NOTA DO CRÍTICO
Pouco mais de um ano após o anúncio de Thought Insertion, seu álbum de estreia, o The Giant Void retornou ao Fuzzr Audio para gravar, entre 2022 e 2023, aquele que viria a ser seu segundo disco de estúdio. Intitulado Abyssal, o material recebeu masterização de Fernando Delgado.
Não existe qualquer tipo de cerimônia. Assim, antes de completar o primeiro segundo de execução, a canção já apresenta ao ouvinte um punch denso, sombrio e inescrupuloso. Apesar de sobressair a aspereza das guitarras, a estridência grave do baixo é outro elemento que, também proporcionado por Felipe Colenci, faz com que a canção transpire um aroma bruto e metalizado de maneira latente. Com generosas doses de suspense, tensão e drama, a música possui precisão principalmente pela concisão com que Michael Ehré executa os golpes na bateria, instrumento esse por onde, inclusive, a base rítmica é recheada de aplicações de bumbos duplos para dar mais potência à estrutura rítmico-melódica. Misturando, de maneira equilibrada, metal, heavy metal e metalcore, Dirty Sinner é narrada por um timbre de essência azeda, mas serena. Proveniente de Hugo Rafael, é ele quem despeja toques de agressividade e imponência à faixa, uma obra que conta a condição de um indivíduo em estágio inicial de loucura pelo excesso de culpa despejada sobre sua consciência. Um ser confortável nesse senso de desolamento e de ausência de lucidez em se perceber escravo não apenas da dor, mas das memórias que ferem de forma lancinante o coração já maltratado pela índole em processo de corrupção.
O nevoeiro vai, paulatinamente, se dissipando. Ainda emanando uma essência mística, ele vai permitindo o vislumbre, a partir da borda do cume, da observação de um horizonte de caráter brando, provendo a aquisição de um senso de esperança. É certo que o novo ambiente é repleto de uma energia reflexiva e densamente melancólica, algo que, inclusive, é amplificado pela interpretação vocal, que se apresenta de maneira puramente narrativa. De vocal limpo na intensão de despejar doses dramáticos ao enredo, Colenci é acompanhado por um backing vocal de estrutura robusta e encorpada enquanto Ashen Empires, Pt. 2 (Nwo)vai tomando a forma de um exemplar do metal alternativo. Entre rajadas de um baixo educadamente encorpado, a faixa finalmente encontra sua silhueta inteiramente formada ao acessar um instrumental harmonioso pela combinação de diferentes tons de grave oferecidos pelas guitarras com o gélido das notas do teclado. Com essa estrutura de metal sinfônico, Ashen Empires, Pt. 2 (Nwo) encontra poder, precisão e consistência enquanto narra a chegada de uma criança representando a personificação de toda a consequência dos maus hábitos assumidos por uma sociedade desgovernada. E no mundo onde ela irá viver, tudo estará repleto das consequências da incompetência e da máxima ausência do senso de comunidade: recursos limitados, ímpetos de barbaridade e educação pautada em hipocrisia.
A guitarra vem bruta, áspera e tremulante, aplicando, assim, o thrash metal à sua melodia. Com auxílio dos golpes secos da bateria no surdo, o sombrio e o tenebroso são sensações densamente amplificadas. Interessante notar que, mesmo sob um ritmo de essência cínica e esquizofrênica, existem traços de suavidade a partir de singelos flertes com a temática do hard rock. Explosiva, gélida e nauseante, The Key evolui para um terreno heavy metal em seu refrão que expõe certa influência do Iron Maiden na presente estética melódica. É assim que a obra representa a necessidade da sociedade por um momento que seja capaz de oferecer, simplesmente, um alento às dores, aos medos e ao caos humanitário. Ainda assim, The Key também evidencia a manipulação que sofremos a partir de nossos próprios sentimentos, os quais escondem a razão e a lucidez, nos tornando escravos fúteis das emoções. E tais sentimentalismos nos impedem de aceitar as imperfeições da vida para enfim, superá-las. Eis, então, a real insinuação de The Key: nossos medos nos tornam marionetes de nossas emoções, cegando a consciência e a coragem, nos transformando em dependentes da morfina e da ideia de utopia.
