Joana Castanheira - Desapareço

NOTA DO CRÍTICO
Nota do Público 4 (2 Votos)

Ela foi capturada pelo palco ainda criança. Maturada como vocação, a paixão por música chegou a levar a cantora catarinense Joana Castanheira à edição de 2016 do reality show The Voice Brasil. Com projeção nacional a partir dali, a também figurinista, atriz e dançarina, lançou outros dois discos de estúdio e dois EPs de estúdio. Hoje, Joana apresenta Desapareço, seu terceiro álbum em trajetória autoral.


Os pelos de todo o corpo chegam a até se arrepiar ao primeiro contato com o timbre de Joana Castanheira, soando como um ser onipresente em um ambiente ainda escuro. Agudo, com traços de veludo e pronúncia tremulante, ele possui a mesma veia daquele de Elis Regina, fazendo parecer, em alguns momentos, sair da boca da própria artista saudosa. Com o passar do tempo, a agudez levemente adocicada e estridente tomam contornos próprios, conforme o violoncelo de Riccieri Paludo vai pedindo licença com suas tímidas e pontuais notas graves. O curioso, ao perceber o emprego do instrumento na composição, é que ele não transforma o ambiente em algo dramático, choroso ou visceral. Ele entrega texturas delicadas e, educadamente, deixa o brilho para a catarinense. Tendo na cadência vocal de Joana a delimitação rítmica, Cantar, com sua estrutura minimalista, comunica ao ouvinte o que o ato do canto significa à Joana. É a verdade, é a prece, é a poesia. É terapia, é magia, é proteção. É a essência de um indivíduo sensível que, simples e honestamente, se usa da arte para se expressar.


Do lado de fora da janela do quarto, o céu é cinza e o horizonte, nebuloso. A chuva cai como um véu, fina e, ao mesmo tempo, traiçoeira em sua delicadeza melancólica. O frio nem é o elemento que espanta, mas sim os pesares, as decepções e os arrependimentos que a ausência de luz traz na vida do outro. Essa é a paisagem que o violão de Arthur Boscato oferece a partir de sua cabisbaixa e quase fúnebre melodia introdutória. A dramaticidade e o lancinante se fundem ao sonar das notas gélidas do piano de Derli Júnior, que amplificam, sem pudor, a tristeza, e a tornam, curiosamente, uma espécie de torpor dolorosamente reconfortante. Assim que o violoncelo entra em cena, o choro é sonorizado, e aquele personagem que outrora apenas se apoiava na janela, agora dá liberdade à sua dor, por meio de lágrimas que escorrem como um rio sem curso por um seio da face contraído e estático. A bateria de Rafael Nogueira se apresenta como um elemento de racionalidade que tira o protagonista do abstracionismo mental e o traz novamente ao presente, ao estado tátil. Ainda que delicada em sua maciez valsante, a bateria é, também, quem dita o ritmo e quem comunica a influência da MPB sob ligeiros toques flamencos. Caso Quebrado é uma canção que, entre os rugidos encorpados do baixo de João Peters e o coro a três vozes em seu tom sutilmente enlouquecedor, traz a história de uma dançarina entregue às mãos da morte de forma a oferecer, a partir do lirismo, ter optado conscientemente pelo suicídio. É aí que o narrador onipresente se espanta em não ter percebido os sinais de algo não ia bem. Afinal, por trás da normalidade, o emocional pode estar em um verdadeiro caos explosivo e incontrolável.


O rugido da guitarra em efeito lap steel, por frações de segundo, trazia o folk em sua raiz mais primária. Porém, o que dali se formou foi um amaciado e contagiante bolero de bases blues que, apesar de oferecer uma degustação mais fácil, continua, mesmo que em quantidades cavalarmente menores, com toques dramáticos. Surpreendentemente, Joana surge com um potente canto espanhol. Capaz de ser sensual, Átame é uma canção que narra um relacionamento em seu estado de término iminente, mas que, ao invés de causar sofrimento, traz benefícios à protagonista, que enfim se vê livre de uma alma tempestuosa e de essência deprimida. A liberdade do sofrimento como forma de fazer o outro valorizar a beleza que, um dia, teve em sua companhia.


