Lucas Brenelli - Avenida Lírica

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Mais um nome é avistado ao longe. Lucas Brenelli é novato no universo musical underground brasileiro, mas já mostra profundidade, honestidade e sensibilidade em seu trabalho de estreia. Intitulado Avenida Lírica, o disco de estúdio foi gestado por dois anos até que visse a luz do dia.


Uma dramaticidade latente rompe as barreiras sensitivas do ouvinte de maneira a, de imediato, fazê-lo ficar com os olhos marejados e com inusitados calafrios. De intenso minimalismo, mas ao mesmo tempo de grande potência, a melodia criada entre o violino e o violoncelo de Alline Ribeiro exala uma dramática melancolia aveludada cujos repentes de sonares alegres, mas ainda em estado de torpor, deixam a luz do Sol invadir o ambiente dominado pela tristeza. E na tentativa de amplificar essas frestas iluminadas, a guitarra de Gustavo Paschoalin vem com um riff bluesado, macio e de um reconfortante swingado que amorna o coração já aquecido pelos flertes melódicos também com o campo do country e do folk. Intro é uma canção cujo cardápio de texturas é vasto, as emoções são variadas e o enredo melódico desenha um quadro de redenção melancólico-nostálgico em que a maciez rítmica evidencia um final de felicidade diferente daquela de conto de fadas, pois traz um caráter latente de reflexão e amadurecimento.


O violão surge com um riff de caráter hipnótico pelo seu movimento de vaivém ecoante. Linear, ele é recebido por um abraço apertado e carregado de um sofrimento represado vindo do violino. Com um desenho puramente folk, a melodia vai permitindo o desenho de um quadro cujos contornos são guiados por cores frias e intensamente gélidas que derretem e fluem por um leito de água doce sem líquido em abundância. É aí que uma voz afinada e de timbre fino e doce tal como o de Marcelo Camelo surge dando tons mais brandos à paisagem de inverno nórdico. É Lucas Brenelli que, com auxílio de sobreposições vocais, oferece uma textura levemente psicodélica que soa como frases ditas pela mente recém-despertada de um sonho lascivo no sentido do desejo, do querer. Do próprio ato de sonhar. A Ponte é uma canção de teor melancólico menor do que aquele da faixa anterior, mas cujo enredo retrata um personagem que se perdeu por entre os próprios anseios. Dessa forma, é como se o protagonista transitasse livremente também pelo ambiente de Fall Back To Earth, faixa do Slash feat. Myles Kennedy & The Conspirators, por querer demais e acabar se perdendo no processo das conquistas desmedidas.  


O violão macio e de compasso fluído unido à tátil textura do chacoalhar do caxixi desenham uma atmosfera MPB contagiante. Existe um sabor de suspense e singela tensão nos contornos melódicos ainda em construção, mas que ainda conseguem capturar o ouvinte pela curiosidade em descobrir as novas evidências que o enredo de base dramática irá anunciar. Com uma pressão ocasional expressa pelos golpes secos do bumbo de Victor Rodrigues e repentes de um grave encorpado surgido como relâmpagos por meio do baixo, a melodia acaba migrando para uma roupagem mais folk enquanto o eu-lírico se perde por um enredo que narra o amadurecimento e a trajetória rumo ao autoconhecimento de maneira a contar com um ponto para chamar de porto seguro, algo que zele pela sua pessoa durante o caminho das descobertas. Quem Tem Que Achar Sou Eu é uma canção sobre identidade, sobre se sentir pertencente. Essa é uma das razões para a grande dramaticidade melódica existente na visceral da faixa.


