NOTA DO CRÍTICO
A banda tem somente sete anos, mas já é considerada prodígio na nova vertente do rock. Ganhador da edição 2021 do Eurovision com a música Zitti E Buoni e rompendo o jejum de 31 anos da Itália sem vencer o evento, o quarteto de Roma Måneskin retoma suas atividades em estúdio e anuncia Rush!, seu quarto material discográfico e sucessor de Teatro d’Ira.
Uma batida forte. Uma melodia áspera que mistura traços do funk com o rock alternativo. Com forte marcação do baixo de Victoria De Angelis seguida pelo homogêneo riff de Thomas Raggi, a sonoridade traz um corpo que não esconde a influência de nomes como The Killers, Arctic Monkeys e The Black Keys. Contagiante, Own My Mind vem, com o timbre característico de Damiano David, convida o ouvinte a mergulhar sobre um lirismo de intenso desejo. Porém, nas entrelinhas, o quarteto de Roma questiona a manipulação ao mesmo tempo em que evidencia a fragilidade da mente humana no que diz respeito a consistência dos pensamentos e da manutenção do caráter. Own My Mind é sexy e açucaradamente contagiante, uma boa estratégia do grupo em mostrar, com o som, o que suas palavras cantadas querem dizer.
A batida é contagiante, mas a guitarra é ácida e suja. Com toques de cinismo e loucura, a melodia tem uma espécie de quebra rítmica a partir da cadência com que David insere o lirismo. Acelerada, ela dá a deixa para que a canção saia de um experimental grunge e mergulhe na temática pop durante o refrão. Ainda assim, Gossip se vende como uma canção de fato mais áspera e inquietante que obriga o personagem lírico a se despir da persona da fama, da popularidade e o exige a assumir sua própria identidade. É uma nítida crítica à cultura do showbusiness: aquela que cria personalidades egocêntricas com senso de poderio inesgotável e de inabalabilidade. Aquela em que o sucesso cobra seu preço e faz com que a pessoa esconda sua dor e sofrimento em uma carapuça de perfeição. Aquela que faz seu hospedeiro se esquecer de onde veio e se anular para si. Gossip, aquela abrilhantada por um solo de guitarra rápido de Tom Morello que rompe com o marasmo melódico e encaminha a faixa para seu fim.
Macia, swingada, caiçara. O aroma praiano e o flerte com o reggae trazem grande parentesco tanto em relação à melodia criada por Bradley James Nowell na introdução de Santeria, single do Sublime quanto àquela desenhada por John Frusciante em Under The Bridge, single do Red Hot Chili Peppers. Com pitadas de uma nostalgia que constrói um cenário de fim de tarde em que o pôr do Sol é visualizado do alto de uma montanha. Um visual rejuvenescedor e, principalmente, reenergizante. Com um toque romântico, a estética de Timezone soa quase como uma declaração contínua em que a melodia vai ganhando novos elementos de forma gradativa. Com uma base blues e um clima intimista, o ouvinte tem a possibilidade de degustar de maneira mais profunbda o timbre rasgado de David que, aqui, discute o efeito da fama na transformação da rotina de vida e na forma como a notoriedade afasta a persona daquele indivíduo que, um dia, foi apenas um cidadão comum em um dia a dia comum. O ato de romance é uma metáfora para o acesso entre a pessoa famosa daquela do passado, comum e, até mesmo, mais feliz e mais leve. De forma mais direta, Timezone é a saudade de tempos mais simples em que a vida era leve e, entre aspas, normal. Nesse sentido, inclusive, é até possível ver um parentesco lírico-temático com aquele enredo desenhado em Gossip. Eis aí uma dupla reflexiva de Rush!.
Apenas pelo compasso criado pelo bumbo e pela interpretação vocal, que soa debochada e propositadamente mole, a canção já exala uma sensualidade provocante, mas ao mesmo tempo, de uma intensa futilidade. Quando o baixo entra em cena, não apenas o corpo é evidenciado, mas a canção ganha até mesmo uma força rítmica ainda mais atraente. Não apenas de futilidade trata Bla Bla Bla. A presente canção fala também de inveja, os efeitos do menosprezo na construção da essência do indivíduo. A necessidade de afeto sincero como demonstração de ser alguém querido pelos outros é outro assunto que desperta a importância da sinceridade. A sinceridade é o ponto-chave do enredo de Bla Bla Bla, uma música de instrumental básico, mas bastante marcante e intenso.