Ela é doce, mas ainda mantendo uma veia dramática. A forma como o piano e o violoncelo se combinam proporciona um cenário melancólico-nostálgico, tendo o protagonista sentado à beira de um lago com os pensamentos e olhares distantes, como se apenas seu corpo estivesse de fato consciente. Surpreendentemente, como se fosse capturado de forma súbita, o ouvinte se arrepia e seus olhos marejam ao presenciar a doçura e a delicadeza com que o timbre de Paulo Novaes pede licença para dividir o enredo de Ferida Aberta. Como uma canção que apresenta os sentimentos vindos dos dois lados de um relacionamento, ela é o verdadeiro oposto de Átame, afinal, enquanto na primeira existe uma felicidade festiva pelo fato de estar solteira e livre, na segunda existe ressentimento, existe saudade e, ainda, existe amor, deixando a distância ainda mais dolorosa para um coração cujas feridas ainda não cicatrizaram.


O piano vai e vem com suas notas gélidas em um movimento que consegue até mesmo ser hipnótico. Pelo sobrevoo grave, mas distante de seu estado lacrimal, o violoncelo consegue reproduzir, com sua melodia, leves traços de imponência e confiança, por mais que, no fundo, existam ainda resquícios de dor. Readquirindo uma alma boleiresca, Jardim é uma canção com chiados trazidos pela bateria que, despropositadamente, ainda insere toques de lo-fi em seu enredo que captura a forma como a personagem encontrou de lutar para aprender a lidar com a solidão.


Tocante e melodramática, a fusão do piano com o violoncelo faz o coração se apertar e ficar com seus olhos marejados, mas sem a força necessária para chorar. Com uma cadência lírica que incorpora a estética vocal do sertanejo, Joana surge como uma narradora consciente de sua própria situação emocional melancólica e nostálgica. Quando chega o refrão, outra voz entra em cena fazendo um dueto agridoce com a catarinense. É Gabeu deixando a atmosfera ainda mais sentimental ao passo que vai assumindo protagonismo na segunda metade de Impressão Digital e deixando o ouvinte degustar mais facilmente seu timbre grave-nasal. É assim que a canção fornece um enredo sobre um relacionamento que não deu certo, mas que foi palco de insistentes tentativas de funcionar. Impressão Digital é a pura nostalgia de um recorte temporal sem meios de ser reexperienciado.


O ambiente é tomado pela escuridão. Do cômodo, não se enxerga um móvel sequer. Por meio de uma luz lunar entrando pelas frestas da janela, o que se nota é a silhueta da mobília, realçando a sobra de um indivíduo encolhido no canto do ambiente. Seus pensamentos se encontram frenéticos, indo e vindo, em uma velocidade superior à da luz. Enquanto isso, seus olhos, completamente fechados, não conseguem conter a barragem lacrimal que se forma ao comando do pulsar do coração. Esse é o ambiente que as notas graves e gélidas do piano, em uma melodia de nítida influência de Moonlight Sonata, composição de Ludwig van Beethoven, oferecem ao ouvinte. Em uma estrutura minimalista, mas visceral, Por Tudo Exposto traz uma Joana em interpretação quase teatral pela sua entrega dilacerante que expõe a culpa latente que sente por não ter agido diferente e, a partir disso, ter afastado aquele por quem amou.


Sensual e delicada, a canção já amanhece com um maduro bolero que, recheado de batuques percussivos vindos do atabaque e do bongô interpretados por Alexandre Damaria, encarna um ar latino embriagante. Eis que após uma breve valsa adocicada proporcionada por Joana, os ouvidos do espectador se atentam a um timbre grave que divide o cenário lírico. É David Toledo entregando um sabor ainda mais romântico a Soneto De Amor Puro E Simples, uma canção que mostra que, mesmo após tantos anos distantes, o amor e o desejo superam e vencem o tempo.  


