NOTA DO CRÍTICO
Berço de nomes como Isa Roth e Bié dos 8 Baixos, a cidade baiana de Feira de Santana segue musicalmente produtiva. Depois de oito meses, o município agora anuncia um novo trabalho. De autoria da feirense CARU, o EP Paris, Bahia é o sucessor de A Terra E O Tempo, seu extended play de estreia.
O baixo de Paulo Mutti surge áspero e estridente na estrutura de um stoner rock da escola do White Stripes. De base rítmica sombria, a canção é como um caminhar perante um ambiente inóspito banhado por uma noite sem estrelas ou luar, banhada apenas pela escuridão. O não enxergar o que está à frente apavora pela insegurança que estimula e é exatamente isso o que Desapareça oferece: densidade e uma insegurança calcada no desconhecido. É então que uma voz encaixada como se estivesse falando ao longe ou, ainda, como um personagem onipresente entra em cena rompendo a linearidade melódica. Eis CARU oferecendo um timbre ameno, mas perdido em um latente torpor que narra um enredo sobre o último capítulo de um relacionamento, aquele em que uma das partes é expulsa tanto fisicamente quanto sentimentalmente da vida do outro. E nesse ínterim, o violão de linhas melódicas sequenciais e levemente aceleradas imputa notas extras de dramaticidade em meio à soturna paisagem de Desapareça.
A guitarra vem se mostrando crescente como em efeito fade in. Enquanto isso, o bumbo de Lorena Martins vai imputando a cadência rítmica ao lado do sonar do chocalho que oferece novas texturas ao adocicado eletrônico que vai se formando através do sintetizador. Sem grandes delongas, Nuvem (Ai Claud) é uma canção sobre insegurança disfarçada de um não querer virar a página de um relacionamento passado. Ao mesmo tempo em que existem nítidas críticas ao visual perfeccionismo físico das redes sociais, Nuvem (Ai Claud) dialoga, auxiliada por roupagens folk e synth-pop, com a futilidade social de maneira a, como em um looping, recair sobre o conceito da insegurança e, inclusive, o auto-menosprezo.
Ruído branco. Em seguida, um coro entoa versos vocálicos em ritmo de cânticos religiosos enquanto sons do batuque do tamborim são ouvidos ao fundo junto do chocalho. Um clima de festa e de reencontro é, enfim, estruturado. Surpreendentemente, o que era minimalismo sonoro passa a ser um ritmo regido pela guitarra elétrica distorcida em riffs graves que imputam um groove guiado por uma base que comunica a estética de um embrionário samba rock. Com direito até a tilintares do agogô para dar um toque de swing, Tô Voltando é simplesmente a narrativa de uma personagem que está, de fato, retornando para ao lado da cara-metade. O mais curioso é que, entre as esquinas melódicas alegres e farristas proporcionadas pelo Canto Cego, o ouvinte nota singelos parentescos com a sonoridade de Amado, single de Vanessa da Mata.
Sons transcendentais e ecoantes são ouvidos como em um amplo e vazio espaço. De essência que exala uma sensualidade latente, Polpa já indica desde o início misturar elementos do pop e do rap. De maneira inteligente, CARU cria um enredo que, à primeira vista, parece tratar da atração de dois corpos, a pura libido metaforizada no ato de comer a fruta caju. Para amplificar ainda mais a sensualidade, a cantora insere uma ponte calcada no idioma espanhol, causando certo frenesi e êxtase no ouvinte.
De alegria transcendental e crescente, a melodia por si só já cria certa noção de excitação e energia reavivante que faz surgir sorrisos largos no rosto do ouvinte. Com o som do violão proporcionando uma ambiência sertaneja inebriante que, através da levada de Ruth Rosa, ainda se mistura em uma roupagem folk, Diversidade Nordestina é, como o próprio nome sugere, a exaltação da cultura e da diversidade nordestina. Uma diversidade que vai desde os sotaques, roupas e costumes à cultura musical. Na faixa, CARU ainda ousa em fazer, ao lado de Dona Shirley e de maneira extremamente sutil, uma crítica ao senso comum de que nordestino é analfabeto, algo evidenciado nos versos “eu reconheço o nordeste, o nosso nordeste berço da inteligência e sabedoria” e “eu sou nordestina e sei tudo”.
Diversidade não é apenas a nomenclatura da última faixa ou a mensagem da mesma. Diversidade é o que existe de maneira geral em Paris, Bahia. Afinal, para quem pensa que por se tratar de uma artista baiana o EP seria baseado no axé, olodum ou outro gênero nordestino, CARU surpreende ao apresentar um trabalho dinâmico, versátil e culturalmente independente.
O que existe de nordestino no trabalho é o sotaque da cantora e alguns elementos percussivos que servem como um tempero audaz para as melodias construídas. Até porque, ritmicamente o que existe no EP é stoner rock, pop, folk, synth-pop e samba rock.
Tratando sobre rompimentos amorosos, insegurança e itens da cultura nordestina, Paris, Bahia é um trabalho que traz, sim, fortes traços regionalistas, mas que não se prende em tais divisas e mergulha na fusão de sonoridades para a aquisição de roupagens autênticas e contagiantes.
E para conseguir tal resultado, CARU recrutou Mutti e Bruno Giorgi para a engenharia de mixagem do EP. Assim, o que a sincronia dos profissionais criou foi de fato um produto que soa melodicamente acessível, e liricamente crítico e contagiante. Finalizando o escopo técnico, a produção, também feita por Mutti transmite uma honestidade e uma simplicidade que consegue recriar a energia nordestina mesmo quando as melodias não tangenciam com o território.
A arte de capa, por sua vez, é carregada de menções ao nordeste. Feita por Lucas Silvestre, ela apresenta CARU ao centro de um fundo marrom que, somente pelo tom, já remete o sertão. De outro lado, a indumentária e os objetos portados pela cantora também traduzem as culturas religiosa e musical, bem como a flora nordestina.
Lançado em 06 de maio de 2022 de maneira independente, Paris, Bahia é um trabalho regional, mas também sem amarras criativas que dialogam sobre relacionamento e, principalmente, sobre o nordeste brasileiro. É como uma homenagem de uma feirense ao conjunto de estados que deu vida ao Brasil.