Stoned Hare - Medication For Enemies

NOTA DO CRÍTICO
Nota do Público 5 (2 Votos)

Poucos dias antes de completar três anos desde que a Stoned Hare lançou seu último material cheio, a banda surpreende os fãs por finalmente anunciar o sucessor de Lullabies, seu álbum de estreia. Intitulado Medication For Enemies, o material consiste no segundo disco de estúdio do grupo taubateano.


Um sonar sequencial e estridente recebe o ouvinte com uma cadência levemente acelerada. Vindo a partir da bateria de Nick Carvale, ele encaminha o ouvinte para uma explosão melódica que faz com que o ouvinte se sinta em meio a fogos de artifício regidos por cores de tons místicos, transformando o céu em um perfeito arco-íris crepuscular. Entre a aspereza uníssona das guitarras de Carvale e William Barbosa na base melódica, existe uma agudez aveludada que, vinda do sintetizador, sobrevoa o escopo sonoro, entregando um senso de falso aconchego por meio de uma veia curiosamente gótica. Interessantemente, também, é como se a canção, somente a partir de seu instrumental inicial, funcionasse como uma espécie de trilha sonora funesta para um relacionamento dilacerado. Através de um verso de ar sombrio e preciso, uma voz de timbre grave invade a cena completando o escopo sonoro. É Carvale entregando a Love’s Born To Die uma estrutura hard rock sombria que rememora a atmosfera de canções compostas por Marilyn Manson. Contagiante a partir de sua cadência lírica e da forma como a guitarra, com seus riffs trepidantes como ecos, insere texturas que deixam a ambiência abraçada por um torpor enigmático, Love’s Born To Die, com suas influências nítidas de Foo Fighters, White Stripes e do próprio Manson, traz uma melancolia lancinante que se emaranha por entre um lirismo que apresenta um indivíduo descrente do amor. Machucado e com um coração cheio de cicatrizes, o personagem se mostra exausto de ter seus sentimentos ludibriados e acaba enxergando, na paixão, a vergonha por exortar suas emoções. Ainda assim, com um toque densamente ultrarromântico, o indivíduo romanceia a morte, mas a coloca como uma forma de zombaria, um revidar por todas as dores que a pessoa falecida o fez passar.


A luz do Sol não ilumina o ambiente por completo, o deixando repleto de penumbras e construindo silhuetas disformes através das sombras. O chão do ambiente é arenoso e sua paisagem, rochosa. Com um mormaço incômodo e um aroma de enxofre nauseante, o exercício do caminhar se torna quase impossível. Ao longe, porém, uma brecha de luz natural funciona como o canto da sereia, hipnotizando o personagem e o fazendo segui-la por longas distâncias, sem nem ao menos deixá-lo perceber se tratar de uma ilusão de ótica, vinda de seu próprio estado de loucura febril. É assim que a energia se torna agoniante, dramática e esquizofrênica. Entre explosões de um punch sonoro que insere pitadas de doom metal na receita melódica ainda em processo de cocção a partir das guitarras de Carvale e Math Rotondano, o baixo de Felipe Vellutini assume notável protagonismo com seu groove estridente, sombrio e de feições cínicas. Como um personagem onipresente obsessorando o personagem perdido em sua agonia, Carvale surge com um vocal de interpretação manipulativa, enquanto faz de Like A Broken Doll uma canção em que o personagem exorta seu torpor solitário em meio ao seu cárcere vigiado pelas mentiras de uma utopia atemporal.


Um sonar bojudo recebe o ouvinte com um falso senso de comicidade. Mergulhando em uma verve sensual, macia e rebolante, não demora muito para que Modern Love transpire a influência estética do Talking Heads em sua melodia. Ainda que em seu início, a sonoridade apresenta uma boa mistura entre art rock, hard rock e blues, enquanto faz prevalecer uma estridência que confere à melodia uma crueza própria de garagem. De escopo rítmico-melódico-lírico denotativamente teatral, Modern Love é uma canção em que a Stoned Hare analisa, como o próprio título da canção sugere, o amor moderno. Citando o relacionamento aberto, mencionando a prática do ménage e colocando o amor como uma prática de compartilhamento, a faixa critica a ausência do sentimentalismo puro e sincero, além de questionar a prática sexual regida pela atração simplesmente carnal e, com isso, tornando o corpo uma mera peça de desejo. A luxúria da libido.


