NOTA DO CRÍTICO
Formado em 2017 na capital pernambucana, o quinteto Bule, após cinco anos do lançamento de seu álbum de estreia, anuncia um novo material. Intitulado Dançando Sem Ninguém Me Ouvir, o disco de estúdio sucede Cabe Mais Ainda, primeiro produto cheio do grupo.
Alegre, dançante, ensolarada e bem marcada, a paisagem que se apresenta vem na perfeita silhueta do synth-pop. Puxada por uma bateria de levada simples, mas que, com o comando de Kildare surge com notável leveza e curiosa precisão na cadência rítmica, a melodia, por mais que traga o sintetizador em evidência, tem no dulçor, delicadeza e veludo da voz de Pedro Lião seu principal chamariz. Entre aromas transcendentais e ambiências típicas de um rock nacional oitentista graças ao timbre do riff da guitarra de Carlos Filizola, Canção De Amor é uma carta de amor que, surpreendentemente, dialoga com o luto e a dura relação do personagem com a perda e a saudade. O sofrimento e a dor são muito bem ofuscados por um medicamento sonoro que soa como a morfina do coração, um medicamento chamado sintetizador. Afinal, ele ao menos tenta afastar o teor lascivo de um choro interno e de pontadas cortantes que só o inconsciente consegue sentir. Canção De Amor é, portanto, uma quebra de paradigmas e a fuga do senso comum das músicas romanceadas.
Atrás das montanhas o que vem é, agora, uma new wave setentista que bebe da influência do A-Ha. Entre as cores em tons pastéis que iluminam a paisagem, o ouvinte consegue, inclusive, degustar do groove encorpado, mas sutil do baixo de Bernardo Coimbra na base rítmica. Com sua maciez estonteante, o instrumento conquista um notável e inegável protagonismo durante os versos de ar, momentos em que Lião vem ainda mais agridoce que na canção anterior. Vinte E Muitos Anos é uma canção de teor alegre e cativante que aparenta ser outra canção de amor padrão, porém, assim como Canção De Amor, ela surpreende por conter uma melancolia nostálgica quase cortante por abraçar uma saudade incurável. Aqui, o Bule novamente dialoga sobre luto de maneira doce e serena. Com pureza, bondade e generosidade, são reveladas as vontades, os desejos e os planos organizados, mas não há tempo executados. Vinte E Muitos Anos é, portanto, uma música que promove tanto ao ouvinte quanto ao personagem lírico a possibilidade de dançar novamente com a pessoa que partiu, mas não em tom de tristeza e despedida e, sim, de veneração e gratidão pela oportunidade de compartilharem experiências.
O teor é de uma mistura ácido-transcendental. Macia em sua continuação new wave, a canção é regida por uma linearidade melódica cativante em que a bateria define a cadência rítmica, mas é o sintetizador quem dita as regras estéticas. Coisa De Cinema traz um indivíduo duelando entre a superação e a inconsciente necessidade de se manter na zona de conforto do sofrimento como forme de ainda se sentir em contato com a pessoa que partiu. Nesse aspecto, parece até o mesmo enredo de Vinte E Muitos Anos, mas em Coisa De Cinema, o personagem se percebe em um limbo em que não se enxerga mais saída ou cor em qualquer tipo de amanhecer. É como se o sofrimento fosse tanto que incitasse um senso de loucura no indivíduo, o retirando da realidade como um escape desesperado da dor e do sofrimento.
Uma interessante mistura de new wave, indie rock e synth-pop se apresenta na nova roupagem. Entre um reconfortante senso de melancolia e uma generosa dose de torpor, a melodia caminha entre sonares azedos que criam uma textura capaz de romper com o dulçor morfinesco da introdução. Promovendo cenários em que uma luminosidade de calor ameno aquece o gélido gramado, Tudo Pra Mim acompanha novamente o personagem lidando com o luto. Aqui, porém, ele encontra no diálogo sobre o ente falecido a possibilidade de superar a perda. Ainda assim, mesmo que o carinho, a admiração e a gratidão sejam ingredientes evidentes, em Tudo Pra Mim existe uma pincelada de culpa e remorso pelos eventuais conflitos do relacionamento não terem sido resolvidos há tempo. E assim, fica a saudade e um coração pulsante precisando extravasar, de alguma forma, que mesmo nos momentos conflitantes o amor sempre esteve aceso.