Alegre como uma tarde de verão. Singela como o sentir dos grãos de areia grudando na sola do pé em uma caminhada pela praia. A maciez das notas do violão por si só já indicam que uma melodia de conforto latente será construída. Eis que a bateria surge repicada e, ao seu lado, o baixo vem como um relâmpago encorpado formando uma base rítmica misturando elementos da MPB, do pop rock e do rock alternativo de maneira a flertar com a sonoridade emanada pela Alex Turner no riff denso e grave que define o caráter de Do I Wanna Know?, single do Arctic Monkeys. Guiada pelo grave do baixo, mas respaldada pela sutil alegria da guitarra e pela suavidade do violão, a melodia de Caminhada tem em si um tom reflexivo e, propositadamente, pensativo. Caminhada traz em seu lirismo uma contemplação de várias sentidos. Na ponta do iceberg está o extravasar de ideias e sensações muito represadas e que já estavam somatizando negativamente o bem-estar do eu-lírico. Mas ao fundo, encontra-se o desejo por um novo começo, um novo script para seguir a vida. No mais profundo ambiente está a noção do pertencimento. Profunda, Caminhada é uma canção que, por meio de um folk que remete as estruturas melódicas das faixas de Year Of The Tiger, primeiro disco solo de Myles Kennedy, escancara uma série de questões que estão presentes na sociedade atual, mas muitas vezes ofuscadas pelo cotidiano do relógio e da pressa. No mais, é difícil ouvi-la e não inferir que ela seja como uma irmã mais nova ou um medley de Ainda É Cedo, single do Legião Urbana.


A melancolia invade com louvor a estrutura rítmica. O violão, desfilando suas notas graves de maneira pausada e imergindo no campo da MPB, causa um sentimento de torpor e tristeza que estranhamente é embalado pela linearidade melódica. Com um quê de fauvismo e ultrarromantismo, Mulher é uma canção que exalta a figura feminina e suas artes de sedução. É curioso notar a escolha de Brenelli com relação à melodia que abraça a presente canção, pois apesar de o lirismo ser amplamente romanceado e repleto de floreios, a melodia, que inclusive traz espirros de samba a partir do repentino sonar da cuíca, oferece uma larga ponte que separa a hipnose do amor e a tristeza regida pela melancolia.


Macia, doce e nostálgica. O vaivém dos acordes do violão faz com que a melodia já traga no cardápio pratos regados a sentimentos saudosistas em meio a um veludo amornado que oferece aconchego e alento. É então que a bateria entra com um preciso compasso em 4x4 já indicando um formato mais popular, mas não menos reflexivo. Imersa em uma profunda introspecção, a maciez rítmica é surpreendida de súbito por um coro gutural de sobreposições vocais que entrega demasiada dramaticidade à melodia. Não por acaso, O Rio é uma canção que, novamente abordando o tema do pertencimento, dialoga também com a zona de conforto extremamente atraente da depressão. Mais do que qualquer outra coisa, o que O Rio trás é uma metáfora diretamente indicada para a vida. Sua inconstância, intensa fluidez e incerteza fazem com que seja um enredo místico em que nada se sabe. É essa imprevisibilidade que assusta, amedronta e causa temor. Ao mesmo tempo, porém, é exatamente essa imprevisibilidade e fluidez que fazem com que as verdadeiras faces sejam enfim evidenciadas. É esse o veredicto da canção: o recado de que a verdade sempre vem à tona. O Rio é indiscutivelmente, além de single, a balada melancólica de Avenida Lírica.


O espirro encorpado do baixo puxa uma melodia que exala um aroma nacional oitentista de maneira a recriar sonoridades que remetem facilmente às canções da primeira fase do Barão Vermelho. Curiosamente, a canção exala um veneno específico de hipnótica sedução e selvageria regada a desejos despertos entre quatro paredes. Perigosamente sedutora, Volúpia & Afeto tem um lirismo leve que foge diversas léguas dos instigantes pensares lançados através das letras das canções anteriores. Por outro lado, ela oferece uma leveza regida por uma honesta despreocupação que relaxa a mente como uma morfina. Isso a torna, inclusive, o single de caráter mais radiofônico do álbum. 


Da janela do apartamento, a chuva é vista caindo feito véu de noiva. A luz do Sol conquista com suor alguns espaços quebrando a densidade das nuvens cinzas fazendo surgir repentinos arco-íris em meio à obscuridade do ambiente. Curiosamente, o planeta luz aqui simboliza a vida e as nuvens, a depressão, a morte. Luz Entorpecente é uma canção cujo lirismo dialoga e ao mesmo tempo oferece um duelo entre a dor e a resistência, o sofrer e a força interior.  É como o chamado para o viver, um amigo onipresente que está sempre ali transferindo novas e boas energias de maneira a incentivar o abrir dos olhos para observar a paisagem de um novo amanhecer que funciona como um recomeço, uma virada de página necessária e muito aguardada.