Um classicismo no rock. Algo épico, dramático e harmônico é criado a partir da guitarra chorosa. De súbito, a melodia passa para uma frase de compasso pop, mas com compasso criado por um baixo de afinação grave-ácida que remonta uma estrutura de base stoner. Com refrão-chiclete, em que um coro cantado pelos integrantes convida a participação do público, Baby Said tem frases de guitarra que grudam na memória e fazem de sua melodia marcante e radiofônicamente apelativa. Ainda assim, o Måneskin mantém sua tomada crítico-social ao introduzir um lirismo que discute e critica o comportamento social razo, interesseiro e descartável. É como a descrição da cultura de balada, em que as pessoas não querem profundidade, apenas o prazer imediato do momento, tal como brilhantemente exemplificado pelo verso “you can talk between my legs”. No que tange o viés de futilidade, Baby Said pode funcionar como uma espécie de continuação de Bla Bla Bla.
O tilintar opaco das baquetas chama a melodia. O que entra é o baixo de linha mais grave executado até então em Rush!. Grave e ácido, ele evidencia inegavelmente a influência stoner que pulsa pelas veias de Victoria, o que dá um contraponto interessante à base pop que já se mostra presente. Com uma cadência lírica que se assemelha incontestavelmente àquela de Sweet Dreams (Are Made Of This), single do Eurythmics, Gasoline oferece uma mistura de lounge music com um toque sombrio, inebriante e entorpecente que serve de cama para um enredo sobre uma pessoa perdida emocionalmente. Entre outros temas, Gasoline continua com o mesmo viés da dupla Bla Bla Bla e Baby Said, pois trás a história de uma pessoa com a vida ganha, mas que vive sempre no limite. Innsensível, intenso, egoísta. Novamente alguém que grita por carinho sem resposta e se joga na agressividade para suprir sua carência afetiva.
Já trazendo uma estrutura radiofônica inebriante e extremamente contagiante, Feel é uma canção com base pop repleta de swing e ânimo através de uma temática melódica sem brilhantismo e de introdução minimalista. Divertida, Feel é o simples, singela e, por vezes, até mesmo ingênua divagação sobre o efeito extasiante e enérgico da cocaína. É uma faixa sobre intensidade e liberdade, desejos que são incessantemente queridos por pessoas presas em comunidades conservadoras e intolerantes. A ambiência narrativa dos anos setenta como a introdução do início da era dos excessos para mostrar o caminho da libertação das amarras morais. “Do you understand? Ah! I'm about to make you feel”.
É o stoner, é o pop, é o rock alternativo. Cheia de frases melódicas marcantes, Don’t Wanna Sleep não tem uma grande extensão lírica, apenas algumas estrofes. Porém, sua sonoridade, em união ao ‘pouco’ que é verbalizado, o Måneskin entra com um enredo reflexivo-analítico sobre o medo que as pessoas sentem delas mesmas, de ficar a sós consigo. O medo de perceber que, no fundo, é um indivíduo perdido entre as muralhas da solidão. E aí, o LSD e outros entorpecentes mais, aparecem para, pelo menos por alguns instantes, fazer a pessoa se sentir pertencente a um grupo e, principalmente, importante para esse grupo.
Com um baixo bojudo, groovado e instalando um ar de suspense enigmático à introdução por meio das frases lineares de Victoria, a melodia vem firme em seu cenho franzido Nesse processo, a bateria de Torchio vem igualmente linear. Com cadência minimalista, mas já entregando um avanço na pressão sonora, a bateria possibilita a Kool Kids mostrar seu sujo, grave e embrionariamente explosivo rock alternativo. Claro que a voz adocicada com notas graves e de timbre inconfundível de David pode ser considerada o elemento de balanço entre o teor sombrio interessante que emana da canção. É esse timbre que, inclusive, apresenta ao ouvinte um enredo de pura autoafirmação. Autoafirmação de quem é o Måneskin e qual a cultura musical que ele representa. Um quarteto de italianos roqueiros que não usa drogas pesadas, apenas maconha e que são apaixonados pelo que fazem e, principalmente, pelo rock and roll. O curioso com Kool Kids é que ela dá margem para uma associação ao conteúdo lírico de My Way, Soon, single do Greta Van Fleet, mas não de semelhança e, sim, das fases vividas pelas bandas. Enquanto o Måneskin, que já se encontra no auge da fama e com uma discografia respeitosa, vem em Kool Kids com uma narrativa de presença, autodefesa e quase que uma apresentação, o Greta Van Fleet, em My Way, Soon, colhe os frutos do trabalho, do sucesso, da fama e das vivências após sua explosão no showbiz. São duas bandas que tiveram um apogeu repentino e cuja batalha é manter o nível de qualidade equilibrado.
É como o ato de se olhar no espelho, cabisbaixo e entre os reflexos de uma tarde cinzenta e chuvosa. Com uma melancolia curiosamente contagiante e com uma temática ainda mais intimista que aquela sugerida em Timezone, If Not For You surge quase como uma canção à capella em que David faz uma doce e bela homenagem aos nomes que influenciaram o Måneskin e seus integrantes a se interessarem pela música e dela se sustentarem. Nesse contexto, a banda destaca nomes como Michael Jackson e Nirvana como uma de suas principais influências na música e os agradece por terem existido. De certa maneira, é até possível que o ouvinte encontre singelas similaridade com a temática melódico-lírica de Life Must Go On, single do Alter Bridge. Eis, enfim, a primeira balada de Rush!.
