
NOTA DO CRÍTICO
Próximo do fim do terceiro semestre de 2024, o universo da música ganhou um novo integrante. Tomando seu respectivo espaço na seara do heavy metal, os brasileiros do Urdza anunciaram, naquele mês de agosto, seu primeiro álbum de estúdio. Intitulado A War With Myself, ele continua reverberando na cena independente.
É com uma sensualidade ríspida e minimamente agressiva que a composição de abertura tem seu despertar anunciado. Através de cenários flamejantes e envolta em uma dicotomia de sensações que vai da aspereza ao azedume, a faixa, desde seu início imediato, fornece uma maturidade sonora bem estruturada. Crua e cinicamente sensual, ela combina bons riffs de guitarra trazidos por Hugo do Prado e Gustavo Correa, um baixo encorpado em meio a uma postura ácida desenvolta por Raphael Dafras e uma bateria consistentemente pulsante cuja levada é desenhada por Igor Mota. Assim que o primeiro verso se anuncia, a faixa é irrompida por uma voz masculina afinada, de base doce e de ampla extensão. De posse de Heitor Prado, ela rememora em demasia o timbre icônico de Bruce Dickinson. Explosiva, mas não tão incandescente, a faixa-título explora sensos de agonia e certo grau de desespero, detalhes que são expostos por uma interpretação lírica altiva, mas não capaz de esconder a fragilidade do personagem lírico. Não à toa que o enredo verbal captura o instante em que o protagonista se vê refém de seus próprios medos e seus próprios ímpetos manipulativos, agressivos e autoinflingentes.
Enquanto as duas guitarras se dividem na criação de um pseudo avant-garde que muito lembra a introdução de B.Y.O.B., single do System Of A Down, a bateria, em união ao baixo, invade a cena já desenvolvendo uma levada percussiva trotante, na qual a estrela é a cadência precisa e sequencial do bumbo. Com bom corpo e consistência rítmica, a canção entra em seu primeiro verso sob uma postura notavelmente mais intensa do que aquela experienciada no título anterior. Aqui, existem pulsos de uma raiva aparentemente adormecida, mas travestida em uma imagem de calmaria. Sendo isso uma espécie de manipulação ou não, o fato é que Wrath Of God vende muito mais imponência do que agonia. Na presente composição, o senso de rebeldia e inquietação reina os céus da desordem e da desarmonia. Isso porque, liricamente, o título discute a fé em sua forma superior, questionando, assim, sua força perante a dor e o medo. Com gosto de questionamento, é como se Wrath Of God abordasse o comportamento de má-fé adotado por uma parcela da sociedade que só se apoia em uma força sobrenatural quando lhe é conveniente. De outro lado, porém, a faixa parece trazer um relacionamento infeliz para com o conceito de fé, evidenciando raiva, desgosto e ódio em relação a uma imagem sagrado-mitológica que, pela ótica do personagem lírico, é hipócrita por não prestar o auxílio que diz oferecer.
Bem-vindo ao reino das sombras, do medo e da vulnerabilidade. Nesse novo ecossistema, não existe sequer a lembrança de uma figura salvadora ou uma brisa que traz consigo lapsos de esperança. O ambiente é pegajoso, úmido e quente. O chão é movediço e, as paredes, tão rochosas quanto paredões de arenito. Através de um escopo rítmico-melódico trotante, a canção faz com que o ouvinte perceba uma energia um tanto esquizofrênica pairando pelo ar. Durante a sua desenvoltura, a presente faixa consegue reviver o estado de intensa angústia explorada na faixa-título. No entanto, Living In Fear faz do ouvinte uma espécie de refém de seu próprio inconsciente, um estado emocional que escancara a máxima fragilidade a que um indivíduo pode chegar. Mesmo consciente da necessidade de recuperação, o nebuloso e o sombrio acabam soando como movimentos mais fáceis e confortáveis de serem tomados. Porém, ainda que o fim da linha pareça a melhor solução, sempre existirá um novo nascer do Sol irrompendo no horizonte, um evento que, infelizmente, aparenta não mais ser vislumbrado pelo protagonista.
Sua estética é crua, densa e mistura elementos do doom com um hard rock metalicamente folkeado. Da sua introdução, pode-se retirar influências sonoras que vão de Led Zeppelin, passam por Black Sabbath e tangenciam até mesmo um surpreendente Jethro Tull. Pulsante, ríspida e até mesmo coerciva, a faixa se destaca por uma afiada sintonia entre os quatro instrumentos, criando uma estrutura densa, forte e bem cadenciada. Com um baixo de groove surpreendentemente saliente, Sinner Or Liar soa como relâmpagos rasgando o céu escuro com seus clarões de um branco estridente. Em sua máxima proposta, a faixa traz um diálogo um tanto inovador. De essência questionadora, ela apresenta a inquietação perante o senso de inconformismo. Seria ele um sinônimo de insatisfação, condescendência e ganância ou um senso de resiliência? Esse comportamento, na canção, traz a dualidade entre céu e inferno como um meio de abordar, simplesmente, o sentido de causa e efeito.
