NOTA DO CRÍTICO
Cinco anos depois de uma reunião. 15 anos depois do último lançamento. 30 anos após o anúncio do álbum de estreia. Essa é a cronologia que compreende Happiness Bastards, o primeiro álbum do The Black Crowes desde que Before The Frost… Until The Freeze fora divulgado nos idos de 2009.
A guitarra com efeito ressonador de Nico Bereciartua já domina a cena incutindo um aroma rural, do oeste, enquanto desfila a construção de um ambiente folk com generosas doses de blues. Com grande participação do piano de Erik Deutsch a partir de suas notas agudas e sincopadas, a canção não demora a transpirar uma sensualidade atraente e irresistível. Sob um compasso 4x4, a bateria de Cully Symington constrói uma batida simples, mas suficientemente atraente. Com direito ao sonar ácido e adocicado do hammond preenchendo a base melódica, Bedside Manners reapresenta a típica inserção de corais femininos souls que tanto marcaram as canções do The Black Crowes, enquanto Chris Robinson vai amadurecendo a essência do duo com seu timbre tradicional e icônico. Enérgica e excitante, Bedside Manners é uma canção que aborda a convivência com pessoas que nada somam a nós, a descoberta do amor por interesse e o desejo pelo senso de leveza proporcionado pelo distanciamento desse tipo de indivíduo.
Sexy, perigosa. Excitante. De distorção suja, o riff da guitarra surge atraente e, curiosamente, manipulativamente sedutor de maneira a introduzir, no novo amanhecer, generosas doses de hard rock. Fluindo rapidamente para uma estrutura que soa como um blues rock capaz de rememorar a sonoridade de nomes como ZZ Top e AC/DC, Rats And Clowns consegue, mesmo com essa ardência marcante, consegue colocar o ouvinte no caminho de Louisiana por mesclar hard rock, folk e soul sob uma medida devidamente equalizada. O mais interessante é que, mesmo embebida em um ritmo de apelo às massas, trata não apenas do puro vício em heroína, mas também da forma como um adicto a enxerga e as consequências desse hábito.
De início reconfortantemente fresco e bucolicamente swingado, é como se sua melodia proporcionasse ao ouvinte o respirar do aroma da grama ainda úmida pelo sereno, o molhado da água gelada de um riacho em meio à imensidão do escampado e o calor ainda tímido do Sol buscando seu lugar no céu crepuscular. A suavidade do instrumental criado entre violão lap steel e um vocal de interpretação cheia de delicados melismas tem um súbito fim quando a melodia assume um caráter distorcido e ácido que hipnotiza o ouvinte com uma espécie de folk distorcido-elétrico ao estilo Nickelback. Provocante e excitante, Cross Your Fingers se divide entre uma guitarra uivante e outra, de Rich Robinson, mais sisuda e racionalmente sínica. Com direito a um hammond entregando a acidez adocicada do soul durante a ponte transitória entre a primeira e a segunda parte da canção, Cross Your Fingers é um produto que entrega sensualidade, desejo e generosas doses de libido em seu enredo romântico-manipulativo. Um enredo que evidencia um indivíduo enganado pelo amor, transformado pela paixão e corrompido sua essência bondosa por um alguém lobotômico. Um enredo que mostra uma pessoa pura se tornando representante de uma verdade unilateral regida pelo impulso.
Ela possui um quê de nebulosa. Embriagante e, decerto, um tanto melancólica, a canção apresenta um cenário solar, mas solitário em sua infinitude. Felizmente, com a entrada do teclado sob o sonar do hammond organ, ela desfila, agora, um sabor adocicadamente ácido e convidativo para prosseguir em tal paisagem. É então que o timbre aberto, agudo e de essência grave de C. Robinson entra em cena para incrementar o escopo sonoro. Ainda que demonstrando os efeitos da idade, o cantor consegue entregar aquilo que, tanto o ouvinte, quanto os fãs assíduos do The Black Crowes esperam: um vocal com influências fundidas de soul e R&B. Mesmo sob uma linearidade melódica, Wanting And Waiting exalta e transpira a essência do folk fundida ao hard rock e ao southern rock de maneira a, juntos, comunicarem familiaridades estéticas com nomes como Aerosmith. Adornado por um refrão de amplitude harmônica graças aos backing vocals femininos de interpretação ao modo soul, detalhe que a faz assumir um caráter típico das composições do grupo, Wanting And Waiting é uma faixa macia e swingada que dialoga sobre a solidão, mas uma solidão que alude à grande pausa do duo. Desse ponto, é possível ver uma familiaridade lírica entre a presente canção e The Rope, single do Semisonic, ainda que as melodias, definitivamente, não se conversem por completo. Embalada por um conteúdo que também pode ser interpretado com cunho romântico, de forma a abordar a vontade da reconciliação e, mesmo, ainda, a necessidade de um último Adeus, Wanting And Waiting traz, simplesmente, um indivíduo pronto para entrar em ebulição na primeira chance de uma reunião.
