NOTA DO CRÍTICO
É difícil para um artista, seja ele representante de qualquer gênero musical, lidar com suas emoções, seus impulsos e o seu interior. Principalmente, é difícil de enfrentar a dualidade da mente, o id, o ego e o superego. Essa é a árdua tarefa que K.Flay se propõe a enfrentar em Inside Voices / Outside Voices, seu quarto e mais recente disco de estúdio.
Surgido como um repente, o riff da guitarra mistura opacidade com estridência. Ao mesmo tempo, o instrumento, sob comando de Tommy English, soa levemente acústico e com um swing propriamente indie. Ao fundo, o beat da bateria de Noah Breakfast funciona como um bater de palmas fornecendo o compasso e a contagem do tempo da canção em construção. Eis então que uma voz ácida e aguda entra em cena trazendo um tempero mais cítrico à melodia. É K.Flay introduzindo um lirismo que evidencia os duelos entre desejos e consciência enquanto a base rítmica se baseia em um riff de guitarra grave, ríspido e pontual de maneira a remeter traços da obscuridade presente na sonoridade do The Pretty Reckless. De outro lado, é interessante notar como a canção transita fácil e livremente entre densidade e leveza. Four Letter Words é uma canção que, claramente, expõe o desejo da cantora em extravasar pensamentos e sensações há muito represados e acumulados em sua boca que giram em torno de relacionamentos, de momentos em que se sentiu esnobada, ignorada e desvalorizada. “Fuck you, you didn’t deserve me!”, enfim explode o eu-lírico em sua tomada de coragem no caminho de sua autoconfiança e autovalorização.
Uma atmosfera que beira um misto de indie e melancolia, tal como faz brilhantemente o Coldplay, é evidenciada. Um som eletrônico então surge crescente e com toques opostos de doçura, acidez e estridência. Contagem progressiva e a bateria de Tim Randolph entra com golpes acelerados na caixa para fazer fluir uma melodia imersa de maneira profunda na temática indie pop a partir do som do baixo grave, linear e levemente estridente. Flertando com a estética sonora do Snow Patrol, Good Girl possui um lirismo de temática marcante, pois retrata o conflito interno do eu-lírico em se portar de acordo com aquilo que a sociedade espera quando, na verdade, sua própria identidade está sendo omitida. “but I’m getting tired do be nice” é o desabafo que vem no momento em que o personagem percebe qual é, de fato, sua essência.
Um som estridente surge como um grito ecoante. A guitarra de Spencer Stewart vem logo em seguida com um riff mole e de estética nauseante. Destoando do compasso rítmico estipulado pelo instrumento, K. Flay surge com versos líricos de cadência acelerada que evoluem para uma interpretação que imputa toques de uma sedução desproposital e inconsciente. Aqui, a melodia indie estruturada também a partir da bateria de groove linear e preciso exercido por Travis Barker remete ao desenho sonoro pintado sobre o quadro de Father of All Motherfuckers, álbum mais recente do Green Day. Tal constatação pode ser uma boa explicação para o fato de Dating My Dad possuir uma maciez rítmica contagiante de maneira a fazê-la assumir o posto de single de Inside Voices / Outside Voices. Dating My Dad é uma canção que expõe a necessidade de proteção, mas ao mesmo tempo a evidência do conceito freudiano do complexo de édipo. De outro lado, o enredo narrado evidencia que certos comportamentos e atitudes são exercidos de forma inconsciente, mas de tal maneira a replicar eventos do passado vivenciado pelos pais. É uma canção que fala, necessariamente, sobre a hereditariedade de pensamentos e comportamentos.
A voz surge em eco com ruídos. A bateria de JT Daly vem a acompanhando com um groove curto e espaçado. Um som estridente arrepia os pelos do ouvido como em um susto. É assim que o primeiro verso tem seu despertar. Seguida de uma guitarra de riff ondulante, sujo e rude desenhado por Tom Morello, K.Flay vai introduzindo um lirismo cadenciado na estética rap que imprime senso de revolta à atmosfera sonora. “I wanna rage against the fucking machine”, afirma a cantora de maneira a mencionar a banda que lançou o presente guitarrista no estrelato do showbusiness. Não por acaso, sob uma roupagem rap rock TGIF traz outra perspectiva sobre a ótica da assumição da identidade, tema já abordado em Good Girl. Aqui, porém, existe mais revolta e um senso de raiva por ter que fingir ter outra personalidade que é abraçado por um caos hipnótico sonoro embriagante.