Não existe sequer uma chance para respiro, para a ambientação em torno do novo ecossistema. Afinal, seu início é trazido em forma de um supetão. Já agraciado por uma estrutura ritmicamente acelerada, é interessante notar a construção da intersecção entre uma levada calcada na métrica do hardcore com guitarras vulneráveis em suas silhuetas metalizadas. Elétrica e rememorando bem a escultura clássica do Iron Maiden, Damnation parece dialogar não somente sobre a síndrome de Peter Pan, mas sobre a necessidade sócio-endêmica de se manter jovem. Esclarecendo o temor da velhice como um passo antes do fim, a juventude vem como sinônimo de vida eterna e de pureza. De outro lado, é possível dizer que Damnation trata da forma equivocada com que se relaciona com o tempo, um fator muitas vezes menosprezado pelo corriqueirismo, mas que possui ações calculistas e insensíveis, as quais evidenciam descaso e ignorância a ponto de gerar a culpa e o remorso.
Tal como o Sol surgindo no horizonte de forma a evidenciar um terreno morto e desolado, a canção, já a partir da maneira como as guitarras se movimentam em conjunção com a bateria, demonstra lapsos não apenas de angústia, mas de desespero e de uma esquizofrenia irreversível em virtude da demasiada noção de fragilidade. Denotativamente crua é ácida, Rising From The Fire é como estar caminhando próximo à lava em meio ao seu calor incandescente e flamejante. Curiosamente, porém, o fogo aqui é trazido como sinônimo de renascimento. Tal como as fênices que ressurgem das próprias cinzas, a faixa traz um personagem que insurge de seus próprios medos. Mais forte, maduro e consciente, ele é adornado por um forte senso de resiliência que lhe permite entrar em um profundo processo de autoconhecimento, lhe permitindo, assim, a válvula de escape do mundo das sombras em virtude da aquisição do entendimento de suas dores e aflições.
Existe uma boa mistura entre densidade, precisão e azedume pairando pelo ar. Enquanto guitarra e bateria se combinam curiosamente em uma tomada sonoramente trotante, na atmosfera vai sendo embebida em uma brisa ácida e corrosiva fornecida pelo baixo. Com uma rispidez curiosamente controlada, a composição, desde seu despertar, ilustra uma postura mais consciente, sem desespero ou angústia. É como se a certeza fizesse parte da sua essência e, a autoconfiança, uma parte intrínseca ao seu modus operandi. Para dar ênfase a esse enredo sensorial, a camada lírica ganha vida a partir de uma equilibrada sintonia de estilos interpretativos. Afinal, em Sign In Blood, Prado mistura sua escola operística tradicional com incursões de drives que dão uma intensidade rascante a cada palavra pronunciada. De energia sombria, a faixa traz consigo uma mensagem bruta no sentido de chamar a atenção para o exacerbado senso de ganância e personalismo que regem as ações humanas na atualidade. Em virtude dessa abordagem, a presente faixa se diferencia das demais obras de A War With Myself por trazer, de fato, algo externo, social e atual e, não, algo inerente ao introspectivo, à psiquê e ao inconsciente.
De certa forma, é possível notar a influência de Janick Gers no riff que abre a baixa em virtude de uma ligeira, mas visível base semântica com aquele que abre 2 Minutes To Midnight, single do Iron Maiden. Aqui, porém, a frase da guitarra vem ligeiramente mais lenta, soturna e até com um toque nebulosamente asqueroso. De natureza lancinantemente lacrimal, a faixa traz consigo uma mistura manipulativa de dor e sarcasmo através de um complexo instrumental estruturado pelo time rítmico-melódico. Explodindo rapidamente em um heavy metal enérgico e pulsante, Down Predator assume uma atitude cínica e sinistra tal como um animal carnívoro rastejando pelas sombras antes de dar o bote fatal em sua presa. Em meio a essa dramaturgia efervescente, mas ao mesmo tempo angustiante, a faixa traz consigo uma narrativa intrigante que apresenta um personagem onipresente que, ousadamente, não é algo que se pode tocar, mas, sim, algo que se pode sentir. Aqui, a culpa é o personagem principal. E, com ela, vem o remorso e a dor junto de um medo latente de encarar o passado.
A estrutura rítmica acaba assumindo, aqui, o mesmo formato experienciado em outros títulos do material, o que acaba culminando na experimentação de um mesmo cardápio de emoções. Explorando uma densidade ligeiramente mais consistente através de seu andamento ondulante, a faixa se mostra sensorialmente ácida e pegajosamente sombria. É como se, de alguma forma, as trevas ganhassem vida e, seu céu, ganhasse voz. Enquanto os trovões urram e os relâmpagos rasgam o silêncio com seu som caótico, o senso de lamúria e desespero por piedade insurgem de maneira a contaminar todas as camadas físicas e emocionais do ouvinte. Assim, o instrumental Imperial Seal faz, de si, uma composição em que cada esquina sonora vem na pose de misericórdia. De súplica por redenção. Pedidos que, cruelmente, são engolidos pela voracidade da ausência de clemência e pelo peso da consciência.