Apesar de o seu despertar trazer claras noções de synth-pop, a ambiência já se mostra com silhuetas embrionariamente tocantes, já comunicando um contexto sentimental. Concretizando esse cenário a partir de uma cabisbaixa sincronia entre baixo e bateria, a canção apresenta um Lião de voz metálica e uma melodia confortavelmente embebida em um swing atraente. Tendo a inserção do singelo chacoalhar do caxixi como elemento a, a partir de Damba, contribuir para diferentes texturas melódicas, Se Você Se For parece ser a primeira canção de Dançando Sem Ninguém Me Ouvir a não dialogar sobre o luto. Trazendo o sonho como cenário, a canção propõe refletir sobre o autoconhecimento, sobre contato com o outro de uma maneira mais espiritualizada. Acima de tudo, Se Você Se For mostra o sonho como elemento auxiliador na compreensão das lacunas emocionais do indivíduo, que, na canção, está exposto à dependência emocional e à insegurança.
De introdução dissincrônica, a canção logo evolui para um primeiro verso macio, mas de essência embriagantemente cambaleante. Com um sonar marcante e penetrante vindo do sintetizador, a canção tem um refrão contagiante e de uma alegria embrionária que chama a atenção por seu singelo brilho swingado. De base pop. Eramos Dois apresenta um personagem lidando não com a perda de alguém para a morte, mas do rompimento de um relacionamento em vida. Dialogando entre remorsos, culpas, inseguranças e memórias não vividas, a canção apenas evidencia uma das formas de se lidar com a separação. Ainda trazendo um recorte de superação e de melhoria comportamental como forma de consertar os erros de um passado não distante, Eramos Dois é a constante reciclagem de vivências e sentimentos de um capítulo na história de um personagem na arte do saber viver.
Entre repentes de um tímido trap misturado com a essência do pop e pinceladas de chiptune, a nova canção surge contagiante e linear em meio a uma narrativa de uma postura quase prostrada. Encontrando redenção em um refrão de harmonia singela, mas cativante, Ainda É Verdade prende o ouvinte em seu enredo cuja melodia também possui esquinas de indie rock. Tratando da desvalorização de momentos que parecem banais, bem como a culpa por esse comportamento, Ainda É Verdade traz um personagem de coração dissecado em sinceridade, honestidade e generosidade em admitir sua carência e seu ego em não admitir gostar de determinadas experiências. E quando não se tem mais como experienciar certas vivências é o momento em que o coração se despedaça e o orgulho vai ao chão. Não à toa que Ainda É Verdade soa como um desesperado pedido de retorno para, assim como aconteceu em Eramos Dois, tentar reatar uma história de amor.
Ela começa ácida e hipnótica, mas logo evolui para algo macio em sua roupagem mista de synth-pop e indie rock. Swingada e com movimentos líricos penetrantes, a canção tem um aroma ensolarado e praiano que surpreendem em meio aos diálogos incessantes de perda e luto. Pensando Em Você é a primeira faixa verdadeiramente romântica de Dançando Sem Ninguém Me Ouvir, mas como uma marca dos enredos do álbum é nunca ser tão perfeito, a música traz um casal que vive longe um do outro. Conviver com a saudade, a vontade de se ver e o empecilho da distância são fatores que marcam o enredo e cativam o ouvinte. Nesse processo, o verso “será que o tempo passou tão devagar aí?” define bem a história de Pensando Em Você.