A troca de estação de rádio é ouvida ao fundo de maneira orgânica e manual. Enquanto os sons de chiado se confundem entre vozes pronunciando frases indecifráveis, um beat é ouvido ao fundo com uma cadência linear. E é justamente ele quem puxa a melodia introdutória. Uma melodia regida por um rock alternativo de corpo melancólico, mesmo que transpareça ânimo e veludo. Também soando como um hard rock dramático, Radio Vox é regida por um torpor áspero que, preenchido por sobreposições vocais ampliando repentinamente a harmonia, serve de cama para um enredo de apresentação do enganoso conforto das profundezas de um inconsciente em sofrimento. Destacando novamente um caráter lírico fúnebre, Radio Vox traz um personagem tentando dominar o sentimento alheio apenas para se poupar do sofrimento da rejeição. Ainda assim, a canção tem uma base que proporciona o incentivo à superação, ao virar de página e dar mais uma chance à vida.


O ambiente é de um sombrio amedrontador. É como se, a cada instante, olhos de um vermelho vivo rompessem a escuridão e lançassem sobre a vítima um desejo canibalesco e até mesmo julgador. É então que uma luz de extrema brancura cega os presentes enquanto salva o indivíduo das garras das trevas. Não convencidos, os seres abissais parecem tramar uma batalha para reconquistar aquele pedaço de carne preso em seu inconsciente sofredor. Com uma mistura de rock alternativo e hard rock com uma essência metalizada e estranhamente debochada, Gods In The Garden vem com uma melodia ondulantemente truncada e de final de pronúncia seca. É assim que a faixa é mais uma obra de Medication For Enemies a lidar com a ausência de fé no amor a ponto de mostrar um indivíduo exausto pelas tentativas de busca pela emoção. Ainda assim, com um viés sombrio, Gods In The Garden ressalta um comportamento vampiresco em que a ingestão da essência do outro seja uma forma de promover o senso de torpor, saciedade e bem-estar, sem necessariamente existir paixão. Nesse sentido, é como se a presente canção tangenciasse com o teor lírico de Modern Love,


Pela sonoridade de um corpo ácido e estridente, existe um quê de sintético que lhe confere um caráter de sci-fi. Entre explosões rápidas e quentes, em que o baixo soa como um raio cortando o céu de um pretume caótico, a melodia surpreende ao se transformar em uma contagiante, swingada e alegre mistura entre blues e flertes com o boogie-woogie. Com direito a notas sincopadas de um piano de teclas adocicadas, é interessante notar como a estridência azeda do baixo acaba casando com o embrionário veludo que transpira da canção. Entre versos líricos uivantes, a bateria, aqui dividida entre Carvalho e Beatriz Faria, segue uma linearidade simples e precisa que entrega a Close Enemies consistência em seu flerte também com o stoner rock. É curioso, a partir dessa gama de questões, que a faixa consiga ao mesmo tempo incitar o amadurecimento e trazer certo tom de disputa juvenil entre duas pessoas para saber quem é o melhor. Close Enemies é quase uma hilariante faixa sobre a convivência com aquela pessoa com quem não se tem qualquer indício de afinidade.


É como o amanhecer sendo visto além das montanhas abraçadas por uma densa camada de nuvens pretas. Apesar de estar embebida em uma melodia amaciadamente trotante, a canção traz consigo uma acidez que, curiosamente, insere uma pitada de new wave ao rock alternativo, repetindo semelhante feito de Billy Idol em sua essência sonora. Fluindo para um ápice de explosão entorpecida e nauseante, Mirror To Mirror é como a observação de uma reflexão vazia, sem essência ou alma. É a demonstração de um indivíduo ausente de sensos de autoconfiança e autoadmiração. Um alguém sem brilho que vai se apagando conforme a visão dos outros sob si mesmo vai moldando uma imagem errônea e deprimente de um alguém cujo âmago foi corrompido.