Rápido, excitante. Enérgico. O despertar do novo ambiente é trotante, elétrico e cuja estrutura remete àquela de The Loa’s Crossroad, faixa do Volbeat. Oferecendo uma boa mistura de metal, groove metal e heavy metal com pitadas de metalcore, a canção é sombria em sua essência, que ainda sugere temperos de metal progressivo. Preenchida por bumbos duplos e sobreposições vocais, Monster Within é uma canção em que o The Giant Void, assim como em Ashen Empires, Pt. 2 (Nwo), propõe o enfrentamento das consequências dos atos feitos. Aqui, porém, o enredo é mais sombrio, mórbido e psicológico, pois o personagem se vê em lapsos de consciência que lhe confere intensos momentos de culpa. Contudo, tais realizações foram motivadas por algo e esse algo é o id, o impulso, a voz de um desejo sórdido externizado pela figura da verdadeira essência do indivíduo. Uma essência que, em Monster Within, se viu fortemente reprimida, mas que encontrou uma brecha para se rebelar e mostrar sua índole perversa.
Enquanto o vento sopra, uma atmosfera áspera, mas melódica, entra com um aroma forte de princípio de caos. Cavalgante, ela apresenta guitarras que se dividem entre o agonizar sofrente e o enfurecer, enquanto vai maturando sua receita baseada na mistura de metalcore e metal progressivo. Quando o primeiro verso entra em cena, a estrutura rítmica passa a exalar leves aromas de speed metal com grande presença do bumbo duplo para criar consistência e pressão. Com essa silhueta, The Black Pit oferece ao ouvinte uma aula de história ao retratar, musicalmente, a campanha militar da Batalha do Atlântico, o mais longo confronto marítimo realizado durante a Segunda Guerra Mundial entre as nações dos blocos Aliados e do Eixo.
Trazendo, desde seu despertar, um hard rock de caráter europeu que relembra aquela estética construída pelo Pink Cream 69, Mars não demora a demonstrar sua estrutura melódica e contagiante e curiosamente floral. Oferecendo uma mistura entre o já citado hard rock com o metal progressivo e singelas pitadas de metal sinfônico, a faixa já se mostra madura em sua personalidade harmônica. Contagiante em sua potência melódica e áspera, ela é uma obra bem trabalhada esteticamente e tão excitante quanto Monster Within. Trazendo, também, pitadas de heavy metal, Mars, com seu enredo místico e pensante sobre as verdadeiras função e responsabilidade de Marte perante a humanidade terrestre, pode ser considerada o primeiro single de caráter puramente radiofônico de Abyssal.
Mantendo a mesma base hard rock europeia da canção anterior, o novo horizonte vem, apenas, com a diferença de ser mais lento. Regido por rompantes dramáticos da guitarra solo durante a introdução, o cenário traz uma melodia bem equalizada em que o ouvinte se torna capaz de digerir desde as ondas groovadas de um baixo levemente estridente às notas adocicadamente gélidas do teclado. A quilômetros de diferença em relação ao enredo de faixas como Dirty Sinner, Ashen Empires, Pt. 2 (Nwo) e Monster Within, Inner Truth apresenta um caráter motivacional, esperançoso e generoso ao instigar, no ouvinte, a persistência, a determinação, a autoconfiança e a coragem para se manter erguido e dando continuidade à vida, mesmo quando ela se mostra caótica.
Doce e floral, a introdução que se constrói surpreende pela mudança sensorial. Do melódico brutalizado à leveza e dulçor. Não demora muito, porém, para que esse cenário seja subitamente desconstruído, mas não em sua plena totalidade. Regida por uma base potente e precisa vinda de um baixo de densa consistência estridente, a nova frase sonora oferece sensualidade e excitação, de maneira a tangenciar a enérgica melodia desenhada em Monster Within. Recriando e proporcionando a participação das palmas do público em possíveis performances ao vivo da presente canção, a sonoridade que acompanha o primeiro verso é convidativa e contagiante Com grande viés heavy metal a partir das frases tremulantes da guitarra base, War Heroes é uma faixa que, como o próprio nome sugere, saúda aqueles que lutaram pelo seu país em guerras no decorrer da história. Assim, a faixa se une a uma longa e extensa lista de músicas com esse mesmo propósito de elogiar e homenagear os soldados que honraram suas pátrias em batalhas mundo afora. Para citar alguns exemplos, War Heroes está no mesmo patamar de You Will Be Remembered, do Alter Bridge e The Last Rebel, do Lynyrd Skynyrd.