Macia, ácida e melancólica, a nova introdução beira o psicodélico enquanto o personagem volta a lidar com o luto. No entanto, de todas as faixas do álbum que tratam do tema, Dormindo é a mais intensa, marcante e até mesmo mórbida. Afinal, na canção o indivíduo convive tanto com a negação do fato inevitável quanto da vontade de postegar superação da dor da perda. E nesse diálogo, o Bule surpreende por trazer uma melodia cativante e tocante em sua forma indie rock. Não assusta que os versos questionadores “você tá aí ainda?” e “pra onde você tá indo?” ressoam na mente do ouvinte como perguntas de uma curiosidade mórbida misturado com a necessidade da presença da pessoa em questão. A saudade, outro grande mote do trabalho do quinteto, vem como definidor desse enredo tão teimoso.
É doce, é suave, mas também generosamente melancólica. Enquanto o sintetizador vem com esse viés entristecido que curiosamente se assemelha com a estética sonora do Roupa Nova, a bateria vem educada em sua maciez, ganhando gradativamente seu espaço no desenho rítmico. Misturando torpor e dramaticidade em uma ambiência melódica setentista, Era Muito Mais Pra Mim guarda um refrão gelidamente dançante e um lirismo constantemente em tom de súplica. Em uma canção em que o personagem pede pelo flagelo para se punir da incessante sensação de culpa, o término de um relacionamento, a negação e a dor são eventos que chegam, a humanizar o lascivo caminhar do enredo.
Com uma melodia introdutória intensamente dramática capaz de recriar a energia contida no amanhecer de Talking To The Moon, single de Bruno Mars, a presente canção possui uma mistura de torpor, psicodelia, hipnotismo e uma nostalgia autoflagelante. Entre belos falsetes e uma contagiante transformação melódica, Som E Imagem é um material indie rock que dialoga sobre a saudade, a dor do término e a descrença no amor. Uma sensação de solidão e dor lancinante tão profunda que faz com que o personagem só desejasse, e acima de tudo precisasse, de um abraço acolhedor e compassivo para lidar com o luto e superar, no seu devido tempo, a doença do coração.
Sua paisagem é inteiramente cinza, de céu chuvoso e de chão lameado. Seus olhos estão constantemente vagos, como se enxergasse milhares de imagens diferentes em fração de milésimos de segundos e não o horizonte físico. É como se o coração gritasse, chorasse, se contorcesse e encolhesse de dor. Dançando Sem Ninguém Me Ouvir é uma obra tão melancólica que chega a beirar o mórbido.
Contagiando o ouvinte em sua visceral tristeza, o álbum apresenta a capacidade da Bule em dissecar a dor em suas diversas camadas, de maneira que o coração ficasse completamente desprotegido. E essa dor está associada às diferentes vivências do luto. Um luto pelo fim do relacionamento e pelo fim da convivência, e um luto no sentido literal da palavra.
Durante esses diálogos, os personagens líricos de Dançando Sem Ninguém Me Ouvir enfrentam a negação, a rejeição, a decepção, o desolamento, a saudade e, principalmente, a culpa, a sensação mais cortante cuja cura é lenta. Com psicológicos evidentemente abalados, os indivíduos tentam, às suas maneiras, entender e conviver para, depois, superar a dor.
Para criar uma ambiência que representasse cada um dos devaneios do sofrimento, o Bule deu a Filizola a confiança para que ele inclusive realizasse o papel de engenheiro de mixagem. Na função, o também músico conseguiu destacar o torpor e a melancolia ao mesmo tempo em que deixou que o álbum transpirasse psicodelia em meio a uma mistura rítmica que engloba indie rock, indie pop, synth-pop, new wave, trap e chiptune.
Encerrando a parte técnica, vem a arte de capa. Assinada por Humbz Beltrão, ela é de uma estética simples, mas profundamente em sintonia tanto com o viés melódico quanto lírico do álbum. Enquanto seu fundo preto representa o luto, a forma como o nome ‘bule’ foi desenhado recria os tempos de brilhantina, o que representa o ar dançante que preenche o material.
Lançado em 30 de junho de 2023 via Toca Discos, Dançando Sem Ninguém Me Ouvir é uma dança fúnebre entre o luto da morte, da convivência e do término. É a psicodelia da rejeição, da dor e da descrença no amor. É uma mente solitária gritando e suplicando por um abraço reconfortante cuja compaixão vem acompanhada da cega, mas desejada, capacidade de curar a culpa.