O surpreendente sonar do triângulo traz muito mais que uma ambiência nordestina, traz brasilidade e um swing notadamente nacional. A voz de Brenelli vem como um som radiofônico preenchendo o ambiente com um lirismo composto em inglês acompanhado por uma guitarra macia e melancólica. Ainda assim, é fácil perceber que The Train é uma canção que narra um personagem que, se utilizando da metáfora do trem, não está vivendo intensamente e vê com dores o fato de que a vida está passando e a ela não está depositando o devido valor. Diferente da emblemática Trem das 11, de autoria de Adoniram Barbosa e cujo assunto central é a responsabilidade, The Train se une à Luz Entorpecente no quesito de encontrar um porto seguro que estimule as vivências. E para criar a sonorização das emoções, a guitarra elétrica surge representando o desespero, o choro, a angústia a partir de repentinos gritos desenhados na estética blues. Ainda assim, não se pode negar o desenho funesto que abraça a totalidade de The Train.


Distorcida, mas sem agressividade, a guitarra vem entregando notas de um rock alternativo levemente áspero. Como pedregulhos rolando ao chão, a bateria amanhece de maneira crescente indicando uma possível explosão. No entanto, ao sonar do lampejo encorpado do baixo a canção é invadida por uma melodia amaciada com potencial cativante. Em meio aos gritos de torpor da guitarra, o que Humanidade oferece é uma análise propriamente social. Trazendo referências aos grandes êxodos populacionais em busca de um local passível de ser chamado de lar, sobre a crueldade e a sede de vitória lucrativa, sobre o interesse ante a compaixão. Humanidade é a interpretação da heterogeneidade do que é ser humano.


Pé no freio. Um olhar mais atento. A necessidade do abraço. Olhos mareados. O violão é singelo e o riff ameno, mas as emoções são profundamente intensas. É como o ato de observar de maneira onipresente um homem velho e de face maltratada pela vida caminhando por entre trilhas de terra batida cujo olhar é fixo a um horizonte regado de esperanças, incertezas e um torpor confortado pela imprevisibilidade. Regido por uma intensa rigidez emocional, o homem segue seu caminho entre ventanias, frios, calores, sede e fome. A vontade de chegar a um lugar existente apenas na própria poesia do sonhar é um motivador inquebrável. É esse enredo dramático que a melodia introspectiva e melancólica criada entre violão e violino oferece ao ouvinte, que se percebe compenetrado no enredo que ainda nem começou a ser efetivamente contado. Assim como Humanidade aborda o ser humano, Marujo Velho parece dar continuidade a esse enredo, mas fazendo um recorte focado em um único indivíduo que representa todos aqueles que devem arcar com seus atos de maneira a vivenciar suas consequências. A falta de amor empobrece a alma e a torna fria. Essa é uma das grandes paisagens de Marujo Velho, canção cuja melodia flerta com aquela estruturada por Dave Fortman em Nothing Ever Changes, música do Ugly Kid Joe.


Um swing denso é inserido ao ambiente abraçado por um suspense inebriantemente tenebroso. Uma psicodelia abrange o ambiente enquanto o caxixi e o violão vão desenhando um céu acinzentado em cuja aparência possui uma textura entorpecente. Na forma de uma MPB sombria e hipnótica, Passos é uma canção que, com o auxílio de sonoridades vindas de louças caindo, traz uma tensão que acompanha uma narrativa sobre simplicidade e a busca por mudanças na tentativa de alcançar uma melhora no processo de vivência da vida, repleto de frieza emocional e falso sentir de bem-estar.


Uma maciez embriagante tal como aquela desenhada por The Edge no riff introdutório de One, single do U2, se evidencia. Emocional, a melodia é acompanhada por uma melancolia inédita em Avenida Lírica que, aqui, é proporcionada pelos sopros tristes e aveludados do trompete de Guilherme Casali trazendo uma leve imersão no campo do mariachi. Ouvido ao fundo, ele funciona como lágrimas cuja timidez foi vencida fazendo com que escorram com a devida intensidade sob a face do personagem. Guiada pela intensa precisão e gravidade do baixo, a sonoridade serve de base para um lirismo que dialoga com a forma que as pessoas lidam com a imprevisibilidade, algo tido como ruim justamente por não ser definido e projetável. Contramão é também uma composição que ilustra a relação com o sofrimento, com o peso das escolhas e, principalmente, com a falta do senso de humanidade.


