Rancid - Tomorrow Never Comes

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Marcando seis anos desde seu último álbum de estúdio e o maior intervalo entre lançamentos, o Rancid retomou as atividades de produção para a composição de um novo material. Gravado no Ship-Rec Studios, Tomorrow Never Comes, além de ser o décimo disco de estúdio do grupo, é também o de duração mais curta de toda a discografia do quarteto de Berkley.


Compasso em midtempo, guitarras de riffs distorcidos e uma bateria razoavelmente lenta em seu compasso tipicamente hardcore. Essa receita, além de mostrar a sincronia já nítida entre Tim Armstrong, Lars Frederiksen e Branden Steineckert, evidencia a precisão e a pressão da melodia introdutória. A partir do momento em que a voz de timbre limpo e ameno de Armstrong entra em cena, o baixo de Matt Freeman assume protagonismo a partir de seus rompantes bojudos que se sobressaem perante a base melódica. De refrão enérgico e imponente, a faixa-título é o caos, a rebeldia, o levante social. Em um ambiente em que não há ordem e que é regido pela motivação da ausência de ousadia, a canção se mostra como a máxima intensidade adormecida na essência de cada pessoa entorpecida pela rotina.


Áspera, trotante e com traços sombrios, a guitarra já traz uma efervescência embrionária que, sem demora, captura o ouvinte e cria, nele, um senso desmedido de ansiedade. Mantendo a mesma base rítmica da faixa-título, Mud, Blood & Gold é uma canção de veia puramente punk em que o enredo vem com uma narrativa metafórica da chegada de escravos no porto. Ainda que seja somente fruto de interpretações provenientes dos primeiros versos, a ideia de ganância, personalismo, hierarquia, poder e luta de classes é a base da história contada em Mud, Blood & Gold, uma faixa cantada majoritariamente em coro.


Com voz grave e de um embrionário gutural, Armstrong logo surge na companhia de um baixo de linhas igualmente densas, mas cuja cadência comunica uma melodia trotante que rememora aquela de Ace Of Spades, single do Motörhead. Surpreendentemente, tal previsão não acontece totalmente, pois a canção evolui para uma estrutura curiosamente divertida que recria ambiências semelhantes às propostas pelo Dropkick Murphys em canções como I’m Shipping Up The Boston. Devil In Disguise é uma canção que apresenta um cenário utópico em que os profissionais da ordem e da lei são os mesmos que realizam atos fraudulentos. Reis que roubam e policiais que matam são exemplos de uma sociedade ao avesso que é regida, como o próprio nome da canção comunica, pelo diabo disfarçado.


Uma guitarra surpreendentemente melódica e alegre surge no horizonte com um aroma calorosamente floral. Acompanhada de rompantes pontuais entre a guitarra base, a bateria de golpes secos e o baixo de grooves graves e súbitos, é ela que domina e guia o caráter sonoro da faixa, que evolui para um verso instrumental de viés folk e festeiro que muito dá seguimento à base rítmica de Devil In Disguise, com a importante diferença da felicidade estonteante. Contagiante em sua essência, New American conta a história de dois aventureiros navegantes em busca de liberdade, diversão, álcool e histórias para contar. Divertida, a faixa é a primeira de Tomorrow Never Comes a conquistar o ouvinte tanto pela melodia quanto pelo conteúdo lírico.


As águas da chuva são ouvidas de perto, como se estivessem logo do outro lado da parede. Trovejante, mas não amedrontadora, ela chega a causar lampejos de uma calmaria que logo é quebrada com uma introdução explosiva, mas mantendo o caráter melódico estruturado em New American. Imitando o sotaque britânico, Armstrong e seus dois backing vocals fazem de The Blood & Violent History é baseada em um contexto da era dos piratas ao mesmo tempo em que mescla questões atuais. Defendendo a ideia de que não se pode confiar em ninguém que venha de qualquer campo da política, a faixa, com sua melodia que mistura punk com levada folk, é literal no conselho de ter cuidado em relação a quem se oferece confidências.


Iniciando como o término de uma apresentação ao vivo, cheio de golpes explosivos uníssonos entre guitarras, baixo e bateria, a canção surpreende pelo seu turning point. Promovendo sequenciais golpes na caixa, Steineckert leva a canção para uma estrutura acelerada e ríspida regida por inserções propositais da pronúncia ‘don’t make me do it’ em tom de ordem e segmentada entre Freeman e Frederiksen. Don’t Make Me Do It é rápida e traz um enredo que lembra briga de bar, pois o personagem lírico tenta manter o mínimo de ordem ante um indivíduo de índole agressiva que tenta ferir pessoas alheias. Sobre repetitivos avisos antecipados, esse mesmo indivíduo bruto sofre as consequências por repetir seus atos de intensidade. É assim que Don’t Make Me Do It se apresenta, como uma obra divertida em sua estrutura lírico-melódica, mas que evidencia os momentos em que o inconsciente prevalesse sobre a consciência, ou, em outras palavras, o impulso invade a razão.