O violão surge entre dedilhares confortavelmente bucólicos e aveludadamente alegres como o amornar do Sol ultrapassando a copa das árvores e aquecendo o corpo de um indivíduo adormecido por entre os troncos. Na forma de um irresistível folk com inclinações para o jazz, a canção tem, nos suaves tilintares agudos da cúpula do prato de condução, o desenho de seu compasso rítmico. Cooperando com esse feito, está Lainey Wilson, quem empresta seus vocais agudos durante o refrão e incutindo em Wilted Rose doses extras do teor bucólico. É dessa forma que a canção dialoga sobre o cessar bélico. Sobre a aquisição de um tratado de paz. Ainda assim, existe a decepção e a desesperança estampadas no rosto de um indivíduo diretamente atingido pelo conflito armado que, agora, é dominado pelo cinismo e pelo senso de vingança.
Seu início já desfruta de uma sensualidade áspera e provocante. Assim como Rats And Clowns, o presente e ainda enigmático ambiente consegue mergulhar em uma essência hard rock folkeada nos mesmos moldes extraídos pelo Aerosmith. Sem muito esforço, a canção se mostra consistente em seu contágio e madura em sua melodia. Guiada pela acidez aguda do hammond na base sonora, a faixa desfila uma sonoridade macia a partir de uma bateria de levada fluida. Ainda que sem a experimentação do funk na sua conjuntura, conforme vai evoluindo, Dirty Cold Sun, uma obra sobre a mistura do rancor, a vontade pela superação natural e a vingança pela rejeição e consequente sofrimento pelo término do relacionamento, vai comunicando uma semelhança estética com Walk This Way, single dos bad boys de Boston. De estrutura rítmico-melódica mais crua em relação às músicas anteriores, a presente faixa cresce em harmonia em um refrão que propicia a mistura do soul. Contagiante sem ser apelativa, mas apresentando a sonoridade que os fãs do The Black Crowes esperam ouvir, Dirty Cold Sun, junto com Rats And Clowns, forma uma dupla de singles lado b de Happiness Bastards.
Junto da guitarra ressonadora, a gaita surge entre rebolares e gritos swingados ambientando o ouvinte no sertão estadunidense. Estruturada com base no blues, a melodia passa a contar, consequentemente, com um piano de notas que também sugerem requintes de sensualidade. De estética simples, mas contagiante, Bleed It Dry é uma faixa que dialoga sobre a libertação de uma comunidade regida por um comportamento baseado em mesmices que consomem toda a energia do indivíduo.
Altiva e empoderada, é a bateria quem faz o abre-alas do novo cenário com uma levada precisa, ligeiramente suja e intensa. Curiosamente, o que vem nos instantes seguintes é uma melodia macia, aconchegante e adocicada. Transpirando nostalgia e um frescor tal como o sentido através do entardecer primaveril, a presente faixa traz um Chris Robinson adotando uma interpretação lírica que soa semelhante à forma como Steven Tyler faz ressoar sua voz nas canções do Aerosmith. Melodicamente proporcionando uma ligeira similaridade com aquela sonoridade criada pelo Green Day em seu respectivo single Castaway, Flesh Wound é atraente e grudenta, mas sem ser apelativa. Se maturando como uma canção sobre o término de relacionamento com ênfase nos pensamentos de madureza da consciência sobre os fatos e a necessidade de superação, Flesh Wound traz, para tal enredo, uma melodia tão adorável que a faz ser, declaradamente, a primeira balada de Happiness Bastards.
Logo nos seus primeiros sonares, o instrumental já se mostrou capaz de construir groove, cadência e contágio de maneira bastante equalizada. Misturando hard rock, folk e traços de uma sonoridade rapeada de maneira a rememorar, assim como aconteceu em Dirty Cold Sun, a estrutura de Walk This Way, single do Aerosmith, a canção conta ainda com o lap steel para proporcionar, além de leveza, uma confortável sensação de embriaguez. Acentuando a essência do southern rock já experienciada na esmagadora parte do álbum, Follow The Moon vem com um swing ardente e uma maciez contagiante, enquanto seu lirismo fornece uma ode ao rock. Os excessos, a intensidade, a boemia. O sangue quente, a troca de turno, o excesso de libido. A noite vira dia e tudo acontece quando toda a sociedade burocraticamente normal está adormecida. E é justamente sobre essa visceralidade, essa vivacidade, essa eletricidade pela vida que trata Follow The Moon, uma confiança na profundidade do viver que chega a ser danosa para quem a vive. Não é por menos que o verso mais marcante da canção é “rock and roll has made a mess of you”.