“Your mind is created by your name”, diz uma voz radiofônica de maneira a soar como um áudio hipnótico. As notas graves e dramáticas do teclado acabam inserindo uma densidade diferenciada na melodia em formação. Novamente sob a estética do rap, My Name Isn’t Katherine é mais uma canção de Inside Voices / Outside Voices a tratar sobre a essência, a identidade das pessoas ao mesmo tempo em que traz à tona o segmento emocional da insegurança. Com a presença de subgraves dando peso e densidade à melodia, My Name Isn’t Katherine é, enfim, uma canção sobre a dualidade entre a força imponente de expor a verdadeira identidade e a insegurança sobre o julgamentos que essa atitude pode fomentar.
Grave, distorcida, suja. Densa. O som da guitarra logo de início sugere uma ambiência dramática que flerta com a raiva e a rebeldia. De repente, um som que soa como um grito desesperado assombra de súbito a atmosfera que da vasão para uma melodia de base amena, macia e com toques de torpor que se enraízam na estética indie. The Muck é uma canção que, apesar de ter uma cadência lírica de maneira a fazê-la se tornar, ao lado de Dating My Dad, single de Inside Voices / Outside Voices, possui um lirismo de temática densa e sufocante. Afinal, ele representa os medos, as inseguranças e os desapontamentos frente à sociedade de maneira a exalar uma mesma crítica feita por Charles Chaplin em seu icônico longa-metragem Tempos Modernos.
Assim como Good Girl, a presente canção logo de início demonstra grande similaridade com a roupagem melódica majoritariamente adotada nas canções do Snow Patrol. Sob um terreno indie, Nothing Can Kill Us traz uma maciez com um aroma curiosamente romanceado que proporciona um dulçor embriagante. A presente canção é um produto que indiscutivelmente exala um senso de autoconfiança e energia inquebrável. De outro lado, Nothing Can Kill Us é de fato uma música sobre romance, sobre o sentimento juvenil das primeiras paixonites que parecem ser as experiências únicas, melhores e mais intensas que serão vividas em toda a vida.
I’m Affraid Of The Internet é uma das canções com sonoridade mais grudenta existente na totalidade de Inside Voices / Outside Voices. Fornecida através das habilidades de Jason Suwito, ela é macia e intensamente melódica de maneira a exalar um aroma indie entorpecido. Porém, assim como está sendo comum no álbum, a presente faixa é carregada de fortes críticas que, aqui, se deleitam sobre as consequências que o vício da internet pode causar nas pessoas. O senso de ser inabalável, a ideia de proteção infinita. A falsidade premeditada, os julgamentos sem escrúpulos. Dramática, intensa e, até, assombrosa. “This big machine is too bad to break”, se espanta o eu-lírico e resume toda a aflição de I’m Affraid Of The Internet.
Existe uma maciez melancólica exalada pelo som da guitarra. No entanto, há também um curioso torpor de esperança que é emanada pelo veludo melódico minimalista. Maybe There’s A Way é uma canção que, flertando com uma roupagem R&B, traz uma K.Flay emocionalmente mais frágil e sensível que exorta arrependimentos de atitudes não feitas. É somente pelo lirismo que uma densidade de poeira negra e deprimente é soprada com fervorosa força. Uma depressão de grau que impossibilita a observação de alternativas para sanar os problemas. Porém, o Sol do amanhecer traz o alento e a nitidez da esperança, possibilitando, aí, a observação de que sim, existem novas oportunidades para mudar o que foi feito e melhorar atitudes futuras. Eis o amadurecimento emocional do eu-lírico de Maybe There’s A Way.