Puxada por golpes sequenciais na caixa, a canção oferece, como primeira sonoridade, uma conjuntura sincrônica entre guitarra solo e baixo que cria uma estrutura cativante em seu tom suavemente grave enquanto a guitarra base vai moldando um alicerce ríspido e linear. Melódica e com protagonismo incontestável do baixo nos versos de ar, It’s A Road To Righteousness é uma faixa sobre a educação manipulatória em prol da ganância do poder, mas também é um material de notável rebeldia que traz, em algumas entrelinhas, a vontade de quebrar esse ciclo e viver em uma terra sem regras. It’s A Road To Righteousness é a vontade da independência ante a censura do poder cuja melodia segue o preceito iniciado em Devil In Disguise, em que o folk céltico é bem presente na receita sonora.


Explosiva, mas bastante melódica, a nova faixa tem seu amanhecer dominado por uma estrutura linear em que, novamente, o protagonismo recai sobre um baixo grave que dita a cadência sonora. Convidativa, Live Forever, como a segunda canção mais curta do álbum, ela, é uma faixa em que o enredo traz uma realidade de excessos. Drogas, excitação exacerbada, energia acumulada e um senso inconcebível de autocontrole, a faixa apresenta personagens inabaláveis que vivem entre o ápice do prazer e os demônios da abstinência. É por isso que Live Forever pode, inclusive, ser considerada um recorte dos anos 70 de viés até mesmo autobiográfico.


O sonar da guitarra solo, com seu grave cambaleante, faz com que o ouvinte se lembre, curiosamente, do sobrevoo grave e dramático do violoncelo desenhado por Jaques Morelenbaum na introdução de Até Quando Esperar, single da Plebe Rude. Com base rápida e penetrante, a canção de fato tem uma veia dramática que impacta o ouvinte durante a introdução. Melódica e com respingos de uma melancolia nostálgica, Drop Dead Inn apresenta um personagem solitário e necessitado de acolhimento e da sensação de pertencimento. Como a primeira faixa significativa e propriamente autobiográfica de Tomorrow Never Comes, Drop Dead Inn é o desabafo de um indivíduo desesperado em busca da superação de suas angústias através do choque da bondade humana. 


Contagiante, melódica e com uma cadência midtempo, a presente canção é ensolarada e reintroduz a mesma alegria de New American, mas com um toque extra de frescor. Com audíveis referências a Iggy Pop, Prisoners Song tem um refrão dramático e harmônico que dá embasamento a um enredo que, assim como Live Forever, dá a impressão de ser autobiográfico. Narrando de forma metafórica, mas às vezes direta, da dependência em ecstasy, Prisoners Song é a descrição de como um usuário se sente em relação ao hábito do uso constante de entorpecentes. Ela é, também, uma canção em que se escancara a vontade da liberdade desse vício e necessidade de o personagem se provar mais forte do que a dependência, algo exibido de maneira cristalina nos versos comoventes: “I refuse to be a beaten man”  “I won't accept defeat”.


Misturando referências melódicas de Motörhead e Metallica através de uma guitarra solo agonizante e sexy que dá vasão para versos de ar trotantes, Magnificent Rogue é uma faixa de lirismo simples que evidencia o caráter de um personagem que se recusa a ser dominado, manipulado e usado. 


Reintroduzindo a estética animada de estrutura folk das faixas New American e Prisoners Song, One Way Ticket é enérgica, alegre e festiva em sua melodia de trechos cômicos. É assim que o personagem lírico apresenta seu dilema entre ficar em uma cidade que o consome e o ir embora assumindo, assim, a falsa ideia de fracassado por não ter enfrentado seus desafios. 


Com um uníssono ríspido e potente vindo da sincronia entre as guitarras, Hellbound Train traz, assim como as canções anteriores, o enredo como principal artifício de atração, uma vez que a base melódica segue a mesma. Com refrão cantado em um coro morno, a canção traz uma ambiência caótica em que o fim é inevitável e as atitudes ilegais e ludibriantes são malsucedidas.


Puxada por um, golpe seco na caixa, a canção logo faz o ouvinte se sentir embriagado e sem noção de espaço. Isso acontece graças a um baixo groovado e desorientado que caminha pelo ambiente de maneira cambaleante. Evoluindo para algo explosivo e regado em acidez, Eddie The Butcher é uma canção atordoante que apresenta ao ouvinte Eddie, o açougueiro, um personagem preciso, dono do destino e de uma sabedoria singular.


