NOTA DO CRÍTICO
A banda é jovem, nascida em uma São Paulo de 2021 em um período recém-pós-pandemia. Ainda assim, ela já passou por mudanças em sua formação movidas a divergências musicais. Agora, no início do terceiro trimestre do ano, A Sophie’s Threat, agora em layout de quarteto, anuncia Phase One, seu EP de estreia, como forma de apresentar sua nova vocalista.
Uma voz grave com traços tímidos de veludo dá certo tom à escuridão. Seu timbre ecoa pelo vazio gélido e incômodo, enquanto, como se falando para si, exorta seu desejo de aniquilação humanitária de maneira a transpassar sua frieza e insensibilidade psicopatas. Dos ventos mudos de um terreno inóspito, eclode um grito rasgado e agudo proferindo o nome do personagem primeiro, responsável pela proclamação assombrosa. Vindo de Malu Sales, esse berro não chama pelo fogo ou por um incêndio descontrolado. O que acontece é o incitar do tremor das montanhas rochosas, as fazendo ruir, pouco a pouco, até que se torne um evento descontroladamente catastrófico. A trilha sonora do presente cenário é embebida no grave e em um andamento que apenas bebe da fonte do doom metal, sem nele se deleitar, propriamente. Tendo, nesse processo, a cadência precisa em bumbos sequenciais desenhados por Tiago Carteano e a guitarra de Ricardo Oliveira, distorcida no máximo de seu grave, a canção se mistura entre vestes guturais e azedas a partir de sua interessante fusão entre o death metal e o screamo com pitadas singelas de thrash metal. Com a presença de um solo melódico de caráter dramático e apocalíptico vindo logo após uma breve ponte estruturada pelo baixo de leve estridência de Paulo R. “Satan”, Suicidal God é uma canção que culpa a sociedade por criar uma espécie de monstro, um indivíduo corroído pelos seus traumas e preso em sua esquizofrenia mental que o coloca, constantemente, entre os ímpetos benevolentes de Deus e a impiedade do Diabo.
A sincronia galopante entre a guitarra grave, áspera e suja, com um bumbo preciso, oferece, sem demora, uma melodia que mistura na receita sombria o post-grunge e o rock alternativo. Ainda assim, a raiva calada expressada por ela mostra que sua base é feita de um thrash metal mais perceptível que aquele presente em Suicidal God. De levada que ainda consegue comunicar imersões no campo do metal alternativo, Speaking Of The Devil é uma narrativa caótica, angustiante e aflitiva que apresenta um personagem lidando com certa crise existencial. Um conflito em que o indivíduo se vê na incumbência de se desligar de suas próprias identidades para dar vazão à conclusão de que todos aqueles incômodos internos e enigmáticos sejam causados por ímpetos maléficos até então reprimidos. Não à toa que Speaking Of The Devil é sonorizada entre melancolias, dramas, rancores que exalam de cada esquina rítmica.
O doom metal surge como seu principal elemento na construção melódica graças ao seu intenso grave e seu andamento lento. Com bumbos acelerados e sequenciais desenhando a cadência rítmica nos versos enquanto a guitarra se apresenta entre renhidos agudos pontuais e um galope grave na base sonora, Poison amadurece como um material despropositadamente hipnótico e até mesmo com notas de torpor. Tendo, assim como Speaking Of The Devil, inclinações para com o metal alternativo, Poison é a primeira canção de Phase One em que o Sophie’s Threat traz um enredo aparentemente autobiográfico. De cunho social e reflexivo, o enredo faz pensar nos devaneios mentais que consomem a sanidade do indivíduo como uma espécie de veneno autodestrutivo. E justamente por esse elixir malévolo inibir a consciência, o quarteto chega no dever de incentivar a busca por ajuda e para que, assim, consiga lutar com mais forças pela vida, por si e pela possibilidade de viver um novo amanhã.
Como primeiro EP da Sophie’s Threat, Phase One é um material que traz toda a vivacidade intensa, raivosa e angustiante do quarteto paulistano. Entre suas melancolias e conflitos internos, a banda faz do seu extended play de estreia um produto que convida a refletir sobre autovalorização, autoconhecimento e resistência.
Sempre embebidas sobre vestes graves, densas, intensas e ríspidas, cada canção consegue exalar algum tipo de sentimento, como se as melodias funcionassem tal qual uma espécie de exorcismo de negatividades. Não é difícil, portanto, que o ouvinte se sinta aflito, ansioso e até mesmo acolhido em sua própria angústia.
Para tanto, é preciso uma boa combinação rítmica para criar a densidade ideal para passar tais mensagens não faladas, mas sentidas. Eis que, para Phase One, foi recrutado Michel Villares, que, além da produção, ficou também encarregado da mixagem. Incumbido de duas importantes funções técnicas, o profissional sintetizou não apenas as influências estéticas presentes no som da banda, mas também criou um som cru e limpo.
Dessa forma, o ouvinte pode claramente notar que, no EP, existe uma gama de subgêneros do rock que transita desde os populares rock alternativo e post-grunge, aos de crescente estética sombria, como metal alternativo, doom metal, death metal, thrash metal e o screamo.
Fechando o escopo técnico, vem a arte de capa. Assinada por Carteano, ela traz, de maneira metafórica, a impressão dos quatro integrantes da banda. Tendo como centro a figura de uma mulher cujo rosto lhe dá a conotação de ciborgue, enquanto os outros integrantes circundam esse humanoide em suas formas caveirescas, a arte tem um ar místico por conta da tonalidade usada em seu plano de fundo. Esse misticismo traz consigo noções de enfrentamento social, a primeira fase de um combate, algo que, indiretamente, é informado nos enredos do EP.
Lançado em 12 de agosto de 2023 de maneira independente, Phase One, mais do que apresentar uma banda que introduz toques melódicos à densidade sombria e azeda do death metal, traz um conjunto de canções que pensam sobre o respeito perante si mesmo e sobre como lidamos com os conflitos psíquico-mentais. Não à toa que a mensagem que ressalta aos ouvidos é simplesmente a busca por ajuda quando o sofrimento estiver avassalador.