RAYA - Tô

NOTA DO CRÍTICO
Nota do Público 5 (1 Votos)

Assim como o Hate Moss e A Transe, o Tuim é outro duo que se destaca na cena independente. Ainda assim, Paula Raia, a metade da alma da dupla carioca, decidiu alçar voos mais altos. Dessa decisão, a cantora decidiu imergir em carreira solo, cujo lançamento oficial acontece com , o disco de estreia de seu projeto RAYA.


O ambiente é o mais intimista, improvisado e espontâneo possível. Ao fundo, uma voz destrincha notícias em um jornal televisivo enquanto, em primeiro plano, uma tosse para recobrar a consciência vocal é ouvida. Eis que uma voz rouca, de fundo agudo e que ilustra a maturidade da vida invade o ambiente com algo que soa como um esclarecimento. Em tal esclarecimento, Maria Helena Goulart inicia um monólogo nostálgico apenas no sentido da memória de uma ocasião. Nele, Maria Helena dialoga sobre amor, sobre a qualidade de ser avó. Ao mesmo tempo, existe nesse contexto o amanhecer de uma elucidação para certos comportamentos originados em uma segunda pessoa, alguém que, a partir da interação recebida, criou certo padrão de personalidade que inquieta. Contudo, o que deixa evidente em Eu Tive, Por Vó é um carinho incondicional, uma relação não só de cumplicidade, mas de um amor que não cabe em palavras. De uma emoção que, de tão forte, precisou do auxílio de terceiros para evitar que se tornasse algo maléfico a quem ela se destinava. Tive Lá, Por Vó é a resposta a uma pergunta inquietante e não decifrável existente no cerne de um personagem onipresente.


É como o despejar de flores sobre um gramado esverdeado e perfeitamente podado sob a luz solar de um entardecer de outono. Adocicado, suave, surpreendente e lusitano, o som do mandolim de Navalha Carrera é como uma dose generosa de frescor no ambiente. Acompanhado de um grave e seco riff vindo do basseto de Pablo Arruda, ele traz um curioso swing que é agraciado com uma alegria embrionária e contagiante. Eis então que uma voz rouca surge na superfície melódica. É Paula Raia colocando uma textura mais tenra e seca na conjuntura sonora, mas cuja desenvoltura exala uma profunda suavidade que é embriagada em uma doçura palpável enquanto caminha por um terreno folk que serve de cama para um lirismo reflexivo sobre o papel da mulher no processo evolutivo social. Crescendo em harmonia durante o refrão vocálico graças à entrada sincrônica do violão de Victor Ribeiro e da sanfona de Livia Mattos, Registro Geral é uma canção que mistura referências do MPB e do folk em um enredo macio que trata sobre, simplesmente, de uma falta de consciência sobre o quão forte, empoderada, espontânea e antagônica pode ser a mulher. Entre a profundeza da insegurança e o mais alto estágio de autoestima, mora um representante social que não teme e que, ainda assim, tem sensibilidade.


Ao abrir os olhos, a visão está turva. Mas o que se vê entre os borrões é quase como uma cena de conto de fadas, encantadora. Flores desabrochadas, perfumes variados penetram nos poros nasais e promovem viagens extrassensoriais antes mesmo que se tenha capacidade de recobrar a consciência. Ainda de olhos abertos, a paisagem vai ganhando uma visão mais limpa e concreta que evidencia, além das flores, um córrego de águas cristalinas cortando o escampado. Com a força já sendo reassumida, é possível levantar e manter a coluna reta. Uma respiração profunda. Uma espreguiçada. E, enfim, a contemplação do momento presente. Tontura é mais que uma canção de base folk. É uma obra que, assim como Registro Geral, explora o campo sensorial enquanto dialoga verbalmente sobre perseverança, positividade e até certa ingenuidade para ver beleza mesmo onde ela não existe. É uma canção que, entre os floreios sanfoneiros e os dedilhares violeiros quase hipnóticos, fala não da conformação, mas da aceitação e de fazer do que se tem algo melhor e mais prazeroso mesmo que não seja.


