Terminal Guadalupe - Agora E Sempre

NOTA DO CRÍTICO
Nota do Público 5 (1 Votos)

Depois de 15 anos, o quarteto enfim se reuniu. Mesmo tendo seus integrantes espalhados entre Portugal, Alemanha e o pantanal brasileiro, o Terminal Guadalupe decidiu que era hora de trabalhar no aguardado sucessor de A Marcha Dos Invisíveis. Eis então que nasce Agora E Sempre, o quarto disco de estúdio do quarteto curitibano.


O horizonte é nebuloso e preenchido por uma brisa gélida que levanta a poeira de um passado não muito distante, mas que deseja ser esquecido. Farpas de insegurança e impotência são trazidas entre o acúmulo de poeira que baila em sintonia com a valsa melancólica do vento que vem do longe. Solitário, o virtuoso solar do violão de Allan Yokohama consegue misturar elementos do folk e do sertanejo com a maestria de tornar possível a dicotomia das sensações de acolhimento e desamparo, ingrediente que tornou possível a construção de tal paisagem imagética. Existe nele, porém, uma doçura nostálgica que delega aromas frutados de saudade. De súbito, os bumbos duplos de Fabiano Ferronato fazem explodir a melodia latina e swingada do flamenco que conta, ainda, com um dulçor suavizante vindo do piano de Dany López que pincelado ao longo da melodia. Com lirismo puxado por um timbre tipicamente latino que, sob o comando também de López, traz uma sensualidade característica latina através de seu vocal sussurrado e levemente grave, qualidades que o fazem se assemelhar com o tom de voz de Fher Olvera, a canção tem, enfim, seu início real. Ahora Y Siempre apresenta um personagem do mundo dos mortos que é fiel à sua essência, seus desejos e suas morais de maneira a se apoiar no amor para se manter com a sensação de vivacidade ao invés de dar vasão para a frieza do mundo. Como uma música de persistência, convicção, esperança e, principalmente, resistência, Ahora Y Siempre mostra que ainda existe bondade e que ela ainda é mais forte que a censura, o autoritarismo e a impunidade. Com rompantes dramáticos proporcionados pelo dueto entre López e Darey Esteves Jr., o qual transmite a dor e o sofrimento da insegurança e da insensibilidade política em tempos der extremismo, Ahora Y Siempre tem uma finalização poética, reflexiva, melancólica, sonhadora e ainda mais dramática possível através da inserção do áudio de Ulysses Guimarães durante evento da promulgação da Constituição de 1988. Um brinde à democracia e à liberdade de expressão, qualidade que, hoje, o brasileiro tem só em memória.


Como um aviso fúnebre, o grave e fétido da guitarra ecoa o breu do silêncio. Eis que uma dramaticidade afiada começa a emergir da programação unida ao compasso estipulado pelos golpes tilintantes na cúpula do prato de condução. Existe aqui uma imersão mista nos campos da new wave, do post punk e, portanto, do rock gótico que torna a melodia intrigante em sua miscelânea rítmica. Black Song é uma música sombria, de ares deprimentes e funestos que, guiada pelo vocal de Jr. propositadamente inexpressivo pelo torpor, evidencia a realidade vivida por muitos durante o isolamento: a sensação de ter sua vida e sua liberdade por algo que, para muitos, foi difícil de assumir sua existência. Ainda assim, a música traz um conceito de empoderamento e resistência que motiva as pessoas a olharem para dentro de si e reassumir o controle das emoções para conseguir superar as eventualidades que a pandemia pode ter trazido. Black Song é um ensinamento para enfrentar as adversidades e não de rendição.


A new wave setentista retoma o protagonismo em uma introdução adocicadamente ácida e calma. Depois de imersões no campo do espanhol e do inglês, o português assume, em Olhão, a função de norteador do enredo lírico que, trazido por um timbre mais empostado e limpo por parte de Jr., vem acompanhado por uma reflexão curiosamente aveludada sobre a liberdade e pertencimento sob a ótica de um personagem certo de seus desejos de encontrar acolhimento e uma motivação para mostrar ao passado que o amor não é mérito de poucos, mas sim algo que não mede esforços para abraçar a todos que o procuram. Não à toa que Olhão é uma música de sonhos que mostram a realidade de que o mundo pode acolher a todos.