Uma hipnotizante, linear e atordoante melodia se forma a partir da bateria de Tom Peyton e da guitarra de Ryan Spraker. De melodia com repentes de estranheza e uma sonoridade destoante, Weirdo traz uma interpretação lírica que beira o deboche autoimposto como autodefesa. É uma canção que evidencia não apenas o bullying em si, mas sim sua origem. O fato de não seguir os mesmos preceitos, não vestir as mesmas roupas, não ter o mesmo sotaque, não ter os mesmos interesses e de não partilhar a mesma origem são alguns dos motivos que estimulam o preconceito e a chacota tão comum nas escolas do mundo. O interessante é o raciocínio conclusivo a que o eu-lírico chega ao presenciar tal preconceito: “so you think that I’m a freak show and you’re afraid of what it means, ‘cause if everybody’s different, maybe you’re a freak like me”. Ou seja, as piadas são uma defesa dos outros para se sentirem superiores, quando, na verdade, se sentem estranhos de igual maneira a que julgam seus semelhantes.
É como se estar em um sonho que, ao fundo, é ouvido o som do despertador apitando parta trazer a pessoa de volta à consciência. Guiada pelo piano com notas de flertes com o blues e pelo estalar de dedos que desenham a cadência rítmica, a melodia exala certo tom de ânimo. Caramel And Symphonies é uma canção de cunho dramático de maneira a se assemelhar com o apelo emocional que porventura são presentes nas faixas do Imagine Dragons. É verdade que a presente faixa tem certa alegria intrínseca nas curvas melódicas de grande presença do groove da bateria de Mike Byrne e é ela que deleita o ouvinte sobre um lirismo de cunho verdadeiramente romântico na maneira K.Flay de se expressar.
Subgraves e vocal. Esses são os ingredientes que formam os primeiros sonares da canção. Promovendo uma experiência melódica embriagante que é regida pela sobreposição de vocais limpos e editados, Good To Drive é a canção que narra a tomada de consciência, o encontro legítimo com o senso de autovalorização. Ao mesmo tempo, esta é uma canção em que o personagem percebe que precisa de ajuda para superar os degraus emocionais por ele mesmo criados.
Todos têm desejos que embriagam e mascaram o senso de consciência. E todos também têm lapsos de lucidez que recuperam essa consciência outrora perdida em devaneios de impulsos amplamente atraentes. É sobre essa dualidade da mente que se trata Inside Voices / Outside Voices.
Como um disco de caráter lírico notadamente autobiográfico, todas as suas 12 canções possuem uma noção de visceralidade transbordante que imputam uma dramaticidade intensa e penetrante. Não por acaso, os temas líricos por si só carregam grande peso e reflexão.
Aos 36 anos, a nascida Kristine Meredith Flaherty promove devaneios sobre identidade, sobre aceitação, sobre características e comportamentos sociais, mas mais importante, sobre os conflitos da mente. O autoconhecimento é uma coisa difícil de ser plenamente alcançado e, sempre que dentro desse processo, altos e baixos emocionais são inevitáveis.
E K.Flay lida com isso com maestria e maturidade. Faixas como Good Girl, Dating My Dad, TGIF, My Name Isn’t Katherine, Maybe There’s A Way, Weirdo e mesmo I’m Afraid Of The Internet ilustram bem isso. As faixas são o espelho de uma pessoa de emocional frágil e insegura, mas com uma sede desmedida de se provar para o mundo.
Para alcançar esse processo, Inside Voices / Outside Voices caminha por gêneros musicais diversos como o rap, o indie, o rap rock, o R&B e o pop de maneira a promover um cardápio de sentimentos melancólicos, nostálgicos alegres e, principalmente, sofridos e entorpecidos.
Não por acaso, para alcançar esse objetivo K.Flay precisou de um time técnico competente e sensível que abrangeu nomes como English, Randolph, Daly, Suwito, E. Breakfast, Spraker, M-Phazes, Mitch Allan e Matias Mora na produção. Montante de nomes promoveu uma gama versátil de roupagens, interpretações e texturas que sintetizaram cada uma das emoções propostas. De outro lado, a mixagem ficou responsável por apenas um nome: Michael Freeman. Ele conseguiu fazer com que todos os instrumentos, acústicos ou não, fossem ouvidos de maneira a criar as ambiências desejadas pelos produtores, tornando, assim, cada música um produto único.
Lançado em 04 de fevereiro de 2022 via BMG, Inside Voices / Outside Voices é um estudo da psiquê humana de maneira a avaliar os estímulos internos e externos e como eles moldam o emocional do indivíduo. Melancólico e entorpecido, o senso de provação é algo indiscutivelmente presente nessa busca que K.Flay iniciou para saber mais sobre quem ela realmente é.