Besouro Mulher - Volto Amanhã

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Ela escolheu o primeiro mês do terceiro trimestre para se anunciar oficialmente ao mercado da música nacional. A banda Besouro Mulher se apresenta ao país e ao mundo, de maneira forma, com Volto Amanhã, seu disco de estreia idealizado durante o auge da pandemia e sucessor da adaptação de Torresmo, single feat. entre Arnaldo Antunes e Juliana Perdigão.
 
O som é seco, mas traz consigo um indie rock linearmente contagiante e curiosamente colorido em seu minimalismo estético. Enquanto o timbre adocicado e jovial de Sophia Chablau entra em cena, a bateria de Vitor Park mantém sua precisão cíclica, enquanto a guitarra de Bento Pestana, com seu riff agudo e seco, segue sendo o instrumento a colocar textura no ritmo da canção. Flertando também com o rock alternativo, Carótida consegue, de maneira curiosa, fazer o ouvinte rememorar toques melódicos do Green Day nessa que é uma faixa que apresenta um personagem aprendendo a lidar consigo mesmo. Além de entender seu lugar no mundo e perceber que, mesmo pertencente à multidão, ele é único, o indivíduo compreende até mesmo como seu corpo funciona em meio a devaneios reflexivos a respeito do grande universo que é a figura do eu.


Sophia surge solitária, mas com um ambiente totalmente por ela dominada. Com voz presente, forte e de cadência ligeiramente acelerada, ela dá passagem para uma levada melódica cuja estética mistura o rock alternativo com princípios pop punks tal como aconteceu em Carótida. A adaptação de Torresmo, um feat. entre Antunes e Juliana, é mais vivaz que sua versão original e traz rompantes bojudos e propositadamente pontuais do baixo de Arthur Merlino dando corpo e densidade à melodia. Contagiante e com uma energia como se fosse uma jam entre amigos, a nova roupagem dá mais significado a um enredo que, apesar da melodia alegre, traz uma reflexão profunda sobre submissão e a saudade de um passado não vivido. O remorso divide espaço com uma mente frágil que deseja simplesmente se reconectar consigo mesmo. O mais curioso de Torresmo, uma marca de Antunes, é a brincadeira com a fonética das palavras, cujos sons se repetem sem necessariamente surtirem em rimas.


O tilintar opaco e agudo das baquetas ressoa solitário como um maestro gesticulando o compasso rítmico de uma canção. Numa estrutura em 4x4, a melodia traz uma breve noção hipnótica vinda do som borbulhante do sintetizador de Dizzy. Enquanto um ruído ácido acompanha a melodia, Alguma Coisa amadurece como um torpor de veia melancólica que traz em uma pequena fração de tempo o pensar no outro. Porém, é exatamente nesse processo do lembrar do outro que o personagem entra em uma espécie de crise de consciência por achar que não possui diferencial em relação às outras pessoas, evidenciando sua baixa autoestima e rompantes de insegurança. Ainda assim, Alguma Coisa, com sua base melódica que rememora aquela de Hey Jude, single dos Beatles, traz consigo uma base romântica que representa a vontade de apenas elogiar a figura do par e enaltecer sua beleza.


Um indie rock sincopado de aroma sertanista cuja principal textura está na estridência na caixa. Essa é a definição que se tem logo na introdução, que entre sonares agudos, levemente borbulhantes e alucinógenos vindo do sintetizador, mantém com linearidade o teor psicodélico de grande corpo proveniente da desenvoltura do baixo. Pão Francês, com sua ambiência brisante e entorpecida, surpreende por trazer um humor simples, mas contagiante, na narrativa de um par franco-brasileiro de gostos díspares, mas com a intersecção no paladar. Pão Francês é, com seu vaivém de palavras francesas bem posicionadas, é o elo de duas pessoas de comportamentos diferentes regimentado por uma iguaria que, apesar do nome, nada tem de francesa.


De corpo R&B, mas veia jazz, a canção amanhece macia e com toques sutis de sensualidade promovida pelo rebolar do baixo e da jogada de quadril da bateria. Apesar de possuir um diálogo instrumental, Curto/Tempo é uma faixa de versos verbais pequenos, mas que tornam a canção uma obra doce e romântica em seu minimalismo dialogal.


Contagiante em seu violão de movimento levemente acelerado, Vamos Indo, com seu minimalismo estético, traz consigo uma ambiência MPB que recria o sabor melódico exaltado por nomes como Cássia Eller e Nando Reis, sendo este último devendo especial menção ao seu single No Recreio. De clima descontraído, leve, espontâneo e cheio de coloquialismos, Vamos Indo, apesar de sua simplicidade, parece abordar a capacidade de desconexão do ambiente digital para viver algo real. 


Um aroma nordestino, com agressividade manguebeat, traços de xaxado e uma familiaridade com a sonoridade de Chico Science são os ingredientes que exalam desde o despertar introdutório. Completado pela guitarra elétrica, coro com estética de cântico candomblezeiro, a cadência intensa de elementos percussivos e o soprar agudo-estridente do saxofone de João Barisbe, Música 7 é talvez aquela de textura mais saborosa de Volto Amanhã. O interessante é notar a forma como a Besouro Mulher criou uma ambiência ácida e caótica que sintetizou de maneira perfeita o enredo que critica a hipocrisia da fé e um hipnotismo religioso que supostamente dá o direito do julgamento alheio.


