NOTA DO CRÍTICO
Foi oito anos de hiato para que Ordep Lemos retomasse suas atividades. Totalizando nove anos sem lançamento de material inédito, o multi-instrumentista soteropolitano enfim anuncia o sucessor de Ordep. Intitulado Vida Que Vai, Vida Que Vem, o novo álbum é o segundo de estúdio de sua carreira autoral.
Um grito vocálico ecoa pelo ambiente como um abre-alas para uma cantiga umbandista recheada de sonares de instrumentações percussivas trazidas por Lucas Rezende, das quais o que salta aos ouvidos é o compasso tilintante do agogô, traz o amanhecer. Depois do silêncio, um groove funkeado, ácido e grave trazido pelo som da guitarra preenche e abraça todo o ambiente. Marcante, Ijexá, como o próprio nome sugere, tem em si a base rítmica do ijexá, mas já com influências da cultura brasileira, a julgar pelo som da própria guitarra. Com sangue africano, o ouvinte consegue perceber, ainda, a existência do tamborim, do repique e da caixa, elementos que abrilhantam esse sangue densamente percussivo que, por vezes e graças ao riff da guitarra, chega a flertar com o manguebeat. Ijexá tem, a partir do vocal de timbre agudo e de fundo levemente grave de Ordep Lemos, um lirismo de enaltecimento da cultura umbandista. Mas não só. Ela reforça a fé e a confiança de maneira a exalar imponência.
É como o sonar do coração pulsando. Logo em seguida, Lemos surge acompanhado de uma sonorização eletrônica. Misturando a new wave com uma base do rock nacional oitentista, Orixá tem um refrão contagiante em que o sonar grave e ácido do órgão é o elemento que preenche a melodia de forma a entregar diferentes texturas. Antes mesmo que a segunda metade comece, o grito swingado, aberto e até mesmo eufórico do trompete de Sidmar Vieira preenche o ambiente melódico, o deixando ainda mais atraente. De lirismo radiofônico, Orixá fala de amor, de atração, de conquista e, por que não, de cavalheirismo. Claro que tudo com uma essência amplamente festiva, o que a torna o primeiro single de Vida Que Vai, Vida Que Vem.
O tilintar do agogô vem seguido de uma guitarra de riff macio, mas que, por meio de sua execução por Robertinho Barreto, gera uma espécie de suspense enigmático e curiosamente excitante. Entre sonares eletrônicos que caminham ao lado da instrumentação física, um lirismo de aparente temática de superação começa a preencher as linhas melódicas com uma interpretação mais intimista. Com uma base contagiante de afoxé, Sossego Traz, apresenta um personagem fiel à fé, mas que, a partir desse respaldo, exala uma sede incontrolável de experiências, de conhecimento. De vida.
Surpreendentemente, o que surge na introdução é uma temática trap penetrante e forte. Com viés mais urbano e popeado, cuja melodia tem em suas veias um sonar aveludado e entorpecido oferecido pela guitarra de Isaac Negrene, a faixa-título tem uma energia intimista que sugere a reflexão, a introspecção e o pensar na vida. Entre rompantes de drama inesperados, o blues aveludado e até mesmo choroso acaba completando, com toques de melancolia, essa que é uma canção que, indiscutivelmente, trata de perdão.
De início gradativo, mas curiosamente incômodo, a canção logo evidencia, por meio do canto de Lemos, o tema que, certamente, ditará a presente composição. Tendo nas linhas vocais um dos principais elementos que indicam a cadência melódica, Café Com Leite, com seu viés urbano, vem para falar de tolerância e, acima de tudo, respeito. Com um rap industrial ao estilo Hollywood Undead, Café Com Leite tem versos simples e um refrão versadamente minimalista, mas que amplia a noção de que o mote de seu enredo é, a partir da heterogeneidade social, instigar o respeito.
É curioso, mas a forma como as sobreposições dos riffs da guitarra se comunicam cria uma melodia que, mesmo ao lado de sonares percussivos, oferece uma singela semelhança com a base melódica da guitarra executada por John Shanks em Pieces Of Me, single de Ashlee Simpson. Ainda assim, Pegue Na Mão, Não Pegue No Pé é marcada por um forte corpo trazido pelo sonar do baixo, que dá mais pressão a uma melodia que é majoritariamente suave, swingada e contagiante. Pegue Na Mão, Não Pegue No Pé é uma canção que fala também de liberdade, mas aqui com um foco maior no autoconhecimento. Estimulando o ato de viver de forma mais leve, a faixa tem: “não se esqueça: viver é bom demais, mesmo quando não se sabe o que quer” como o verso definidor de sua mensagem lírica.
