não se sabe a verdadeira razão para o encurtamento do show de Falaschi, mas é conhecido o comportamento predatório do showbusiness internacional sobre as produções locais, um motivo considerável para a ocasião. Fora isso, a organização foi impecável. Mötley Crüe e Def Leppard começaram e terminaram seus sets nos horários previstos.
Uma turnê insana com um line up improvável e regado na sensualidade do hard rock. Uma turnê que levou, talvez pela última vez, duas grandes bandas da história do hard rock para o mesmo palco. É isso o que a The World Tour entregou para São Paulo e certamente repetirá essa mesma receita nos eventos restantes.