Godhound - Refueled

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O grupo já está entrando na adolescência. Aos 12 anos, ele já coleciona passagens por importantes eventos de Natal (RN), sua cidade de origem, e dois EPs na discografia. Eis que, agora, o quarteto Godhound enfim traz à luz do dia Refueled, seu primeiro álbum de estúdio.


Um cenário nebuloso se forma afrente dos olhos do ouvinte, que acabam de se abrir após um sono imposto. Ondas de vento fazem com que a poeira e os cascalhos se unam em um sobrevoo valsante e tenso como se comunicasse, com ar gélido, sínico e ardiloso, a chegada de um evento tenebroso. Sem medo, porém, o personagem se levanta e começa a caminhar pelo desconhecido. Com feições sérias e intensas, ele observa o horizonte com dúvidas enquanto a chuva cai e deixa a visão ainda mais turva. Esse é o cenário construído imageticamente pela introdução calcada simplesmente em sons ambientes. Porém, de súbito, trovões provenientes do rompante uníssono entre as guitarras de Vitor Assmann e Victor Freire, a bateria de Lázaro Fabrício e do grave, opaco e ao mesmo tempo encorpado baixo de Kael Freire comunicam a imersão em um campo hard rock de raspas psicodélicas tais como aquelas existentes na sonoridade de Highway Star, single do Deep Purple. Cheio de groove, a sonoridade flui para uma maturação heavy metalizada que soma influências do Black Sabbath juntas às do Purple. Protagonizada pelas guitarras ásperas e pela bateria precisa de maneira a apresentar, também, flertes com a estética rítmica de The Prisioner, single do Iron Maiden, a melodia passa do hard rock psicodélico e do heavy metal para então se firmar em um hard rock metalizado com rompantes de swing proporcionados pela guitarra solo. Eis que, enfim, uma voz excessivamente rasgada e aparentemente berrante de maneira a se assemelhar ao estilo de canto de Joel O’Keeffe entra em cena. É Freire introduzindo, em Gravestone, um enredo que dialoga sobre a liberdade e o peso das escolhas na construção da essência e do destino. E nesse processo, tal como a descrição da figura mitológica de Calypso no universo pirata, ele traz a Lady Death como uma figura onipresente representando uma espécie de obsessor apenas esperando a primeira queda de sua vítima para, então, puxá-la para o seu campo de domínio: a morte. Não à toa que Gravestone adquire, por vezes, a estética de cantiga de pirata, a tornando miseravelmente contagiante.


Áspera e com rompantes brutos, a introdução tem nos riffs graves e de singela estridência do baixo de Freire o elemento que dá o corpo, a cadência e exorta a energia desejada para a canção que se encontra em processo de ebulição. Evoluindo para um hard rock sensual que flerta com as roupagens de nomes como Whitesnake, Diesel Burner é construída em uma base 4x4 que auxilia na maturação da qualidade de deixá-la contagiante e até mesmo comercial. Curiosamente, quando o primeiro verso se apresenta, a estrutura melódica que dele emana, sendo a cadência lírica uma grande auxiliadora para tal, comunica uma semelhança interessante com o compasso rítmico de Ace Of Spades, single do Motörhead. Eis então que Diesel Burner mostra o caráter de seu enredo, um diálogo que instiga se afastar da mesmice e da monotonia da vida ao se lançar na estrada, uma metáfora intrigante para a liberdade. Mas não só. A canção tem em si um caráter motivacional que estimula o ouvinte a aproveitar ao máximo o dia de forma a não ter arrependimentos e a escapar da melancolia da rotina. 


Sexy e excitante, a guitarra vem com uma afinação e um provocante riff típico do mais puro hard rock. Com uma introdução curiosamente macia em tal sensualidade, a canção flui para um primeiro verso regido pela estridência do baixo na base rítmica enquanto a guitarra se lança em contidos gemidos que amplificam o caráter de sedução. Interessante notar que o Godhound se utilizou de uma estrutura melódica de caráter radiofônica para, em Warriors, falar de união. Contudo, conforme a narrativa vai amadurecendo, se percebe que, nas entrelinhas, o grupo discute a fragilidade da confiança, da lealdade e do espírito de companheirismo. Em Warriors, esse cenário crítico é exposto sob uma sonoridade e um enredo leve que escondem tal seriedade, o que torna a faixa intrigante e, ao lado de Gravestone, outro importante produto de Refueled.