Apesar de sombria, a melodia inicial tem um quê de excitante em meio ao seu hard rock sujo e sombrio. É como se seres abissais sobrevoassem um céu ausente de cor, mas repleto de rajadas de raios e trovões, rasgando a solidão surdo-muda de tal ecossistema trevoso. Melancólica e entorpecida em sua linearidade ríspida, a faixa-título flui para um ápice acelerado que flui para um instrumental dramático e choroso, como um pedido de súplica a um Deus manipulador. É assim que a faixa-título convida o ouvinte a acompanhar um indivíduo de essência manipulativa, egocêntrica, egoísta e de extrema condescendência. Ainda assim, há uma interpretação que pode transformar esse anterior ideal, pois quem pode estar manipulando são os amigos, e o sofrente, acaba sendo o protagonista, que fica à mercê de relacionamentos enganosos e falsos.


É interessante notar o salto de amadurecimento em fração de três anos. Com Medication For Enemies, o Stoned Hare não apenas evoluiu na competência e consistência de seu som, mas se aprofundou e formou uma base sólida para com seu estilo de composição. Assim, a fusão de torpor, melancolia e ultrarromantismo o fez encontrar seu próprio som e seu ápice, portanto, se deu com o recente material.


A partir disso, não será mais necessário ficar comunicando as influências estéticas do grupo. Afinal, elas estão perceptíveis em meio à originalidade das melodias, as quais soam soturnas, viscerais, sombrias, melancólicas, entorpecidas e até mesmo lancinantes em suas dramaturgias agonizantes.


Com traços até mesmo góticos em sua estruturação sonora, Medication For Enemies mostra o Stoned Hare dialogando, frequentemente, sobre corações feridos e rejeição. Contudo, o álbum também apresenta canções com questões profundas de ausência de autoconhecimento, autorrespeito e admiração, além de análises sociais perante a evolução da prática do relacionamento.


Para dar embasamento ao peso e consistência que transpiram da sonoridade de cada uma das oito canções, o grupo se aliou a Bruno Mokado para o trabalho de mixagem. Foi com o profissional que grupo e álbum atingiram uma sinergia no espaço-tempo e conseguiram comunicar o mesmo grau de amadurecimento e consciência musical. 


Fornecendo uma equalização equilibrada a ponto de fazer cada instrumento e cada som ser ouvido com clareza, Mokado conseguiu destacar todas as melodias que compreendem o caldeirão melódico-místico que compõe Medication For Enemies. Dessa forma, estão perceptíveis hard rock, rock alternativo, stoner rock, art rock, doom metal, sci-fi, boogie-woogie e até mesmo a new wave. Tudo de maneira a mostrar que, no álbum, o Stoned Hare se permitiu experimentar, simplesmente por já ter entendido o som que o define e saber como expandir os horizontes sem danificar sua base estética.


Fechando o escopo técnico, vem a arte de capa. Assinada também por Carvale, ela apresenta a figura feminina de um demônio ressaltando a própria silhueta em uma pose contorcionista. Curiosamente, a união de tal figura ao fundo preto criou uma familiaridade estética despropositado em relação ao design desenvolvido por Round Hill para a capa de Rise and Fall, Rage And Grace, álbum do The Offspring. Ainda assim, a originalidade existe e funde sensualidade, desejo e movimento, qualidades presentes no novo material do grupo taubateano.


Lançado em 16 de março de 2024 de maneira independente, Medication For Enemies, apesar de ser o segundo álbum do Stoned Hare, mostra o grupo no auge da forma. É aqui que a consciência musical encontrou apoio da compreensão da ambiência melódica a ser representada. Não é à toa que as experimentações estilísticas realizadas no disco soaram tão competentes que desfilaram uma autenticidade consistente e precisa.

Compartilhe:

Cadastre-se e recebe as novidades!

* campo obrigatório
Seja o primeiro a comentar
Sobre o crítico musical

Diego Pinheiro

Quase que despretensiosamente, começou a escrever críticas sobre músicas. 


Apaixonado e estudioso do Rock, transita pelos diversos gêneros musicais com muita versatilidade.


Requisitado por grandes gravadoras como Warner Music, Som Livre e Sony Music, Diego Pinheiro também iniciou carreira internacional escrevendo sobre bandas estrangeiras.