O sopro do vento faz bailar as folhas junto às pétalas lançadas ao chão. Junto ao compasso racional e assertivo do violoncelo de María Clara Belle, é como se o violão misturasse o bucólico francês com o brasileiro. A pureza do ar ganha cores amenas, um perfume tão doce que ainda não foi catalogado e uma delicadeza que desmonta até o ser humano mais sombrio. Isso acontece graças à união de Paula com Júlia Mestre. Afinal, entre o grave rouco que promove uma mistura entre os timbres de Marisa Monte e Maria Gadú vindo do vocal de Paula, Júlia traz um dulçor imensurável cuja singela rouquidão cria uma harmonia vocal engrandecedora. De intensa capacidade emocional, os olhos marejam pela beleza melódica e harmônica que se cria em Comentários A Respeito de Belchior, uma canção que possui lampejos dramáticos e cujo lirismo exalta a simplicidade e o presente ao mesmo tempo em que cria consciência do amadurecimento. Mais do que o próprio Belchior, Comentários A Respeito de Belchior traz em sua melodia fortes influências de nomes como Zé Ramalho, Alceu Valença e Sérgio Reis. Inquestionavelmente um forte, sensitivo e emotivo single de .


Um aroma tranquilizante e sertanejo escapa de cada sonoridade em processo de sincronia. Com ares ainda mais bucólicos que Comentários A Respeito de Belchior, a melodia em construção possibilita ao ouvinte sentir a terra batida sobre os pés, o cheiro da grama, ouvir o canto dos pássaros e o balançar da plantação de capim. Apesar da suavidade perfumada emanada pela sonoridade, o que se segue é uma delicada voz que apresenta em cada pronúncia verbal um poder contestador. Em Os Corpos Não São Iguais, Paula dialoga sobre a heterogeneidade feminina de maneira que seus versos assumem uma interessante semelhança com a ponte lírica desenhada por Pitty em seu single Máscara. Mais do que as diferenças, o enredo visa enaltecer a prerrogativa de que cada mulher é um ser à parte, independente e livre que se emociona por razões diferentes, sofre por razões diferentes, ri por razões diferentes. Os Corpos Não São Iguais é uma música sobre autenticidade. 


Os olhares estão cabisbaixos. O corpo, um tanto encurvado. Lágrimas se formam diante das pupilas, mas curiosamente não têm forças para percorrer o riacho da face. Ao mesmo tempo, as mãos caminham lentamente pelas folhas secas pousadas na grade. A sensação de aspereza e secura entrega, por alguns instantes, a fuga da realidade. É assim que a curiosa melancolia introdutória se evidencia. Doce Ilusão tem, desde seus primeiros sonares, uma interessante essência entorpecida que se perde entre sobressaltos de uma brisa romântica. Como o próprio nome sugere, portanto, a faixa trata, entre versos dramáticos e de uma tensão estonteante, de enganações envolvendo o amor. Ainda assim, a forma como os instrumentos de corda se movimentam cria uma harmônica valsa capaz de contagiar com seu senso de suspense que desemboca em uma dramaticidade consistente graças ao choroso voo do violoncelo. 


Um curioso caos imerge por entre as notas propositalmente desafinadas do violoncelo. Tal sonoridade inicial faz com que o ouvinte se sinta flutuante em um ambiente desconhecido. Em meio a paisagens enigmáticas e repletas de uma escuridão rompida pelos brilhos estelares, o espectador está solto no espaço, sem controle, mas de olhos atentos e límpidos diante da beleza espacial. É então que o violão imputa uma melodia levemente melancólica que recobra a noção do conceito da palavra lar. Com maciez e delicadeza, a melodia passa então a adquirir contornos de uma nostalgia enigmática, mas emocionalmente contagiante. Com doçura e sutileza, Paula vai introduzindo um lirismo cuja interpretação e a soma dos primeiros versos criam um ambiente romântico no sentido mais puro da palavra amor. Antes mesmo que um novo verso letrado se encerre, outra voz igualmente suave e delicada invade a cena. É Mariana Volker colocando mais doçura em um enredo que mistura tensão e drama, mas que encontra o caminho da harmonia no amor. Entre o folk e o MPB, Cabeça Sideral é uma música que não apenas trata da maternidade, mas dos medos, dos anseios, das inseguranças. Da dicotomia do prazer e do desespero em se responsabilizar por outra vida. Uma experiência que resplandece a mais pura significância do sentimento do amor. 


É como se pudesse ouvir o barulho da água translúcida seguindo o curso em um pequeno riacho. Entre curvas e depressões, as ondulações aumentam o som linear e calmante do curso aquático. Uma calmaria então invade o cerne do indivíduo de maneira a se misturar com lampejos de esperança e reenergização. Depois do minimalismo suavizado protagonizado pelo violão, a melodia desemboca em uma dramaticidade latente a partir de uma valsa que mistura torpor, alegria e aconchego a partir das notas do violoncelo. Trazendo ingredientes diversos como o flamenco e a MPB, Riachinho é uma canção que transita entre temas de autoconhecimento, esperança e até mesmo sobre a instabilidade emocional em meio a uma estrutura que, por vezes, acaba criando uma semelhança com o refrão de Vapor Barato, single do O Rappa.


