NOTA DO CRÍTICO
Ele é definido como m grupo influenciado pelo rock dos anos 90. De posicionamento, ele se diz uma peça do ativismo opositor ao capitalismo na ânsia de levar essa vertente filosófico-política ao ambiente musical mainstream. Esse grupo é o francês The Diogènes, que se anunciou oficialmente ao mercado com seu álbum de estreia Qui Pourrait Craindre Le Bien?.
Como o fogo sendo aceso e prestes a entrar em uma ebulição sem controle, a guitarra de Mathieu Torres vem distorcida sob um riff ácido, ecoante. Provocante. Sem qualquer menção de demora, o baixo de Lionel Hazan já invade a cena entregando um groove encorpado, mas de pose imponente com seu tom bojudamente grave. Contudo, é apenas quando a bateria de Heiva Arnal é percebida de maneira gradativa que a canção começa a crescer e a atingir um ápice sensual, libidinoso e, curiosa e simultaneamente, sombrio. Se tornando suja a partir da mistura interessante entre post-grunge, hard rock e lo-fi, Pillow vem com uma agressão ainda contida melodicamente. Com a entrada de um timbre intermediário, levemente adocicado e com força para explorar o drive vindo de Stéphanie Artaud, a canção ganha ares questionadoramente esquizofrênicos, mesmo com a sobreposição de guitarras, agora também com a base de Clément Chevalier entregando ligeiras notas melódicas. É assim que o The Diogènes escolheu para fazer de Pillow uma canção de repulsa à rotina proletária estabelecida pelo regime capitalista: aquele em que se cala as insatisfações com folhas verdes que simbolizam mais um respiro no próximo mês; aquela em que não se preocupa com a saúde emocional das engrenagens de suas máquinas; aquela que nega as suas próprias imperfeições em prol do lucro.
O sonar que se tem já é raivoso a partir de sua sujeira áspera. De estética crua e sombria, a canção consegue, por meio da interpretação vocal assumida por Artaud, recriar aquela ambiência esquizofrênica obtida na canção anterior. Por entre vestígios do post-grunge e do punk e até mesmo do thrash metal, Religion Cathodique traz uma boa combinação entre guitarras e bateria de forma a criar um contexto rítmico-melódico firme e consistente. Saindo do escopo político, agora o The Diogènes convida o ouvinte para refletir sobre o contexto manipulador da religião católica, uma atitude que é trazida como um artifício para tirar o senso de lucidez dos fiéis para que esses apenas obedeçam a preceitos imutáveis e inquestionáveis de uma indústria que se usa da fé para alimentar seu egocentrismo, sua ganância e sua autoestima.
Os tilintares opacos do encontro das baquetas é ouvido rompendo o silêncio e promovendo a contagem do tempo rítmico. Assim, o que se segue é uma sujeira curiosamente amaciada e melódica por entre uma levada de bateria suave regida por um chimbal bem aberto e riffs ásperos e levemente trotantes. Dessa forma, The Lord é trazida sob uma estrutura interessantemente contagiante, ainda que existam requintes de raiva e pitadas de visceralidade trazidos pela interpretação lírica de Artaud. Com direito a gritos de ordem no refrão com auxílio do backing vocal de Torres, guitarras de riffs graves e sombrios, The Lord é a primeira canção de Qui Pourrait Craindre Le Bien? a ser cantada totalmente em inglês e, também, a primeira do álbum a ter um caráter radiofônico sem ser apelativo ou sem excluir as essências rítmico-melódicas do The Diogènes. Isso é tanto verdade que em The Lord o grupo apresenta outro viés para com conceitos religiosos, enquanto os associa com a educação machista abundante na sociedade moderna. Questionando, portanto, o sexismo e a masculinidade como destaque social e válvula de dominação, a banda defende a igualdade de gênero de forma a alavancar a imagem feminina. Um discurso que serve até mesmo como defesa à comunidade LGBTQia+. Afinal, igualdade é para todos.