Áspera, lancinante. Perigosa. Assim como na faixa anterior, o baixo é um elemento de extrema importância na construção da consistência rítmico-melódica. Com suas frases intensamente estridentes a ponto de comunicar a influência de Robert Trujillo na formulação de sua essência sonora, o instrumento, tal como em War Heroes, propõe pitadas de thrash metal à receita melódica. Esse caráter se soma à essência ríspida que transpira de Chosen One, uma faixa árida, mas curiosamente melodramática e chorosa. Com rompantes raivosos, a faixa apresenta um Colenci exibindo grandes alcances vocais em seus falsetes afinados e bem executados, falsetes esses que representam o ápice da ordem e da obrigação por obediência. Chosen One é uma obra que traz um enredo recheado de ferrenha crítica ao comportamento cego de um cidadão envolto em uma religiosidade sem limites. É aqui que o The Giant Void coloca a figura de Deus como um monarca dos céus exigindo fé e riqueza, personificando e, ao mesmo tempo, metaforizando a manipulação religiosa no intuito do enriquecimento e de uma hipnose social calcada no abuso da necessidade por apoio e compaixão de um indivíduo carente de suporte para suportar seus sofrimentos.
A guitarra base puxa a fila sonora com um riff ácido e tremulante. Em seguida, bateria e baixo entram juntos em um uníssono de grave estridência. Ambos se fundindo em um ambiente grave, mas de ritmo fluido, fazem da nova frase um momento azedo e corrosivo. Atingindo seu ápice a partir de uma estrutura curiosamente nauseante em sua base metalizada, Dimensions Collide é uma obra que propõe ao ouvinte refletir sobre si. Um produto que funciona como uma sessão de autoanálise por fornecer, ao espectador, a oportunidade de se observar e buscar, a partir daí, a conclusão de se o que se sente é orgulho, vergonha ou tristeza. Dimensions Collides é uma provocação para que o espectador faça um autojulgamento e um chamado para que o mesmo também realize a mudança de comportamento, atinja a superação. E, principalmente, consiga compreender o motivo para aprisionar a sua verdadeira essência.
A neblina sobe espeça pela paisagem árida noturna. Seu aroma azedo e mórbido deixa o ambiente soturno e capaz de incentivar o asco naqueles que por ele transitam. É assim que uma textura sombria e de caráter céltico vai sendo construída conforme a canção vai caminhando por sua linearidade cínica. Em alguns instantes, a melodia é tomada por um rompante heavy metal com uma base densa, estridente e sequencialmente pontual do baixo a ponto de comunicar a influência do Black Sabbath na construção sonora do The Giant Void. Com uma metalização ondulante, Ashen Empires, Pt.1 (Rising Empire) acaba misturando elementos do doom metal com pitadas de stoner rock até que uma ambiência gótica e catedrálica começa a ser desenhada. Sombria, gélida e até mesmo tenebrosa, Ashen Empires, Pt. 1 (Rising Empire) é áspera melodicamente e harmonicamente dramática durante seu refrão. Com um enredo opinativo forte sobre o mundo digital e a forma como a tecnologia está se adentrando cada vez mais, e desenfreadamente, na vida das pessoas, a faixa critica a alta dependência e vislumbra um futuro que, a partir da inteligência artificial que está sendo inserida em um novo cenário social, toda a população se tornará, mais do que hoje, escrava da tela, da tecnologia, do digital e do virtual em uma ação contínua que tira a capacidade da racionalidade do indivíduo.
