NOTA DO CRÍTICO
Ele foi completamente financiado por fãs e apoiadores. Intitulado Rurais, o material consiste no quarto disco de estúdio do Magüerbes e foi gravado no Estúdio Canto da Coruja, em Piracicaba (SP). Processo de produção do novo material do quinteto de Americana (SP) ocorreu entre janeiro e agosto de 2022.
O calor é ameno, mas seco. O aroma é de pasto. De esterco. Capim. A estrada é de terra batida e, o chão, somente acimentado. A ambiência bucólica é intensa com suas diretrizes extrassensoriais, as quais fazem o ouvinte viajar para aquele campo que a ele melhor convém. É quase como um estímulo ao mínimo de memória afetiva que, entre sons de animais fazendeiros como galo e peru, a melodia mariachi sendo transmitida por uma vitrola envelhecida é percebida enquanto, manualmente, as estações são mudadas até que o radialista, interpretado pela participação especial do Thiago DJ, introduz o Magüerbes. Quando a melodia de fato se apresenta, ela vem puxada por uma levada de bateria simples feita por Ricardo Franciscangelis, mas densamente embebida em subgraves que dão uma leve conotação de estridência. Sem demora, a guitarra base de Fábio Capelo rasga aquele mínimo de veludo com um riff ríspido e mergulhado no grave, algo que já lança uma ideia de que a estética sonora será estruturada na base do metalcore. E essa hipótese se confirma com a entrada da guitarra solo de Fabrizio Martinelli. Fresca e nostálgica, mas também áspera e melancólica, ela retrocede o ouvinte para o início dos anos 2000 com sua melodia lancinante e chorosa. Completando o escopo sonoro, Haroldo Paranhos invade o cenário com seu timbre azedo e igualmente áspero. Suja, densa, grave e de uma tristeza sombria, Capial é uma faixa que dialoga sobre pensamentos destrutivos e deprimentes, mas também da coragem e da força para superar o sofrimento. Trazendo o tempo como principal auxiliador desse processo, Capial ainda exala a companhia de pessoas próximas como um importante artifício de alívio do peso da dor e um gatilho para o desabafar.
Uma voz de criança surge como se estivesse mandando mensagem de áudio via WhatsApp. Provocando Paranhos por música nova e colocando diversos coloquialismos urbanos, Niña coloca uma singela e divertida dose de imaturidade à canção, que, sem demora, desfila sincronias entre o grave e o melódico proporcionado pela dupla de guitarras. É assim que um hardcore de essência santista com referências claras ao Charlie Brown Jr. se evidencia ao ouvinte. Ainda mantendo um gosto soturno em sua base melódica, Coreto consegue ser explosiva ao mesmo tempo em que se constrói sobre uma cadência branda. É assim que o Magüerbes, em meio à sua despropositada nostalgia melódica, convida o ouvinte para, em Coreto, refletir sobre causa e efeito, sobre bondade, sobre legado de um ensinamento ético entre pai e filho. Enaltecendo a essência do indivíduo como principal espelho de si mesmo, a faixa ainda traz uma inclinação romântica em seu enredo que, aos poucos, se transparece uma mistura entre o post-grunge e o metal alternativo.
O som da distorção acompanha o torpor da guitarra, que se mostra com uma afinação que lembra aquela utilizada por Dave Grohl na introdução de Everlong, single do Foo Fighters. Ainda que o chiado traga uma inclinação despropositada ao lo-fi, ele insere um tipo de textura diferente à melodia nascente que de fato se apresenta, como um expoente do rock alternativo, após uma breve troca de mensagens de áudio. Comunicando a necessidade do compartilhamento de emoções, essas mesmas conversas já informam o teor do lirismo de Pé Vermeio. Também inserindo frases de metal alternativo, mas com ligeiras intersecções com o nu metal, a canção é, curiosamente, mais uma a ter o relacionamento como base de sua estrutura lírica. Afinal, o amadurecimento e a mudança em prol do bem-estar comum, ao contrário de manter o ciclo do desgaste até ele esfarelar.