É macia e rejuvenescedora. Carinhosa e confortável. Compassiva e atenciosa. Esperançosa e reenergizante. Funcionando como os primeiros raiares de Sol iluminando cuidadosamente o campo de flores ainda úmido pelo sereno, a melodia introdutória é como um delicado segurar de mãos enquanto se caminha pelo ambiente ainda com parcela de enigmatismo. Com uma levada percussiva serena e uma guitarra suave, o sonar protagonista é o agudo-estridente da gaita que grita com delicadeza, enquanto insere, no ambiente, generosas doses de um aroma nostalgicamente floral. Com ligeiros instantes de familiaridade entre a sua harmonia doce e introspectiva com aquela oferecida em É Preciso Saber Viver, single do Titãs, Kindred Friend se une a Flesh Wound no time de baladas de Happiness Bastards alcançando, sem dificuldade, seu pódio. Com toques aconchegante e sutilmente bucólicos, a faixa é como um recado, uma carta, um pedido de trégua, uma sincera e honesta solicitação de perdão entre um Robinson e o outro. De caráter autobiográfico, Kindred Friend soa como a reconciliação entre os dois irmãos a partir da maturidade e resiliência em deixar as desavenças no passado e enxergar, no amanhã, as novas possibilidades de uma segunda chance. Tendo tal interpretação evidente a partir dos versos “oh, kindred friend, (kindred friend) where have you been?” e “guess it's been a while”, o desejo final, a felicidade do reencontro e o êxtase da reconciliação está no sentimental e tocante verso final “always make me smile”.
Com 13 anos de hiato no que se refere a um material autoral, o duo The Black Crowes parece, felizmente, ter feito as pazes. Depois de anos sem se falar, os irmãos Robinson ofertaram não apenas um alento para seus fãs, mas um produto atual que honra o southern rock. Happiness Bastards é onde o bucólico encontra o rock e transpira aquele suor swingado típico da transição da década de 70 para a 80.
Trazendo a sonoridade interiorana estadunidense de volta às pistas do rock, o duo conseguiu, com seu novo material, mesclar canções de cunho romântico-radiofônico de forma a atender às expectativas da sonoridade que seus seguidores ansiavam por ouvir e de caráter autobiográfico.
Claro que entre essas duas subdivisões existem os novos clássicos do duo de Atlanta. Experimentando mais ousadia, excitação e até mesmo um teor libidinoso em suas interpretações lírico-melódicas, o The Black Crowes acabou compondo boas novas canções para o seu já vasto currículo.
Apesar de Wanting e Waiting ter sido vendida como o primeiro single, não é ela, necessariamente, a canção que, definitivamente, marca Happiness Bastards. Por questões de seguir um padrão preestabelecido, mas com autenticidade de fazer a melodia transpirar sensualidade e desejo, Dirty Cold Sun, Rats And Clowns e, em menor grau, Follow The Moon.
Produzido por Jay Joice, Happiness Bastards é um álbum que continua honrando o The Black Crowes como um dos grandes nomes da cena do southern rock, junto com, entre outros, ZZ Top, Lynyrd Skynyrd e Creedence Clearwater Revival. Porém, muito além desse subgênero, Joice conseguiu fundir a essência folk-hard rock- do duo para construir sensualidade em meio a fusão de outros gêneros marcantes na sonoridade do duo, como o soul, o R&B e o blues.
É por meio dessa mistura de ritmos do rock que as camadas líricas são abraçadas a ponto de entregar as emoções ideais para temas como relacionamento. No álbum, o sentimentalismo também é um ingrediente definidor em obras como Rats And Clowns, que parece retratar o vício em heroína, Follow The Moon, uma ode ao rock, e Kindred Friend, como uma obra autobiográfica que aborda a reconciliação dos irmãos Robinson.
Ainda assim, existe um ponto negativo na mixagem que dificulta a degustação por completo de todos os instrumentos. Dando ênfase nas guitarras, diferentes instrumentos de teclas e até mesmo na bateria, a tarefa deixou a desejar por não tornar facilmente audível a contribuição de Sven Pipien no baixo, algo que foi pescado em míseros instantes antes do solo de gaita em Kindred Friend.
Lançado em 15 de março de 2024 via Silver Arrow Records, Happiness Bastards é um álbum que, mais que honrar o southern rock, mostra a resiliência e maturidade dos irmãos Robinson em superar desavenças e retomar o mútuo amor pela música e pelo rock. Um material em que o ouvinte pode facilmente se perder entre o swing marcante e o aroma sertanejo embriagante exalado em cada esquina melódica. Seja bem-vindo de volta, The Black Crowes.