Selvagem e excitante em sua aspereza, a estrutura é construída na base hard rock, mas não a impede de flertar com a melodia sombria e ríspida de Ninguém Entende Você, single do Charlie Brown Jr.. Novamente tendo o áudio do baixo notável e imprescindível na construção do peso rítmico, a canção tem, de fato, inclinações ao hardcore enquanto a guitarra solo exorta um grito contido e constante que insere conotações dramáticas ao amanhecer do enredo. Jack The Lumber é a história de um homem que envelheceu dando voz à solidão e a outros sentimentos depreciativos que o deixaram ranzinza, melancólico e depressivo. Alguém que se cansou da vida e que, por isso, dela nutriu certo ódio corrosivo. Entre o seu hard rock trotante, Jack The Lumber traz na metáfora do desmatamento, uma chance de, sem as exuberantes e frondosas copas das árvores, a luz do Sol possa enfim voltar a irradiar a vida de Jack, o que certamente não acontece porque cabe ao próprio personagem vencer seus próprios inimigos desmotivadores.
 
Com sexualidade, alegria e malandragem, a guitarra invade o ambiente com um ar provocativamente sínico e debochado em seu rebolar desajeitado. Distorcida, ela, unida aos punchs secos da bateria e aos rffs graves e sisudos do baixo, acaba introduzindo, na melodia, uma energia contagiante e enérgica. Fluindo para um ritmo trovejante na passagem para o primeiro verso, a sonoridade assume uma postura mais bruta e crua que logo se esvai ao se fixar como algo leve, trotante e de sensualidade macia. Surpreendendo o ouvinte, quem surge puxando o lirismo não é Freire e seu vocal grave e rasgado, mas sim um timbre mais agudo e de notas mais ásperas que lembram o tom de David Byrne. É Jimmy London trazendo um enredo repleto de suspense que prende o ouvinte e o deixa ansioso para saber qual é a criatura viciada em diesel que emerge do submundo. Pegar a estrada e correr, porque a criatura está próxima e cheira e tem o rosto da morte. Essa é Deathmask Trucker, uma canção penetrante em sua narrativa e extremamente leve em melodia. De versos minimalistas em estrutura por serem construídos tendo o baixo grave como a figura norteadora e protagonista do ritmo, a canção traz muita referência do hard rock dos anos 80 pré-Guns and Roses. Mais ríspida e sexual, Deathmask Trucker é de uma crueza singular.


Contagiante em sua estrutura que remonta uma melodia AC/DC da era Bon Scott, a construção rítmica é daquelas que funciona como um convite não verbal para que o ouvinte participe na construção da batida através das palmas uníssonas à bateria. Preenchida por um primeiro verso sem baixo, ela é de uma sensualidade mais contida, mas presente, que acompanha o personagem no caminho para o descobrimento da liberdade, do companheirismo onipresente e do pertencimento através da música, através do som do rock ’n’ roll. Esse é o que Rockin’ Spirit defende: a sensação do êxtase e de estar livre para extravasar todos os sentimentos e ter a certeza de que o rock é mais que simplesmente um ritmo, é um amigo confidente a ser levado para a vida toda.


