Cardamomo - Meridiano

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Três anos após o anúncio de seu álbum de estreia, o trio porto-alegrense Cardamomo retoma a arte da produção de canções inéditas, que culminaram em um segundo capítulo de sua jornada musical. Intitulado Meridiano, o material é sucessor direto de Nada A Fazer e vem com a premissa de capturar a essência da banda.


A brisa que sobe do chão possui um aroma adocicadamente entorpecente. Sua acidez é branda e traz consigo uma espécie de melancolia aconchegante que chega a acariciar o ouvinte, que se vê embebido em um conforto misturado entre tristeza e nostalgia. Apesar das frases suavemente sincopadas da bateria de Guilherme Boll, é a guitarra de Marcelo Henkin que dá a devida textura à canção. Enquanto o baixo de Joni Oliveira vai conquistando seu espaço com um tímido corpo, Woo Pt. 2 vai assumindo ares sinistros durante as pontes entre os versos. Misturando um embrionário doom metal com stoner rock, a faixa passa a transformar a paisagem em algo nebuloso e ligeiramente caótico. Surpreendente, ainda, Woo Pt. 2 recebe um sonar adocicado e gélido do sintetizador que deixa a canção com um sutil aroma céltico, transformando por completo toda a ambiência sensorial até seu encerramento absoluto.


A chuva cai do lado de fora do quarto como um véu. Esse véu, porém, não vem acompanhado do frio, de um céu cinza e de um estado entorpecidamente melancólico. Ele vem, sim, fresco e com teores levemente nostálgicos pelas frestas de luz solar que rompem as fracas camadas de nuvem. Eis então que a paisagem de Acelerado se torna bela em seu estado monocromático, mas de convite às memórias calorosas, como se fosse uma proposta de readquirir a felicidade e a gratidão pela vida. Isso só é capaz por conta da afinação da guitarra e pela sincronia dos músicos, que deram a esse ambiente a perfeita trilha sonora de um indie rock noventista. Ao ser banhada por uma linearidade quase hipnótica, Acelerado acaba, inevitavelmente, transpirando uma essência melancólica e, até mesmo, psicodélica, enquanto parece dar uma freada na leve aceleração rítmica para encarnar um embrionário MPB como forma de recuperar a calma e a serenidade.


Com um rompante encorpado, o baixo puxa o frescor, puxa o Sol e puxa a brisa do mar. Ainda que embebida em uma dissonância melódica e de veia suja, o novo ambiente propõe uma fusão entre o rock alternativo e o indie rock enquanto, curiosamente, apresenta um personagem de exterioridade plena, mas de interior perdido em profundo estado de calamidade. Na iminência de se libertar de algo que não consegue nem verbalizar, o indivíduo de Cavalo deseja correr para um horizonte sem fim e sem ter que parar. É como a consciência tentando, a todo custo, escapar dos impulsos canibalescos e traiçoeiros do inconsciente. Felizmente, até mesmo pela evolução branda da canção, o personagem parece ter conquistado seu objetivo e, portanto, encontrado a chave de seu autoconhecimento.


A melancolia volta com força e trazendo um cenário de solidão. Aqui, o personagem se encontra vagando, sem curso certo, por uma estrada sem movimento. Ainda que sua mente esteja longe da realidade, viajando por entre os compartimentos profundos da memória, o corpo sente o clima externo. Apesar de nublado, o céu não consegue barrar a quentura, fazendo a nuca e a testa do andarilho transpirarem em largas gotas que caminham livremente pelo corpo. Se mantendo respaldado em linearidade, Mormaço não tem drama ou qualquer tipo de sofrimento carnal, apenas o da memória. Entre rompantes de um despropositado e embrionário pop punk, a canção propõe lapsos de uma consciência rebelde, mas que se mantém privada de uma explosão em prol da tranquilidade. É então que o ouvinte se surpreende ao sonar de uma valsa delicadamente chorosa vinda do violino de Miriã Moreira Farias como forma de representar as lágrimas que representam a raiva, mas também a dor, em um completo estado de conflito emocional que é vencido pelo perdão.


É como o se desprender do toque da pessoa amada e vê-la se distanciar vagarosamente rumo ao horizonte. Não que a melodia tenha uma essência puramente romântica, mas ela consegue evocar carinho e um senso de separação recíproca como forma de manter a chama do amor acesa. A partir dos sonares gélidos e artificiais vindos do sintetizador de Viridiana, Farol é como o se apoiar na certeza de que, no mais profundo horizonte, a primeira luz do amanhecer e o último brilho do luar trazem consigo os ventos da paixão incondicional, de um amor eterno. Não à toa que a canção, apesar de seu nome, soa de fato como um farol onde é possível acessar as memórias afetivas que, de tão agradáveis, levam o personagem para um sono com gosto de reencontro e saudade.


Com uma espécie de rock alternativo com base na new wave, de forma a recriar aquela mesma estética adotada pelo Måneskin, a melodia consegue misturar o caos e a dissonância com repentes de contágio. Conseguindo ainda ter a capacidade de instigar o ouvinte a dançar, graças à levada da bateria, Fractal tem um gosto ácido-psicodélico, além de ter, assim como Farol, um elemento que surpreende o ouvinte. Vindo do comando de Ricardo Masutti, o saxofone não surge aos sopros estridentes e abertos como no soul ou mesmo no blues. Ele vem ampliar a melancolia quase dilacerante que é transpirada das camadas sonoras de Fractal No mais, existem, ainda, sopros de uma flauta gélida em estado de início de esquizofrenia que torna a canção uma obra cuidadosamente desconfortável, hipnótica, entorpecente e lancinante. 