Novamente mostrando o poderiu de conseguir construir canções de melodias atraentes, a banda apresenta Read Your Diary, uma canção de curta duração, mas cativante e intrigante que, assim como em Feel, oferece uma narrativa sobre liberdade. Diferente da anterior, porém, Read Your Diary tem um viés mais dramático e até mesmo mais mórbido sobre o tema ao trazer um enredo de alguém que percebe o sofrimento do outro apenas quando o pico da dor passou - e graças à leitura de um diário -. O medo de se expor e de ser quem é por conta de represálias sócio-morais-conservadoras barra o indivíduo de sua liberdade, mas a força de colocar a essência para fora é o que Read Your Diary realmente quer instigar no ouvinte. Uma música melodicamente divertida, mas liricamente reflexiva.
Elétrica e com flertes com o hard rock. Não há sensualidade, mas, sim, uma provocação latente que instiga e atrai o ouvinte pela embrionária agressividade que soa do riff da guitarra. Sendo preenchida por uma batida cativante, a canção, pela primeira vez no álbum, apresenta um baixo que, apesar de grave, não sugere tendências ao stoner. Com base melódica tanto no rock alternativo quanto no indie rock, Mark Chapman oferece a primeira canção interpretada inteiramente em italiano de Rush!. De refrão pop, a canção traz David com um vocal limpo cujo timbre se assemelha, mesmo que em rápidos instantes, àquele de Sami Chohfi. Como o próprio nome da canção sugere, ela é como uma revisitação ao fatídico evento que culminou com a morte de John Lennon. Mais do que isso, Mark Chapman lança luz ao fato de que, entre as pessoas, nas ruas, embaralhado entre as multidões, existem psicopatas que confundem adoração e admiração com posse, fascínio e vício. Versos como “Vuole tu sia in pericolo, pero'ti chiama idolo” e “non gli interessa assomigliarti, vuole essere te” definem bem o estado de loucura e carência que assolou Chapman na tarde daquele 8 de dezembro.
Selvagem, sexy e perigosa. O riff da guitarra de Raggi surge como um trovão sensual e provocante cuja temperatura faz aquecer o ambiente e causar embrionários frenesis. Grave e sujo, ele consegue, ao lado da contagem do tempo rítmico feita pelo bumbo, criar uma atmosfera contagiante que já comunica se tratar de uma canção cuja própria estrutura é um convite para a participação do público em apresentações ao vivo. Surpreendentemente, David surge com um enredo em italiano, reforçando e recomunicando as origens do grupo. Curiosamente, La Fine se apresenta como uma espécie de continuação de Kool Kids, mas com um teor mais sombrio. Aparentando relatar a luta do grupo em ser devidamente reconhecido na comunidade internacional do rock, as decepções durante as excursões de promoção do quarteto, a canção tem como mote informar que o Måneskin vem com a responsabilidade de romper o conservadorismo do rock e mostrar que existem muitos e bons rock and rolls fora do eixo EUA-Reino Unido. Além disso, La Fine ainda consegue alfinetar a indústria do entretenimento ao abordar certos padrões de trabalho excessivo que soam como a nova era da escravidão.
Lenta, sutilmente bluesada e levemente melancólica. Il Dono Della Vita é marcada por uma guitarra chorosa que, em alguns momentos, recria aquela emoção romantizada e dolorosamente nostálgica de Gotten, single de Slash. Cantada novamente em italiano, a faixa é regida por uma dramaticidade que auxilia na narrativa intensa que fala sobre persistência, perseverança, foco e predestinação. Il Dono Della Vita é, ainda, uma canção que relata a virada de comportamento do eu-lírico, a súbita tomada de consciência e, inclusive, o desejo de ser motivo de orgulho para sua mãe. Em tom autobiográfico, a canção conquista pela forma como David soa suave como uma forma de esconder a visceralidade por trás de uma angústia entorpecida.
Novamente uma mistura de pop com stoner. Aqui, porém, é bem possível de notar uma semelhança estética com a sonoridade criada pelo The White Stripes. Com uma interpretação lírica agonizante que comunica, inclusive, uma referência velada ao estilo de canto de David Byrne em Psycho Killer, single do Talking Heads, David faz de Mamma Mia um hino de libertação ao mesmo tempo em que exalta o genótipo italiano e trata de assuntos densos como impunidade e intolerância. Quase como uma defensora à cultura LGBT, Mamma Mia é independência, é liberdade, é intensidade, é fogo. É o frenesi da autoconfiança.