A guitarra solo surge solitária como um trovão ecoando no vazio profundo. Seu riff comunica algo diferente do que já foi experienciado até então. Existe perigo, adrenalina, mas também notas curiosas de libido. Quando a guitarra base entra, mais peso e corpo aqueles fatores ganham, sortindo na criação de outro elemento: a provocação. Junto ao chimbal e o bumbo já delimitando a cadência melódica, Sem Gelo vai se mostrando excitante e enigmaticamente extasiante com sua sensualidade hard rock transpirada por uma base hardcore soturna. Contagiante e enérgica, Sem Gelo, além de ser uma faixa forte em apelo melódico presenteada por Rurais, é uma canção que trata sobre o luto e sobre sensibilidade paranormal. O que para muitos pode ser loucura, para outros, o que é vivido pelo protagonista de Sem Gelo é muito mais do que a embriaguez alucinante da saudade. É a necessidade de saber que tudo aquilo que foi vivido foi, de fato, uma paixão recíproca.
Depois de mais uma introdução verbal construída a partir de uma mensagem de voz, o que surge é um hardcore que mistura melancolia e nostalgia em uma medida equilibrada. Rememorando novamente a sonoridade do CBJ, a canção ainda tem em sua receita misturas de rock alternativo. É assim que Boia Fria, uma música motivacional, que aborda a perseverança, a autoconfiança e a coragem, se apresenta ao ouvinte. Ainda fazendo uma indireta menção à aceitação como um recado relacionado ao temor de assumir a própria sexualidade, Boia Fria é educada e delicada, mas também estimulante em sua mensagem que incita o enfrentamento dos medos para viver a verdadeira essência de cada um.
Um drama paira na atmosfera. Porém, não é nada de conotação sentimental, que informe tristeza, dor ou sofrimento. É apenas um interessante artifício de notas sombrias que incita a expectativa em saber o que o Magüerbes oferecerá a seguir. Ao lado do sonar dos violinos, a bateria surge em um groove sincopado que, por si só, já informa uma cadência estruturada na métrica do metal alternativo. Evoluindo para um cenário visceral e lancinante em sua tomada que mistura stoner rock e o metalcore, Melhor Dia é uma música que humaniza o protagonista ao apresentar uma consciência de agir com defeitos acordados por determinados cenários sociais. Como um produto que esclarece a vontade de ser cada vez melhor para o outro e que, inclusive, expõe o peso de um segundo elemento na construção do emocional do personagem, Melhor Dia é o desejo de melhora, de ser útil e de transparecer um porto-seguro para aqueles que estão em sofrimento.
As guitarras sujas já desenham uma melodia calcada no rock alternativo. Quando a melodia ainda sonolenta passa para a segunda fase da introdução, uma surpresa. O baixo surge claro e nítido, se tornando um grande elemento na densidade e no corpo da sonoridade. Sob o comando de Julio Ramos, ele, junto à bateria, cria um compasso que rememora aquele criado tanto por Paul James Phillips e Greg David Upchurch na base rítmica de Blurry, single do Puddle Of Mudd, quanto por Brad Walst e Neil Sanderson em I Hate Everything About You, single do Three Days Grace. Evoluindo para algo nostálgico e explosivo, capaz de fazer o ouvinte relembrar as fotografias tiradas de um passado não tão distante, mas reconfortante e com curiosas notas de lamentação, Saudade é uma canção que, assim como Pé Vermeio, traz o relacionamento como mote. Misturando mais que lamentação e decepção, a canção expõe a fragilidade do elo entre duas pessoas e o desgaste da relação como impedimento para superar e lutar em prol da harmonia. Não à toa que Saudade soa como um lado b de Pé Vermeio.