Ela nasce macia e confortavelmente contagiante, ainda que em sua essência exista generoso deleite melancólico. Ainda assim, Yashin é como o despertar da mente em um conflito alucinante a partir de sua mistura indie rock com pitadas de stoner. Por meio de um baixo gordo com sutis notas estridentes, a canção consegue promover o movimento entre o torpor e o caos do inconsciente com notável versatilidade. Não à toa que Yashin possui um verso de extrema delicadeza e melodia que soa como o raiar do sol com uma tonalidade que transmite esperança, mesmo que se esforçando para ser vista em meio a um céu enegrecido.


A bateria de golpes estridentes vem como se estivesse puxando uma marcha fúnebre, impressão que até mesmo a melodia da guitarra ajuda a construir. Melancólica, Sem Chão é, tal qual em Mormaço, como estar acompanhando um andarilho, que aqui se encontra perdido na imensidão da paisagem urbana. Sua pose cabisbaixa e olhares distantes não conseguem esconder o turbilhão de pensamentos conflitantes que transpiram de sua mente, mas não conseguem minar seus passos rumo a lugar nenhum.


Ao lado da guitarra triste e lancinante, um chiado de textura de barulho branco insere, na receita melódica, o lo-fi. É assim que, olhando, sentado na mureta e com os pés nus na areia, o mar se encolhendo com a chegada do anoitecer, os pensamentos tomados por ideias negativistas e agressivas somem de súbito quando um senso de consciência e gratidão passa a dominar o estado de espírito do personagem de Segundos Antes De Se Dar Conta. É nesse instante que os olhos marejam e as lágrimas brotam sem controle, banhando o seio da face rígido de tamanho arrependimento perante as ideias tidas anteriormente. É como a valorização da vida, daquilo que se tem e daquilo que não se tem. É a plenitude do prazer em saber que o ato de viver é mais rico do que a desistência do mesmo.


Com uma guitarra mole e hipnótica junto de um baixo de notas ecoantes, gordas e estridentes, a canção tem um amanhecer místico. Reintroduzindo sutilezas de doom metal junto ao rock alternativo ainda adormecido, Esteróides Anabolizantes se matura como uma paisagem sintética de torpor. Ainda assim, uma tímida, mas, ao mesmo tempo, marcante frase de teor hard rock, dá vasão para um ambiente caótico e embebido nas mais puras acidez e estridência que, curiosamente, é capaz de introduzir a psicodelia ao caos viril e esquizofrênico. 


É difícil produzir um álbum em que as ideias sejam transmitidas de maneira integral a partir da conjuntura de elementos que compõem a música. Mais difícil ainda é, quando não existe o elo lírico entre ouvinte e melodia, fazer o mesmo feito. Porém, o Cardamomo provou, com Meridiano, ser capaz de executar essa tarefa. 


Com frases melódicas não verbalizadas, mas capazes de formarem diálogos mudos na mente do ouvinte, o álbum sugere um mergulho na mais profunda melancolia enquanto explora as texturas que extravasem certo senso de torpor e tristeza. Nesse movimento, não é incomum o espectador se perceber em contato com pensamentos conflitantes que sugerem um princípio de ausência de consciência.


O curioso, a partir dessa constatação, é notar que muitos dos personagens abordados nas canções se veem imersos em solidão e em um estado de busca por sanidade não apenas mental, mas também emocional. E eles, por meio de uma grande sabedoria de storytelling musical do Cardamomo, conseguem criar fortes laços com o ouvinte, que por vezes se compadecem pelo sofrimento alheio e, outras, ainda, assumem a dor para si.


Por ser um álbum inteiramente instrumental, além da capacidade do trio em contar histórias lineares somente a partir do som, existe a necessidade de promover uma parceria com um profissional competente na arte da mixagem. Leo Braga, recrutado para tal função, conseguiu ressaltar a melancolia e o estado de profundo torpor alucinante proposto pelo trio com uma mistura de rock alternativo, indie rock, new wave, stoner rock, lo-fi, doom metal, hard rock e generosas bases psicodélicas. 


Fechando o escopo técnico, vem a arte de capa. Assinada por Frances Rocha, ela traz os três integrantes em evidência e afrente de dois vagões de um trem de combustível. O céu acinzentado, as feições e a indumentária assumidas pelo Cardamomo representam bem o espírito melancólico do álbum, enquanto reforça a busca pela pureza da felicidade e bem-estar.


Lançado em 20 de outubro de 2023 de maneira independente, Meridiano é a busca pela consciência e pela gratidão, enquanto se afasta do negativismo e dos instintos canibalescos que consomem toda e qualquer ideia de superação. É a representação de uma mente conflitante em busca da sanidade.

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Sobre o crítico musical

Diego Pinheiro

Quase que despretensiosamente, começou a escrever críticas sobre músicas. 


Apaixonado e estudioso do Rock, transita pelos diversos gêneros musicais com muita versatilidade.


Requisitado por grandes gravadoras como Warner Music, Som Livre e Sony Music, Diego Pinheiro também iniciou carreira internacional escrevendo sobre bandas estrangeiras.