Acalorado, swingado, praiano. É como o Sol, como sentir o frescor do mar, é como o gosto das férias, da tranquilidade e do descompromisso. É assim que Raggi mostra sua versatilidade em criar frases que possibilitam a não rotulação rígida do som proporcionado pelo Måneskin. Misturando reggae e soft rock, a faixa vem com David em sua máxima forma. Seu vocal rasgado e de timbre inconfundivelmente adocicado vem como o elemento a derramar a cadência rítmica de um produto cuja introdução é minimalista, mas altamente contagiante. Essa estrutura básica se desmonta gradativamente somente a partir do pré-refrão. Supermodel é uma canção que narra a conversão de uma devota cristã em uma boa vivant regida pela intensidade e pela vivacidade. Apesar de trazer fusões estilísticas de alguns segmentos do rock, a base pop da canção cria uma familiaridade com a base rítmica de Chasing The Sun, single do The Wanted.
Uma energia até então inexperimentada em Rush! surge com a introdução intimista. Melancólica, a canção se apresenta com ecos chorosos da guitarra ao fundo enquanto voz e violão vão criando o elo entre melodia e ouvinte. Com uma cadência 4x4, The Loneliest é uma canção de despedida, mas não uma despedida comum. Ela traz um personagem central que se encontra em estado terminal e que quer viver intensamente seus últimos dias ao lado de quem ama. Dessa forma, The Loneliest é uma faixa em que o romance se mistura com tragédia. A beleza se mistura com feiura. O amor se mistura com a dor.
Não, o Måneskin não tem apenas um álbum de estúdio e muito menos surgiu em 2022. Porém, foi com a adaptação de Beggin’ que o quarteto italiano nasceu para a cultura pop global, graças, principalmente, ao auxílio do Tik Tok. No entanto, a banda seria facilmente esquecida se fosse ruim. E Rush!, seu terceiro material cheio, veio provar o contrário, pois evidenciou um som cheio de consistência, precisão e, principalmente, qualidade.
Como um material inquietante, elétrico, enérgico, melancólico, nostálgico, mas também amplamente autorreflexivo no que tange à trajetória do próprio grupo até o momento, o álbum mostrou a força e a sede com que os quatro romanos se lançaram para não somente mostrar mais de seu potencial como grupo e como indivíduos na música, mas também para dar força a uma nova cultura na cena do rock.
De responsabilidades para com o corpo e para com sua posição de influência, o Måneskin promove um trajeto múltiplo em Rush!. Abordando questões de identidade, o efeito da fama na vida de seus integrantes, além de questionar a forma como a indústria do showbiz age sobre os astros que a formam, o álbum não se cala facilmente nem no que tange os fortes pitacos de rechaço aos comportamentos de intolerância, manipulação e conservadorismo.
Sem se esquecer de onde vieram, o álbum ainda dá direito a capítulos cheios de nostalgia que relembram os tempos em que o quarteto era apenas um grupo de amigos soltos por Roma, sem qualquer tipo de holofote os rondando. Claro que, nesse sentido, Rush! também dá espaço para abordar a falsidade, o interesse e a futilidade que, a partir do sucesso, surge nas pessoas que transitam pelo círculo social dos integrantes.
É tão curioso que, por vezes, Rush! tem aromas barrocos viscerais, pois existem, em vários momentos, uma dramaticidade ácida e melancólica sobre a realidade da indústria da música. Entre tons de deboche e até mesmo diversão, o que fica de lembrete é um viés intensamente crítico.
Dando voz a essa miscelânea de contextos que rodeiam um assunto central: a fama e seus efeitos, o Måneskin teve apoio de um grande time de produtores que abrange nomes como Captain Cuts, Fabrizio Ferraguzzo, LostBoy, Mattman & Robin, Max Martin, Rami Yacoub e Sly.
Com eles, Rush! soou verdadeiro, dramático, animado, extasiante, melancólico, nostálgico e crítico. Com eles, o quarteto romano conseguiu ter um álbum que transite entre o pop, o hard rock, o blues, o stoner rock, o rock alternativo, o indie rock, a lounge music e até mesmo ao art punk. É verdade também, porém, que ele poderia ser enxugado em número de faixas para não ficar tematicamente repetitivo, mas isso não atrapalha no geral da degustação do produto.
Lançado em 20 de janeiro de 2023 via Epic Records, Rush! é um álbum visceral e amplamente autobiográfico que mostra um grupo recém-chegado ao estrelato global que já demonstra uma espécie de crise existencial vivida pelos seus integrantes. Ainda assim, ele é uma prova da qualidade, da competência, da sede e da responsabilidade com que o Måneskin se posiciona no showbiz. Uma banda que, assim como o Greta Van Fleet, tão jovem atingiu seu apogeu de fama, mas que tem muito ainda para mostrar.