Macia, mas de energia levemente sombria, a introdução faz a canção amadurecer para um ambiente estranhamente romanceado e entorpecido em uma ardente melancolia. Pele, com sua estética propositadamente incômoda, traz uma narrativa cujo ponto principal é o peso da culpa e a necessidade lancinante de perdão.


De ambiência curiosamente nauseante e embriagante, a introdução apresenta um dueto agridoce entre Sophia e Park que introduz noções de maciez ao cenário. Amadurecendo na forma de um blues comportado e de veia ligeiramente melancólica, Dia Útil tem rompantes harmônicos crescentes que soam como a construção de uma paisagem primaveril representando os momentos de felicidade do personagem. Porém, quando se garante entristecido, a mesma coisa acontece com a melodia, que assume uma postura cabisbaixa em um diálogo sobre um romance de momento, puramente carnal e descartável. Ganhando silhuetas dramáticas através do sonar grave e melancólico do contrabaixo, Dia Útil ainda consegue dissecar a insegurança de um indivíduo de alma pura que busca somente pela reciprocidade do amor.


O violino faz um amanhecer dramático que flui para uma cadência melancólica e levemente acelerada desenhada por uma bateria que, ao lado da guitarra valsante, recria a energia proeminente de Somos Quem Podemos Ser, single do Engenheiros do Hawaii. De cerne pungente graças à dança sincrônica, chorosa e surpreendentemente adocicada entre a viola de Fábio Tagliaferri e o contrabaixo, Seus Vazios é uma faixa em que o personagem lida com seus medos e inseguranças perante a imprevisibilidade da paixão, que assim como o destino e o tempo, é incontrolável e pode suceder em diferentes caminhos. Ainda assim, a faixa guarda um rompante de coragem na entrega para outro alguém, no depósito da confiança e da chance em vivenciar o novo. 


Ele tem um gosto jovial. Fresco e surpreendentemente delicado em suas esquinas harmônicas, Volto Amanhã é um trabalho que acompanha, gentil e educadamente, um personagem caminhando pelas experiências da vida. Da culpa, passando pela insegurança e o menosprezo, chegando à coragem de se entregar a outro alguém.


O disco, por meio de suas texturas múltiplas, é como um grande dissecar da faixa Dia Útil. Afinal, o álbum é inteiramente dividido entre faixas macias, comoventes e contagiantes com outras mais introspectivas, reflexivas e até mesmo melancólicas. Por isso, não há surpresa entre os saltos de torpor e energia que dele transpiram.


Esse vaivém emocional soa como a descoberta de si em um momento que pede maturidade, coragem e imponência para se perceber nos períodos regidos pela máxima imprevisibilidade. Afinal, são nesses recortes temporais que lidamos com medos, inseguranças, expectativas e inesperados sensos de frenesi motivados pela figura enigmática do novo. 


E em Volto Amanhã, o Besouro Mulher propõe não só o pensar sobre si, mas também o pensar sobre a vida ao discutir autovalorização a partir do senso de individualidade. No mais, o álbum se aprofunda em questões tais como a hipocrisia religiosa, a convivência com a culpa e a percepção da necessidade da reciprocidade do amor como forma de se sentir querido.


Essa amplitude de contextos, viagens e sensações foi bem capturada pela produção a quatro mãos de Diego Vargas, Guilherme Cunha, Felipe ‘Fepa’ Martins e Pedro Marques, que ressaltaram a delicadeza, o frescor e o mergulhar no inconsciente rumo a autodescoberta. Além disso, o quarteto frisou bem o timbre de Sophia, cuja sutileza muito rememora aquele de Mallu Magalhães.


Desenhado como recortes de poemas que desencadeiam em diferentes interpretações, Volto Amanhã possui uma caminhada estética ampla. Sob o comando de Martins na mixagem, o disco convida o ouvinte a transitar entre o torpor, o ácido, o pungente e o contagiante a partir de gêneros musicais como indie rock, blues, MPB, pop punk, R&B, jazz, manguebeat e xaxado.


Fechando o escopo técnico do álbum, vem a arte de capa. Assinada por Gabriel Dantas, ela traz a fotografia dos integrantes do Besouro Mulher, em tom de sépia, caminhando. Apenas por esses fatores, o ouvinte já tem a percepção do movimento e da intenção da representação temporal, detalhe inclusive percebido pela superexposição que deixa a captura de certos pontos da imagem tremida. Não à toa que Volto Amanhã tem, como proposta, o poetizar sobre o eu antes e depois.


Lançado em 14 de julho de 2023 via Rockambole, Volto Amanhã é um disco que enaltece a pureza de um indivíduo na compreensão de seu lugar e sua importância no mundo. É a percepção de sua unidade como peça de um contexto muito maior chamado vida a partir do entendimento de si. Volto Amanhã, em suma, é o eu do passado dialogando diretamente e sem interferência com o eu do amanhã.

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Sobre o crítico musical

Diego Pinheiro

Quase que despretensiosamente, começou a escrever críticas sobre músicas. 


Apaixonado e estudioso do Rock, transita pelos diversos gêneros musicais com muita versatilidade.


Requisitado por grandes gravadoras como Warner Music, Som Livre e Sony Music, Diego Pinheiro também iniciou carreira internacional escrevendo sobre bandas estrangeiras.