Linear, triste. Melancólica. A melodia do violão é introspectiva e a léguas de distância da alegria. Sofrida, é como se ela fosse a sonorização de uma pessoa caminhando a passos curtos e com a cabeça baixa preenchida por uma feição de sofrimento estranhamente reconfortante. Com uma dramaturgia explosiva por conta da sutileza das notas do violino funcionando como lágrimas generosas escorrendo sem controle pela face do personagem lírico, a faixa-título é um jorrar emocional baseado no desejo de dias melhores, ao mesmo tempo em que oferece a dualidade do presente e do passado como um contraponto de beleza e depressão.  Com grande emoção nostálgica, a canção consegue arrancar lágrimas do ouvinte por soar como um adeus repleto de dor e lamentação.


Avenida Lírica é um disco de incontestável análise social. Com doçura, honestidade, sinceridade e originalidade, o disco de estreia de Lucas Brenelli não apenas encanta pela profundidade de seus lirismos ou pela sutileza melódica. Ele encanta pela sensibilidade estética.


Majoritariamente introspectivo e reflexivo, o trabalho exala um aroma melancólico que impregna na corrente sanguínea do ouvinte e o faz assumir esse sentimento para si. Em seguida, o que vem com força é o torpor, aquele confortável senso ludibrioso de conforto que oferece um quadro de paisagens belas que, de súbito, tem suas cores liquefeitas de maneira a evidenciar o sombrio e depressivo ambiente de uma floresta em cujas árvores não há folhas e em cujo solo não há vida.


Não atoa que os gêneros musicais que mais sobressaem são o MPB e o folk. Há, claro, momentos de uma lucidez alegre e até mesmo sensual em que o rock alternativo e o hard rock se fazem presentes, de uma alegria contagiante dominada pelo country e do contágio do pop rock. Porém, a melancolia é indiscutivelmente o sentimento que domina Avenida Lírica. Até mesmo o mariachi não escapou dessa estética. Contudo, o que mais chamou atenção nesse quesito foi a capacidade de Lucas Brenelli conseguir fazer com que a MPB soasse triste, deprimente, mas o mais importante: sombria.


Produzido e mixado por Brenelli e Bruno Carlini, o disco soa criativamente livre e profundo de maneira a ser abraçado por um instrumental limpo, bem equalizado e que proporciona a degustação individual de cada sonar inserido nas camadas melódicas de suas 13 faixas.


Fechando o contesto estético, Avenida Lírica possui uma arte de capa conceitual que mistura épocas e elementos na tentativa de expressar as emoções contidas nos enredos das músicas. Feita por Danielle Alves e Larissa, ela consiste em um quadro abrigado por uma moldura amplamente trabalhada. A obra traz consigo uma ambiência temporal baseada no rococó a partir do traje do personagem central. De outro lado, os contrastes de cores e a valorização nos detalhes trazem um flerte com a estética do barroco. Um classicismo que é correspondido pela harmonia melódica amplamente baseada em gêneros tradicionais como o folk e MPB.


Lançado em 22 de fevereiro de 2022 de maneira independente, Avenida Lírica é um estudo da vida e de como as pessoas a vivem. Um sentimentalismo melancólico-nostálgico que evidencia a pureza da tristeza e a genuinidade dos conflitos emocionais emergidos pelo choque do pensar com o sentir.

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Sobre o crítico musical

Diego Pinheiro

Quase que despretensiosamente, começou a escrever críticas sobre músicas. 


Apaixonado e estudioso do Rock, transita pelos diversos gêneros musicais com muita versatilidade.


Requisitado por grandes gravadoras como Warner Music, Som Livre e Sony Music, Diego Pinheiro também iniciou carreira internacional escrevendo sobre bandas estrangeiras.