Embebida em um outro tipo de distorção, a guitarra entra em cena tal como a sonoridade excêntrica e regional da gaita de fole. Sinistro e provocativo, o instrumento tem seu andamento ondulante reproduzido de maneira fidedigna pela bateria, guitarra base e baixo, criando, assim, um ambiente regido pela máxima ordem da desordem. Explorando frases rítmicas que flertam com uma tomada mais nativa, é interessante notar que, principalmente pelo som duro dos tambores, o ouvinte consegue sentir a pressão capturando gradativamente sua lucidez e o transformando em uma espécie de marionete sonoro-emocional. Com essa atmosfera, Dark Ritual amadurece com o som de um culto. A experiência de uma sessão espiritual em que entidades vêm para destacar, enaltecer e anunciar o seu poder. Fria como a noite, mas ardente como o fogo. Fantasmagórica como o uivo do vento e tão cínica quanto um chacal, a faixa tem um enredo lírico que, simplesmente, mostra a verdade da dualidade da essência de um mesmo indivíduo. Dentro de uma calmaria contagiante, existe a desarmonia, o caos e a agressividade. O controle rege o equilíbrio. E, quando um falha, a verdade acaba insurgindo ao devorar a falsa imagem beatismo.
A War With Myself é um álbum que diz pelo seu próprio nome. Denso e agressivo, mas com um senso de alerta invariável e inconstante, ele é um material que disseca, dilacera e evidencia até o mais profundo corte do ser humano na tentativa de mostrar a sua natureza mais pura e cristalina. Quando ela é permitida de ser vista a olho nu, o choque se forma ao perceber que a vulnerabilidade, a insegurança e a fragilidade não são apenas sinônimos, mas são o verdadeiro tripé que leva a humanidade ao autoconhecimento necessário para a aquisição de humildade para a sua própria elevação espiritual.
Não é de se espantar, portanto, que o álbum todo trata, de forma angustiada e inquietante, sobre os perigos de se enxergar as verdades escondidas dentro de cada indivíduo. Afinal, não são todos que estão disponíveis e aptos para conhecer as suas naturezas, aquilo que tentam esconder de si e dos outros. O medo e a culpa, por exemplo, andam juntos. A raiva e o ódio, caminham no sentido oposto, quando a tristeza não consegue mais ser controlada.
É nesse momento que não é mais possível enxergar a diferença entre noite e dia. Frio e calor. Chuva e sol. O vento não mais incomoda. O horizonte não mais traz ímpetos de esperança. Por outro lado, o abismo passa a emanar cantigas alegremente envolventes que, ao capturar o inconsciente do indivíduo, o levam para o abissal. De lá, a saída pode até ser vista, mas, certamente, é dificilmente alcançada.
Marcado, portanto, por um olhar sensível, mas denso e agoniante da psiquê humana, A War With Myself lida com o emocional de uma maneira bastante interessante por ter uma interpretação sempre ausente da razão. É por isso que Sign In Blood se destaca. Dentre os outros oito títulos verbo-melódicos, ele é o primeiro que traz um estado emocional regido pela lucidez, mas não menos perdido.
Para dar vida a esse mundo inconstante, o Urdza recorreu à figura de Thiago Bianchi para criar, sonoramente, esse universo. Na função de engenheiro de mixagem, o profissional dá, ao ouvinte, a oportunidade de caminhar livremente pelas paisagens do heavy metal e do hard rock. Sempre explorando o sombrio, o sujo e o ácido, Bianchi faz com que o álbum soe essencialmente cru, afastando, vez ou outra, a verdadeira potência que poderia ser extraída dos títulos do material.
Tal constatação acaba salientando, de certa forma, o fato de que a sonoridade, invariavelmente, chega a um ponto em que passa a soar mais-do-mesmo. Explorando as mesmas nuances sensoriais e o mesmo grau de densidade, o instrumental parece não conseguir sair de sua própria armadilha, pois se permite caminhar por uma arquitetura padrão e rígida sem muita saída para o versátil ou uma breve mudança que instigue um novo horizonte.
Fechando o escopo técnico, vem a arte de capa. Assinada por do Prado, ela consiste em uma construção bem elaborada que destaca a imagem de um indivíduo em visceral feição de angústia aparentemente irrompendo dos escombros de uma cidade aniquilada. Diante de um céu com nuvens fumacentas que evocam o trevoso, é interessante notar como a presença de uma claridade natural escorrendo pelas fendas mal-preenchidas evoca o senso de esperança, algo que é desesperadamente buscado pelo personagem de A War With Myself.
Lançado em 16 de agosto de 2024 de maneira independente, A War With Myself não é apenas um álbum que retrata a natureza inconstante do ser humano. Ele destaca como a mente humana pode agir como a verdadeira governanta da humanidade. Controlando as emoções e o grau de sensibilidade, é ela que define tanto a força e a resiliência quanto a dor e a lamúria. Na feição de uma verdadeira luta íntima, o álbum traz o grito como o exorcismo do medo de si.