Mais agressiva, mais enérgica, mais potente e mais excitante. Inserindo hardcore na receita da sexualidade do hardrock, o Godhound promove uma miscelânea de sensações que faz o sangue ferver. Importante notar que, em tal melodia, existe o contraponto dosador entre uma espécie de melancolia ríspida e uma maciez entorpecente promovida pelas atuações da guitarra base e da guitarra solo. Com versos de base azeda, Open Letter é uma canção que expõe um delicado diálogo sobre a disparidade do que se vende na realidade digital e o que se tem no mundo real. Importante mencionar que essa interpretação é apenas o primeiro prato do cardápio. Afinal, a discussão proposta vai muito além. População sem senso crítico ou opiniões próprias formadas, refém da hipocrisia e da manipulação política que transforma indivíduos em escolas idealistas. Você é de direita e você é de esquerda e isso basta para mostrar quais são as suas ideias e seus pensamentos. Em um país regido pela intolerância, a dualidade partidária não é uma opção. Sejamos uniformes, homogêneos. O ideal é que todos fossem um, sem a positividade da heterogeneidade. O padrão fala mais alto como um artifício que dá voz ao conservadorismo autoritário e intolerante. O ano de 2022 será um novo divisor na realidade do brasileiro e Open Letter é uma canção crítica que coloca em evidência a fraqueza do brasileiro perante a manipulação midiática em torno da política.


Mantendo a base rítmica do hardcore em meio à essência hardrock, a melodia segue enérgica, mas em menor explosão. Nesse contexto, curiosamente é possível notar um  flerte sonoro com as roupagens do Talking Heads enquanto dialoga, inclusive, com a sonoridade construída pelo Sunroad. Takeover é uma canção que fala para o ouvinte seguir o instinto, manter a essência e a identidade ao invés de se render aos mantras menosprezantes ditos em juízo de terceiros. A negatividade não atinge o indivíduo quando ele está certo e consciente de seus objetivos, vontades e personalidades. Assumir o controle da própria vida é o principal legado de Takeover


Simples, contagiante, sensual e bebendo da fonte da escola clássica do hard rock. Refueled é um disco que oferece energia, excitação e precisão rítmica ao ouvinte. Um trabalho que mostra uma banda consciente de seu papel como expoente do lado clássico do rock e madura em sonoridade.


Misturando o hard rock com o hardcore, Refuled é um material potente e sensual que dialoga sobre solidão, pertencimento, lealdade e política. Contudo, o que mais se fixa na memória do ouvinte é o seu teor motivacional em prol da liberdade e do viver intensamente. Entre mesclas de cantigas piratas, heavy metal e enredos penetrantes a ponto de fazer o ouvinte até mesmo se esquecer das melodias que o cercam, o álbum é um bom cartão de visita sobre a consistência rítmica do Godhound.


Para auxiliar nesse processo, o quarteto contou com Freire também na assinatura da produção do álbum. Isso conferiu mais autenticidade à sonoridade de uma banda que tem muito a mostrar ao mercado musical brasileiro e global graças ao idioma inglês adotado nas canções. O baixista cooperou para que o material soasse com a devida crueza e swing a ponto de mostrar a versatilidade do grupo em transitar entre o grave e o melódico comercial.


Fechando o escopo técnico de Refueled, vem a arte de capa. Assinada por Wildner Lima, ela traz uma mescla de morbidez e agressividade curiosa. Entre a ossatura do crânio de um boi e duas águias com olhares possuídos, o material dá uma conotação mais brutal e até mesmo entorpecente que se envereda pelos campos mais sombrios do heavy metal, como o doom e o death meta. Isso causa certo assincronismo com o som e as mensagens líricas propagadas pelo Godhound no decorrer do álbum.


Lançado em 12 de agosto de 2022 de maneira independente, Refueled é um álbum que, antes de tudo, desmistifica o preceito de que no nordeste só existe forró e seus respectivos subgêneros. O rock é global e, como tal, tem voz até mesmo em locais dominados pelo arrocha, pisadinha ou piseiro. Refueled é, antes de qualquer coisa, um trabalho de som maduro e consciente de um quarteto que, já em seu trabalho de estreia, rompeu a barreira regional e alcançou visibilidade nacional com a maturidade de um som fresco e swingado.














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Sobre o crítico musical

Diego Pinheiro

Quase que despretensiosamente, começou a escrever críticas sobre músicas. 


Apaixonado e estudioso do Rock, transita pelos diversos gêneros musicais com muita versatilidade.


Requisitado por grandes gravadoras como Warner Music, Som Livre e Sony Music, Diego Pinheiro também iniciou carreira internacional escrevendo sobre bandas estrangeiras.