Aterrorizante a ponto de fazer os pelos eriçarem, as pupilas se dilatarem e o suor escorrer em gotas geladas pelo rosto petrificado de adrenalina e tensão. De início lento, mas de viés carniceiro, a canção logo se transforma em algo bruto, explosivo, caótico e sonoramente vociferante. Entre gritos de um gozo ardente em seu teor insolente, a guitarra solo comunica inserções do metal alternativo nessa receita intensamente metalizada e provocante. Oferecendo ao ouvinte cenários caóticos, mas também de súbita calmaria tal como aquela do olho do furacão, Human Downfall traz um Colenci se dividindo entre vocais guturais-ásperos e limpos, mostrando a influência e familiaridade com a divisão interpretativa assumida por nomes como Serj Tankian e Corey Taylor. Com um ritmo tão trotante que chega a ser sangrento, Human Downfall é uma canção épica que mistura drama e raiva, intensidade e leveza, torpor e brutalidade, sonorizando um enredo babilônico sobre o efeito de epidemias e pandemias na sociedade. A forma como a proliferação de uma doença consegue transformar por completo a rotina de um povo e seu comportamento, mudar sua forma de pensar e agir, modificar seus hábitos. A canção, por esse viés, tem um ponto de vista negativista e sombrio sobre a proliferação do convívio comunitário e individual com a morte, uma entidade tão temida e, subitamente, tão presente na vida dos cidadãos. Não à toa que Human Downfall não representa apenas aquilo que a pandemia da Covid-19 desencadeou, mas também as consequências de diversas outras pandemias e epidemias globais ao longo da história. É a partir desses surtos epidemiológicos e mortíferos que o The Giant Void enxerga o declínio da humanidade.
Sem dúvida é um material intenso, mas intenso em sua morbidez, seu cinismo e sua acidez. Intenso pelas suas melodias explosivas e potentes. Intenso pelos seus lirismos de fortes opiniões e reflexões sociais. Abyssal é um álbum em que o The Giant Void explora a relação com a morte e, com ela, o drama e o caos, mas, curiosamente, não se deixou tornar órfão da esperança.
Para muitos, a forma como o grupo escolheu discorrer sobre certos temas é desgastante, cansativa e de difícil digestão por conta de seus pensamentos bem estruturados e de bases opinativas contrárias às grandes massas. Porém, no álbum, uma gama de assuntos e estruturas narrativas é apresentada, proporcionando uma curiosa suavidade para que o ouvinte caminhe sem mesmice pelos terrenos propostos.
A relação com o senso de culpa é apenas o abre-alas, seguido pela chegada do filho pródigo do Demônio para reinar um mundo desgovernado. Em questões comportamentais, além do remorso, Abyssal traz canções que elucidam o fato de que todo o ato tem sua consequência, além de reflexões sobre como as emoções de medo e insegurança podem tornar o indivíduo um escravo de suas próprias emoções.
Sempre potente e ríspido, o álbum ainda presenteia o ouvinte com uma aula de história musicada em The Black Pit, singles de caráter radiofônico como Monster Within e Mars, além de obras de cunho puramente motivacional, tal qual Inner Truth. Dessa forma, o álbum vai da extrema negatividade, passa por críticas socio-comportamentais e chega em uma espécie de alento à alma.
Da densa nocividade inconveniente de títulos como Ashen Empires, Pt. 2 (Nwo) e Human Downfall, Abyssal ainda não poupa diálogo em propor discussões sobre a manipulação religiosa em Chosen One e o caos tecnológico em Dimensions Collide. Mas, mesmo que não seja, necessariamente, sua faixa de encerramento, o álbum tem, nas profundezas de sua essência, a esperança de dias melhores, motivando o espectador a se manter no curso da vida.
Para dar vazão a tantos temas e deixá-los com a devida pressão e caminhos melódicos, o The Giant Void recrutou Delgado para a função de mixagem. Com o auxílio do profissional, Abyssal ganhou vida com potência, força e precisão a partir de boas equalizações e uma fusão competente de subgêneros como metal, heavy metal, metalcore, groove metal, metal alternativo, doom metal, thrash metal, speed metal, metal progressivo, metal sinfônico, hard rock e stoner rock.
Fechando o escopo técnico do álbum, vem a arte de capa. Assinada em conjunto entre João Vicentim, John Rendereing e João Schendel, ela apresenta uma espécie de rosto mumificado. Adornado por uma escuridão tamanha que chega a causar calafrios, essa silhueta de feição traz uma coloração azulada, como se estivesse comunicando a morte. Tal detalhe é reforçado, inclusive, pela valsa empoeirada da corrosão desse mesmo rosto, indicando, desde o fim a um possível e metafórico renascimento.
Lançado em 31 de outubro de 2023 de maneira independente, Abyssal é um álbum de explosões mórbidas, corrosivas e ásperas, mas cuja essência não esconde a esperança de um recomeço. Como o diálogo da vida, o álbum é a exploração e o escancaramento de uma sociedade global desgovernada em seu próprio senso impulsivo que retira a lucidez e a torna escrava de si mesma.