As mãos se encontram. Existe um círculo de corpos. Todos unidos, de cabeça baixa, como se estivessem preparados para um ritual candomblezeiro. De repente, as mãos se soltam e se posicionam abertas à frente dos corpos como se estivessem recebendo novas energias. As cabeças estão retas e a pose, imponente. De dramaticidade crescente e penetrante, uma preces são ouvidas ao fundo enquanto uma voz mais firme e audível se sobrepõe a tais cerimonias. Revolução fornece um interessante caos inerente aos sentimentos dolorosos que uma relação pode deixar ao mesmo tempo em que dialoga, entre turning points melódicos de grandiosa harmonia, sobre a redenção do amor.


É curioso notar como a simplicidade pode estra atrelada à grandiosidade. Assim como na culinária, nas artes plásticas e na literatura, na música o que é menos pode ser sinônimo de mais. E em , esse conceito é sonorizado à quinta sinfonia. Ultrajantemente cenográfico, delicadamente sensitivo e perfumadamente reflexivo, este é um trabalho que fala da mulher, do amor, da força interior. Da vida. Das pessoas. Da fé.


Nem sempre o que se projeta é o que de fato se tem como produto final, mas o trabalho funciona como a verbalização datilografada de um entusiasmado ‘sim’ para um imagético questionamento sobre imergir ou não em carreira solo. Afinal, com o álbum Paula Raia não mostrou somente ser uma boa letrista, mas mostrou saber combinar elementos, melodias, referências e regiões de maneira a criar um produto em que todas as faixas são capazes de oferecer cenários, texturas, perfumes e emoções.


Assim como fez Hate Moss em NaN, Paula fez de um álbum sensorial e cenográfico capaz de combinar alegria, melancolia, nostalgia, autoanálise e reflexão em um mesmo ambiente. E para combinar diferentes emoções, o time de músicos por ela recrutado oferece melodias dramáticas, chorosas e sensitivas que combinam a pureza e a experimentação da nova MPB e a melodia folclórica do folk e os aromas bucólicos provenientes do sertanejo com o ar latino do flamenco.


Deixando tais melodias evidentes ao ouvinte está o trabalho de Gui Marques. À frente da mixagem, o profissional deixou com um resultado sonoro com grandiosas harmonias, melodias emocionais e sensíveis e com uma capacidade de transportar o ouvinte a diferentes ambientes de maneira simultânea. 


Eis que vem Ribeiro canalizando toda essa amplitude em um dos exercícios decisivos para que o álbum saísse da maneira desejada. Com sua produção, não saiu somente emotivo, analítico ou experimental. Ele saiu com uma alma livre. Livre para misturar experiências, sentimentos e, principalmente, é o resultado de uma liberdade criativa amparada por um tutor de grande consciência sonora.


Fechando o escopo do álbum vem a parte visual. Assinada por Laura Fragoso, a arte de capa não poderia ser mais literal. Semelhante ao conceito da capa de Outside Voices, EP de K.Flay, por trazer Paula Raia dentro de um armário, a obra traz um misto de interpretações que vão do autoconhecimento, insegurança e intimidade. Contudo, pelo fato de a porta de tal armário estar aberta a ideia que se tem é de oxigenação, liberdade e coragem para enfrentar mudanças. Tais tópicos, somados ao entorno bucólico que preenche o plano de fundo, completam a comunicação da fotografia. Viver e enfrentar as adversidades do imprevisível, mas sem deixar de lado a essência, a origem. Sem esquecer quem se é e de onde veio.


Lançado em 10 de junho de 2022 via Toca Discos, é um álbum em que a melodia e a harmonia constroem, com um minimalismo contagiante, uma grandiosidade rítmica cuja beleza é estonteante. Um trabalho que lança, nas mãos da emancipação artística, um nome que promete engrandecer a nova cena MPB. Esse nome é Paula Raia.

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Sobre o crítico musical

Diego Pinheiro

Quase que despretensiosamente, começou a escrever críticas sobre músicas. 


Apaixonado e estudioso do Rock, transita pelos diversos gêneros musicais com muita versatilidade.


Requisitado por grandes gravadoras como Warner Music, Som Livre e Sony Music, Diego Pinheiro também iniciou carreira internacional escrevendo sobre bandas estrangeiras.