Surpreendentemente, o que se tem nesse novo despertar é uma valsa serena, fresca e aveludada fornecida pela guitarra. Adoravelmente contagiante, esse novo cenário convida o ouvinte a caminhar pelo terreno do blues com flertes com texturas que remetem a MPB e à bossa nova. Contudo, é inegável que a canção vai se maturando com uma estética amaciadamente swingada de base reggaeada que, mais interessante ainda, migra para uma sonoridade rock alternativo-punk. É nesse momento que, pela entonação do riff da guitarra ou mesmo pela maciez da bateria, que o ouvinte pode notar familiaridades melódicas para com The Passenger, single de Iggy Pop. Por meio dessa conjuntura de elementos, Pink Song é onde ocorre uma análise crítica à violência doméstica, à negação de sua existência por parte daqueles que a presenciam, e ao senso de fragilidade, subordinação e inferioridade por parte daqueles que a sofrem.
Começando com um coro que, nitidamente, bebe do princípio harmônico vocal usado pelo Queen em singles como Bohemian Rhapsody e Somebody To Love, a canção evolui para uma melodia alegre, sorridente, fresca e amaciada em sua guitarra distorcida. Na forma mista de pop punk e rock alternativo, a canção consegue ser detentora de uma estrutura contagiante que serve de base para a primeira canção de Qui Pourrait Craindre Le Bien? sem um discurso claramente crítico que envolva os setores sociopolíticos. Em contrapartida, o The Diogènes apresenta a satírica Touche Ma Bite para ironizar, banalizar e até mesmo diminuir de maneira provocativa e debochada a contribuição do pop punk noventista para com o áureo movimento punk dos anos 70.
Retomando a rispidez, mas sob uma movimentação proveniente da guitarra distorcida em riffs graves que faz o ouvinte relembrar aquele feito por Billie Joe Armstrong em Hitchin’ A Ride, single do Green Day. Ainda assim, a forma como o instrumento é trazido na presente canção traz toques mais sombrios e ásperos que desembocam em um refrão raivoso cuja estrutura rítmico-melódica fornece uma grande familiaridade estética para com a assinatura sonora do Metallica. Quase como se fosse a sonorização sádica e cínica de shows de bobos da corte, Sacrifice À Dieu se divide entre o inglês e o francês enquanto o grupo recicla a base temática de Religion Cathodique e ressignifica a religião como um todo. Entre mergulhos surpreendentes na sonoridade do jazz mesclados com a crueza do punk, a beleza fresca da bossa nova e o clima de descontração de uma jam session intimista, existe a associação de Deus como aquele ser que recebe todos os indivíduos merecedores de um lugar no céu em vista do seu poder no mundo dos humanos. Em vista da sua influência e notoriedade sobre os mais frágeis.
Seu despertar é denso, ácido, grave. Curiosamente, ainda que exista uma certa raiva reprimida, a introdução é regida por uma energia cabisbaixa contagiante. Sinistra em sua essência, a canção é desenvolvida, inicialmente, apenas pela guitarra, que surge entre riffs graves e de senho rígido. Quando os tilintares da cúpula do prato de condução inserem outro tipo de textura, a música vai ganhando ainda mais tensão e generosas doses sombrias. Ao sonar do punch proporcionado pela bateria, a guitarra base surge desenhando uma estética ligeiramente industrial à melodia em desenvolvimento até que, após um silêncio súbito, ela encontra sua forma completa. Ácida, estridente, distorcida e suja, ela se apresenta sob uma cadência curiosamente macia, enquanto sua base flerta densamente com a estética do stoner rock. O interessante, no entanto, é notar a precisão com que as subdivisões são equacionadas no decorrer do desenvolvimento sonoro. Afinal, Gluttony transita facilmente por entre ambientes raivosos e suaves que dão uma conotação de torpor swingado perante menções à ganância e a requintes de egoísmo social. Afinal, enquanto critica a unilateralidade da busca pelo conforto, o grupo questiona a ausência de noção do homem em ver que o abuso na exploração da natureza um dia trará uma conta a ser paga. Não importa o cacife monetário e sua capacidade de ser revertido em conforto. Não é à toa que Gluttony brinca com uma falsa educação no processo de extração de bens naturais, cita conflitos de interesse e ironiza o negacionismo, fazendo com que os versos “please let me consume all”, “life restrictions would lead to strifes” e “I couldn't believe in a lie” consigam traduzir bem a significância de seu enredo.