Melodicamente fugindo do sangue africano, o presente crepúsculo vem com um forte, swingado, encorpado e contagiante reggae. Com uma base bem marcada pela união dos sonares do baixo e da bateria, a canção ganha um sabor atrativo que faz com que o ouvinte dance e se movimente no ritmo sonoro até mesmo de maneira inconsciente. De refrão de sabor pop rock com toques sujos, Não Desista Da Batalha dialoga sobre perseverança, persistência e, principalmente, sinceridade. Outro importante single de Vida Que Vai, Vida Que Vem.
Doce, valsante e suave. A introdução do novo amanhecer vem acompanhada de um frescor inebriante e de extremo contágio. Sonoramente minimalista, Alento tem na voz de Lemos o elemento que entrega textura e cria inéditos sabores salgados em meio ao dulçor penetrante da melodia. Misturando a acidez da new wave com sonares percussivos, Alento dá outro olhar sobre o despedir, um ato que pode simbolizar desde o adormecer e o mudar-se de espaço físico ao falecer. Com muita sensibilidade, seu lirismo tem a intenção de ampliar os sentidos propriamente emocionais do ouvinte para que este consiga sentir aquilo que não é tangível. Alento é uma experiência extrassensorial embriagante.
A guitarra de Roy Carlini traz uma melodia ácida que transforma a melodia em um rock alternativo levemente sombrio de maneira a rememorar a estética melódica de nomes como Arctic Monkeys, Gorillaz ou mesmo do The Strokes. Conseguindo ser sensual e provocante a partir da batida rítmica, Casca é como um sinônimo de calejado, uma palavra que cabe bem quando uma pessoa já passou por vários eventos que podem ser traumáticos ou não. Aqui, tudo se tangencia em relacionamento e suas aventuras emocionais dicotômicas. A indecisão, as brigas e os conflitos. Porém, o que prevalece é a certeza de que o amor se fixará e mostrará que o afeto supera qualquer imprevisto.
Surpreendente. No último capítulo do álbum, parece que Lemos ressuscita aquele manguebeat de Ijexá por conta da sincronia melódica criada pelos sonares percussivos trazidos pelo sintetizador e pela acidez do riff da guitarra. Agraciado por uma base pop, o que a torna radiofônica, Rápido e Rasteiro é uma canção que dialoga muito além da superação. Trata-se de enxergar sempre o lado bom da vida e afastar qualquer tipo de sofrimento. O medo do destino é algo inexistente para aquele que da vida cuida e, dela, recebe os ensinamentos de como caminhar.
É como uma homenagem à cultura africana, pois em todos os seus 10 capítulos o ouvinte consegue degustar, no mínimo, a influência dos ritmos da África em suas construções melódicas. Assim, Vida Que Vai, Vida Que Vem se torna um álbum de raiz, um material que resgata as origens de um país esbranquiçado por ensinamentos impostos de um povo egocentrista.
Por vezes, ainda, o novo álbum de Ordep Lemos até parece ser lúdico e focado para o público infanto juvenil por ensinar a valorizar a vida, a ser respeitoso, receptivo e tolerante. Porém, esses ensinamentos, por mais que pareçam tolos, são necessários de serem assimilados por pessoas de diferentes idades. E é aí que entra a beleza de Vida Que Vai, Vida Que Vem.
Seus versos líricos e suas melodias fogem completamente da estética infanto juvenil, afinal, este não é seu público primeiro. Com auxílio da mixagem de Fabiano Peixoto, o álbum traz mergulhos na cultura religiosa africana por meio de cantigas de candomblé, mas também de sonoridades do solo afro, como o ijexá e o afoxé.
Interessante notar que Ordep Lemos, com auxílio da produção de Serginho Resende, também abraçou ritmos populares para deixar seu produto mais acessível. Nesse aspecto, o soteropolitano fundiu a new wave, o pop, o rock alternativo, o reggae, blues, o manguebeat e o rap, o que, por vezes, conferiu a Vida Que Vai, Vida Que Vem uma ambiência amplamente urbana.
Fechando o escopo técnico vem a arte de capa. Assinada por Ricardo Maizza e Carlos Rezende, ela é repleta de cores fortes e vivas que criam silhuetas de um olhar enigmático que parece observar, em tom imponente e confiante, o ouvinte chegando para conferir o material. Um verdadeiro ensinamento de igualdade.
Lançado dia 02 de fevereiro de 2022 de maneira independente, Vida Que Vai, Vida Que Vem é uma lição de como lidar com a vida, com os medos. Com o tempo. Acima de tudo, é um material que, por meio de ensinamentos para a construção de uma sociedade mais altruísta, conforta o caminho rumo à liberdade e à igualdade através de uma experiência extrassensorial.