Grave, áspera, mas contagiante em sua rispidez, a faixa vem acompanhada de versos instrumentais ondulantes que fazem o ouvinte balançar a cabeça em movimentos involuntários. Trazendo a bateria como fator definidor da pressão melódica, Hear Us Out demanda união e um senso de comunidade pungente como forma de se proteger do instinto predatório de grandes cidades. Ao mesmo tempo,  Hear Us Out é uma canção que defende as diferenças e a forma como elas fazem do indivíduo um ser único dentro de uma multidão. É quase como uma rápida lição de autoestima e libertação pessoal.


Fresca, explosiva e contagiante. De melodia linear e cuja estrutura por vezes ondulante é rompida por uníssonos cortantes entre guitarra e bateria, When The Smoke Clears é como a narrativa do retorno à realidade após o uso de maconha. Essa é uma faixa em que o Rancid assume que aqueles que têm estrutura emocional frágil precisam de algo extra para se sentirem preenchidos e plenos de uma sensação de serem valorizados.


Ele passa como um trovão. É como 16 rajadas sonoras repletas de energia, acidez e azedume em uma receita feita para entreter, divertir e extravasar. Tomorrow Never Comes é um daqueles materiais que, mesmo feito sob uma mesma base, consegue atrair a atenção do ouvinte pelos enredos líricos que apresenta.


São enredos que vão do cômico ao dramático. Enredos esses que são sonorizados com frescor, frases melódicas, alegres e ensolaradas que trazem consigo uma ambiência californiana quase reconfortante. É nesse aspecto que o álbum traz consigo semelhanças estilísticas que transitam entre o já citado Iggy Pop, o Blink-182, o Green Day e o Bad Religion.


Entre o pop punk, o hardcore e o puro punk rock trazidos de forma clara e bem equalizada pelo engenheiro de mixagem TJ Rivera, Tomorrow Never Comes surpreende ao misturar ambiências de um folk céltico de veia irlandesa. Com ela, o álbum se torna festivo, alegre e assume a função de gatilho para a formação de inúmeras mosh pits.


Ainda assim, o álbum consegue surpreender ao mesclar enredos cômicos como aqueles de Devil In Disguise, New American, One Way Ticket e Eddie The Butcher com outros de teor dramático e autobiográfico como os das faixas Live Forever, Drop Dead Inn e Prisoners Song.


Apesar de algumas músicas soarem divertidas, elas trazem, por vezes escondidas e por vezes às claras, realidades comoventes de solidão, falta de pertencimento e o vício em drogas. Não à toa que dentre todas elas, a mais representativa e tocante é Prisoners Song, que, por trás de sua melodia alegre e contagiante, disfarça a delicadeza e a seriedade de abordar a dependência química.


Esse foi um grande trunfo da produção do álbum. Assinada por Brett Gurewitz ela mesclou o cômico com o dramático. A rapidez áspera com compassos de um pop punk melódico. A delicadeza de assuntos mais tensos com enredos de pura diversão e comicidade. Um enredo que, além de mostrar as origens estilísticas do Rancid, fez de seus quatro integrantes um conjunto mais humanizado.


Fechando o escopo técnico vem a arte de capa. Feita entre Armstrong e J Bonner, ela traz um layout que, por apresentar o busto dos quatro integrantes em blocos amarelos e dispostos sob um fundo preto, comunica notável influência daquela arte feita por Chris Bilheimer para Nimrod, álbum do Green Day. Porém, a essência proposta por Bonner e Armstrong é dizer simplesmente que, em Tomorrow Never Comes, o ouvinte pode encontrar o puro Rancid.


Lançado em 02 de junho de 2023 via Hellcat Records, Tomorrow Never Comes é um Rancid sob uma ótica mais humana. Além de seu tradicional ritmo excitante, o quarteto expõe, aqui, suas fraquezas e inseguranças de forma a comover o público. É um disco capaz de fazer o público rir e chorar. Um material que, apesar de sua mesmice rítmica, contagia por ter enredos líricos penetrantes.

























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Sobre o crítico musical

Diego Pinheiro

Quase que despretensiosamente, começou a escrever críticas sobre músicas. 


Apaixonado e estudioso do Rock, transita pelos diversos gêneros musicais com muita versatilidade.


Requisitado por grandes gravadoras como Warner Music, Som Livre e Sony Music, Diego Pinheiro também iniciou carreira internacional escrevendo sobre bandas estrangeiras.