É interessante. Afinal, ao mesmo tempo em que se tem um princípio de brutalidade e rigidez, existe, também, sensualidade e maciez. E no meio disso, há, ainda, doses requintadas de uma melancolia dramática. Afinal, a forma como a melodia se pronuncia surte em uma sensibilidade associada à descrença e à decepção. Nesse processo, a precisão da bateria e a sonoridade extraída da guitarra são detalhes definidores para a criação dessa ambiência sensorial. The Hole surge, portanto, como uma canção a abordar um tema delicado que pode até mesmo ser percebido pela energia melódica que a preenche como um todo. Da mesma forma como a sonoridade é cabisbaixa e melancólica, o personagem lírico está imerso em seu próprio buraco emocional e desmotivador. Um buraco tão fundo que permite ver a luz natural do Sol ao longe, tal qual uma fagulha. É aí que reside o senso de humildade, humanidade e delicadeza para destacar o tema da saúde mental como centro das discussões sociais no intuito de retirar, dele, o status de tabu. O equilíbrio emocional, ou a falta dele, muitas vezes pode ser algo consciente na pele de quem o possui, mas a ausência de motivação para sair dele, ao mesmo tempo que faz o sofrente querer que ninguém de seu círculo social experimente tal mundo sombrio, o faz querer ficar nesse universo pela falsa e manipuladora sensação de conforto que ele fornece.
Precedida por uma rápida frase repicada da bateria, o que se segue é uma melodia tão áspera e ácida que a forma como soa cria uma assimilação estética para com aquela experimentada pelo The Diogènes em Religion Cothodique. Ligeiramente corrosiva em sua essência, ela traz uma energia sombria e enraivecida que é amplificada através do backing vocal de verso vocálico e tremulantemente esquizofrênico que acompanha as linhas líricas. Obscura, Tiny Lighted Window surpreende ao trazer um enredo que foca nas coisas boas da humanidade. Na beleza e na pureza que ainda existem em algumas parcelas de seres humanos. Fugir da carnificina, da escravidão do interesse, da condescendência travestida pelo ódio. Essas são algumas das propostas existentes nas entrelinhas da canção, que faz o ouvinte, de fato, refletir sobre as atitudes que a humanidade tem tomado ao longo dos anos. A arte é onde estão capturados os lados mais puros e a essência mais bondosa que o homem, um dia, chegou a ter.
O tilintar opaco do encontro das baquetas, assim como aconteceu em The Lord, é o elemento que funciona como abre-alas. Dele, o que se segue é uma melodia intensa, groovada a partir da boa sintonia entre guitarras e baixo, e ligeiramente áspera. Com corpo rítmico bem desenvolvido, a melodia que se forma apresenta silhuetas metalizadas em sua mistura interessante de metal alternativo e post-grunge em uma estrutura à la Audioslave. Surpreendentemente, quando a música entra na segunda metade introdutória, o que acontece é que a sonoridade assume traços de uma espécie de fusão progressivo-blues-psicodélico que lhe confere uma sensualidade sombriamente esotérica. Com essa mistura rítmica, que ainda compreende versos líricos rappeados, Beyond Myself se matura como um produto sensualmente insano e intenso. É assim que, tal qual ocorreu em Gluttony, o The Diogènes decide explorar o egoísmo associado, curiosamente, ao contexto social atual da hiperconectividade. Se desvencilhar dela é um bálsamo, pois, hoje, ela é quem tem as rédeas da dominação, o que pode desencadear em surtos bipolares quando não em contato com o universo digital. “I let you grow in my presence- it’s my generous treat” e “I let you flee my presence - it's my humble treat” são versos que exemplificam essa dualidade assumida até mesmo por parte desse sistema digital, que pode escravizar e libertar, sempre dependendo do vício de cada um para com o agora chamado de metaverso.