Mantendo a sensualidade, mas sem o caráter propriamente sexual, a faixa-título nasce como um dançante e levemente alegre bolero que tem, assim como em Soneto De Amor Puro E Simples, a percussão como elemento a abrilhantar o ritmo. O baixo, por sua vez, vem igualmente marcante com seu corpo bojudo e consciente por meio de uma base linear. É assim que a faixa-título traz um personagem que busca perdão na ânsia de reconquistar um amor agora imbuído em rancor e desprezo. Uma obra que simplesmente se ajoelha aos pés daquele por quem se ama e pede uma segunda chance de ser a morada de um coração enrijecido.


Doce, valsante e fresca. A melodia da canção traz uma MPB minimalista criada, somente, pela união de voz e violão. Conseguindo ser delicadamente atraente, Meu Amor tem uma capacidade firme, mas breve, de se assemelhar ligeiramente com a melodia de Como Nossos Pais, single de Elis Regina, enquanto narra um súbito de consciência por parte do protagonista. E é esse súbito de lucidez que o faz compreender não estar feliz com o presente, com a vida que leva ao lado de outro alguém. Ainda assim, existe um romantismo dentro da separação, pois a querência do bem do outro é uma prova de altruísmo que supera o presente e pode se manter por diversas outras vidas. O reencontro será inevitável.


Como uma trilha sonora para os créditos finais que vão passando em frente à tela, Boscato fornece ao ouvinte apenas o recorte instrumental de Meu Amor. Acompanhado somente de seu próprio assobio, o músico torna a sonoridade marcante e até mesmo chiclete, enquanto o ouvinte se delicia com a calmaria estonteante de um teletransporte a uma praia de céu poente e brisa fresca.


É curioso notar a percepção e a relação de cada um com o amor, com a vida e o bem-estar do coração. Nesse sentido, Joana Castanheira não apenas se disseca, mas consegue ter uma grande profundidade em fazer de Desapareço um mergulho em suas próprias relações interpessoais e expansivas.


Essa foi, inclusive, a estratégia da catarinense em lidar com seus ambientes emocionais profundos e quase inacessíveis. Em cada canção, é como se uma barreira de seus medos fosse rompida e ela conseguisse extravasar o que estava represado. De uma sutil entrelinha de dependência amorosa, Joana mostra um senso desmedido de emancipação e individualidade enquanto ainda sente falta de uma espécie de âncora que lhe dê proteção e apoio.


Pode até ser uma válvula de escape, uma medida para fazer de sua aparência, algo que mostre imponência, confiança, persistência e determinação. Em verdade, porém, Desapareço acaba a apresentando como uma alma romântica e inconscientemente sedenta por uma companhia verdadeira, honesta, recíproca. Um amor incondicional para o além-vida.


Para conseguir expressar todas essas emoções e esconder essas fragilidades que aos olhos dos outros não impõe julgamento, mas aos próprios, pode ser palco de desconforto, Joana recrutou Renato Pimentel para ser responsável pela mixagem. Na função, o profissional fez do álbum um material que sobressaísse o melancólico e o nostálgico, enquanto realçasse seu caráter romântico. A partir daí, priorizou o destaque de ritmos como MPB, bolero e sertanejo para que eles fossem capazes de guiar o ouvinte pelo caminhar do disco.


Fechando o escopo técnico, vem a arte de capa. Assinada por Janaína Morena e Tainá Bernard, ela traz Joana Castanheira em evidência e sob vestes de uma dançarina de flamenco. De olhar penetrante, mas de alma assustada, seu brilho não esconde a busca por um porto-seguro para ter para si.


Lançado em 18 de outubro de 2023 de maneira independente, Desapareço apresenta uma mulher com ânsia pela liberdade, pela independência e pela individualidade. Porém, essa mesma mulher esconde uma alma amorosa que, aos olhos dos outros, pode parecer frágil, mas em verdade apenas busca por alguém que lhe proporcione amor recíproco e incondicional.

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1 Comentários

Que coisa mais linda! <3

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Sobre o crítico musical

Diego Pinheiro

Quase que despretensiosamente, começou a escrever críticas sobre músicas. 


Apaixonado e estudioso do Rock, transita pelos diversos gêneros musicais com muita versatilidade.


Requisitado por grandes gravadoras como Warner Music, Som Livre e Sony Music, Diego Pinheiro também iniciou carreira internacional escrevendo sobre bandas estrangeiras.