Depois de outra mensagem de áudio, uma explosão ácida surge sem aviso e introduz uma agressividade até então inexperienciada em Rurais. Com um Paranhos de vocal densamente rasgado em seu grito ecoante e raivoso, a melodia se mistura entre melancolia e uma embrionária negação, enquanto o enredo lírico é ambientado em um bar regado a cerveja. Bailão é simplesmente um gatilho para reviver memórias e entrar em uma espécie de transe saudosista ao lado de amigos que fizeram parte de sua história.
As notas do piano surgem como se estivessem no meio do caminho entre o audível e um chiado longínquo. Não trazendo drama nem melancolia, mas sim uma textura curiosamente doce e gélida à introdução, esse sonar logo se transforma em algo encorpado e preciso a partir da sintonia entre bateria e baixo. Como uma sequência crescente, a canção apresenta a bateria, o baixo e, enfim, a guitarra em sua distorção quase dissonante ao estilo grunge. Se maturando como um metal alternativo áspero e de notas azedas singelas, Nós Por Nós se mostra uma canção contagiante mesmo quando propõe um controle em seu caráter explosivo durante os versos. Retomando o motivacionalismo proferido em Boia Fria, mas aqui com generosa dose de idealismo por um futuro perfeito, Nós Por Nós defende a generosidade e a bondade como elementos cruciais para construir um amanhã harmônico e igualitário. Como uma luta em prol de uma comunidade cívica, a canção incentiva o enfrentamento de eventuais adversidades na defesa do bem comum.
É quase um material educacional. Construtivo, motivador e até mesmo com singelas inclinações existencialistas, o que o Magüerbes propõe em Rurais é o lidar com as emoções de maneira consciente e respeitosa. Ao mesmo tempo, ele e um material delicado que disserta sobre as emoções do coração a partir fortes enredos tematizados em relacionamento.
Sem assombro, o contexto do relacionamento é o que dá forma a várias canções do álbum, seja direta ou indiretamente. Nesse processo, o que acontece é o mergulhar em reflexões sobre superação, sobre luto, sobre saudade, lamentação e até mesmo decepção. Contudo, há muito mais a ser retirado do material.
Motivando o ouvinte a se aceitar, a enfrentar seus medos e a expor sua verdadeira essência, Rurais é um material intensamente soturno, melancólico, dilacerante e visceral em melodia, cujas principais mensagens transitam entre a superação da dor e o respeito. Fazem parte ainda da didática do álbum a relação com o legado e a consciência de que, fazendo bondade com ética, todo o futuro será repleto de benfeitorias.
Não à toa que, nessa veia educacional e sensível, o Magüerbes não esconde sua afinidade estilística com o Charlie Brown Jr.. Inclusive, o estilo de hardcore presente em Rurais muito exala do frescor presente na sonoridade da banda santista. Porém, mais que o hardcore, a partir da mixagem de André Salata, o material transpira uma série de outros subgêneros do universo do rock urbano. Nu metal, metal alternativo, post-grunge, rock alternativo, stoner rock, hard rock, lo-fi, hardcore e o metalcore preenchem a paleta melódica do material de maneira limpa e bem equalizada.
Fechando o escopo técnico, vem a arte de capa. Feita pelo coletivo de arte multidisciplinar SHN, ela, despropositadamente, denota muita referência à obra feita Renato Yada e Speto e utilizada como encarte do álbum de estreia autointitulado do Raimundos, graças ao seu fundo marrom-barroso. No centro, porém, ao invés do chapéu de cangaço, se encontra um ônibus. O meio de transporte surge como uma metáfora aos conceitos de superação e movimento, mas também como um veículo que distribui memórias e nostalgias. Tudo aquilo que, certamente, é bem exposto no álbum.
Lançado em 11 de agosto de 2023 via Repente Records, Rurais é um álbum melancolicamente dilacerante que propõe o lidar com a dor no caminho da superação do sofrimento. Um produto educacional, sensível e motivacional que estimula o ouvinte a ter consciência de sua força interior e da importância das boas ações na construção de um futuro calcado no bem comum: a igualdade.