Néo-Libéralise Moi é uma canção que, desde o início, surpreende. Trazendo uma bateria dominante ao desenhar o ritmo que rege a canção, ela mostra, mais uma vez, a versatilidade e a musicalidade do The Diogènes que, agora, misturam o xaxado à sua receita melódica. Isso acontece na introdução, afinal, já sendo uma marca do grupo, a canção tem uma quebra rítmica na passagem para o primeiro verso. E aqui, entre um baixo salientemente groovado, a guitarra surge com um riff áspero e ligeiramente funkeado que bebe da estética do riff icônico desenhado por Tom Morello em Killing In The Name, single do Rage Against The Machine. Felizmente, em Néo-Libéralise Moi, o grupo retoma o idioma francês na totalidade do conteúdo lírico, uma atitude estacionada em Touche Ma Bite. Intensa em sua mescla também de metal alternativo com flertes de heavy metal, a canção traz um enredo que critica o sistema neo-liberal com requintes generosos de ironia. Se associando a Pillow no tom e na temática de sua revolta, Néo-Libéralise Moi reintroduz a visão da sede pelo lucro, da unilateralidade de interesses e da manipulação comportamental que o capitalismo assume perante a sociedade com seus dogmas consumistas e gananciosos. Acima de tudo, aqui o indivíduo é novamente trazido como peça da engrenagem do desenvolvimento industrial e do crescimento econômico nas falsas ideias de cooperação e de senso de comunidade.
Qui Pourrait Craindre Le Bien? é um disco que representa, assume, escancara e intensifica a insatisfação popular com relação, principalmente, ao modelo socio-político oferecido pelo capitalismo. Cheio de repulsa, de ódio, raiva e até nojo para com a forma como essa metodologia abusa e transforma a sociedade, o álbum é um exemplo de liberdade de expressão, da luta por novos direitos, por novos regimes.
Sendo esse o tema-chave das discussões propostas pelo The Diogènes, o álbum traz muito das insatisfações e das desaprovações igualmente relacionadas ao capitalismo exploradas em La Civilisation De La Graine, álbum de M’Z.
Ainda que seja a temática em destaque, Qui Pourrait Craindre Le Bien? não se limita a ela. Afinal, no álbum, o grupo explora uma série de outros fortes assuntos que abrangem a sociedade, mas que assumem a forma de tabu. Manipulação religiosa, depressão e violência doméstica são dois grandes exemplos dessa ideia e que, inclusive, tangenciam o negacionismo em larga escala.
Fora isso, ainda existe espaço para discussões acerca da igualidade de direito, o abuso na extração de bens naturais como forma de dialogar do descaso em relação ao meio ambiente, e, inclusive, a lançar voz a críticas associadas à forma como o pop punk desvalorizou o movimento punk.
Como forma de dar voz musical a essa conjuntura temática densa, o The Diogènes se associou a Hugo Lemercier no trabalho de mixagem. Na posição, o profissional não apenas conseguiu salientar a raiva, o ódio, o desprezo, o nojo, a repulsa. Ele conseguiu capturar a insatisfação, a rebeldia. A necessidade de mudança. Contudo, o engenheiro de mixagem também captou o grande senso de musicalidade, o entrosamento, a consistência e a técnica do grupo.
É assim que Qui Pourrait Craindre Le Bien? resultou em um som refinado, multilateral, cosmopolita. Um som sem limites que explorou o punk, o rock alternativo, o metal alternativo, o hard rock, o lo-fi, post-grunge, o reggae, o funk, a bossa nova, a MPB, o jazz e, também, o xaxado. Dessa forma, o álbum possui texturas que vão desde a leveza aveludada e charmosa à rigidez, intensidade, acidez e sujeira.
Fechando o escopo técnico, vem a arte de capa. Assinada por Artaud, ela consiste em uma caixa de ovos segurada por um par de mãos que, certamente, aparentam trabalhar em uma granja. Eis aqui a perfeita metáfora do capitalismo. Se vê a menção ao abastecimento maciço de alimento enquanto, inclusive, cita a questão do campo, do trabalhador rural e da sua relação com o mundo macro das grandes corporações.
Lançado em 10 de maio de 2024 via Luminol Records, Qui Pourrait Craindre Le Bien? é um grito de basta perante um domínio escravocrata travestido de cooperativismo. Aqui é onde a insatisfação encontrou a forma de explodir e ser ouvida pelos quatro campos do globo. No álbum, o The Diogènes representa todas as mentes que pensam e sentem, mas cujas vozes estão imbuídas em medo pela represália político-social escravocrata que censura, mas se vende de forma a se travestir de liberalismo.