Macia em sua estridência new wave e guiada por percussões eletrônicas vindas de Iuri Freeiberger, a introdução traz influências curiosas que vão desde Robbie Williams a Mika e apresentam Franco Cava afrente dos vocais com um timbre que agridoce que lembra, mesmo que vagamente, aquele de Jorge Durian quando canta de maneira limpa. De estética romanceada graças à melodia de ópera italiana, Privè  é uma canção cujo lirismo foge do cunho romântico e assume um caráter mais provocador, insatisfeito e incrédulo. Trazendo um personagem magoado com os conceitos religiosos adoradores a Deus, Privè traz uma discussão acerca da cegueira da fé, da falta de um apoio a uma figura onipresente e, ao mesmo tempo, que dialoga sobre a raiva e a tristeza do luto. 


É como um ambiente transcendental e hipnótico. Melancólica em sua base entristecida puxada pela guitarra, a introdução é curta e logo dá vasão para um vocal de interpretação introspectiva de maneira a soar como um lamento nostálgico-reflexivo sobre um passado dolorido que deveria ser esquecido. Até mesmo quando a conjuntura instrumental preenche o ambiente, a sensação de melancolia com pitadas de torpor é amplificada, aqui com especial menção ao lacrimal e grave baixo de Marcelo Caldas que caminha cabisbaixo pelo ambiente rítmico. Exílio é uma música de título intrigante e metafórico no que tange o contexto lírico, pois ela apresenta a narrativa sob o olhar de terceiros a respeito de uma pessoa que, antes, era querida e reconhecida pelas suas qualidades de certezas e até empoderamento, mas que agora se encontra aos trapos. É o exílio dessa pessoa em relação à sua própria essência. Nesse sentido, Exílio tem inúmeras conotações, mas que se unem, também metaforicamente, na figura do luto de uma pessoa que se afundou nas qualidades criadas pelas consequências da vida. Pode ser em virtude do vício ou da violência. O certo é que o narrador tem grande pesar ao ver esse indivíduo outrora tão amado e querido estando hoje irreconhecível. Como uma mãe cheia de dor no peito, os versos “a esperança virou medo e confusão”,  “abandonei a fé” e “quando poderei te reencontrar, amor?” são de uma emoção sofrida que se perde entre os sentimentos de decepção, angústia e, também, o mais puro amor.


Apesar de acústica, a melodia introdutória criada entre guitarra e voz exala uma curiosa e grande semelhança com aquelas vindas de I Love It Loud, single do Kiss e Complicated, single de Avril Lavigne. Macia e contagiante como o amornado entardecer de outono, a canção tem um ar despreocupado, sereno e até mesmo desestressante que contagia com sua simplicidade rítmica de flerte com o folk. Holidays In Amityville é uma canção dramática que, assim como Exílio, tem um quê de angústia e desespero na tentativa de ajudar o personagem central, que não aquele responsável pela narrativa. Tal como Exílio, a presente faixa evidencia a necessidade da confiança, mas aqui, em especial, do senso crítico. Com fundo romântico como se estivesse se tratando do término de um relacionamento,  Holidays In Amityville traz, com sua melodia contagiantemente digestiva e alegre, a noção do companheirismo e sua quebra a partir de uma sociedade calcada na essência manipulativa. Pode até ser que a faixa tenha um fundo crítico sobre a realidade atual de uma sociedade brasileira perdida em representatividade e em figuras políticas a quem depositar a confiança. Se assim for, Holidays In Amityville é um prato cheio.


A energia melancólica se mantém firme na introdução, mesmo acompanhada de pontuais apitos estridentes. Trazendo uma energia densa e intensa, Autossequestro é marcado por um dueto entre Jr. e Yokohama que forma uma harmonia gélida e até mesmo fantasmagórica à canção que ainda se encontra em processo de maturação. Funcionando como uma curiosa continuação assimétrica entre os enredos de Exílio e Holidays In Amityville, a presente faixa é visceral e entorpecida em sua reflexão dolorida sobre a vida no que tange a necessidade da resistência. Sem conotações políticas, Autossequestro é como um desejo insano de enclausuramento interno como uma proteção desesperada a um ecossistema social calcado na individualidade e falta de senso de comunidade. Não à toa que o verso questionador “onde foi que eu vim parar?” ecoa insistentemente no inconsciente do ouvinte como um mantra reflexivo sobre as diferentes realidades de um Brasil díspar. 


O amanhecer tem um aroma setentista curioso, mas uma base rítmica trotante. Puxada pelo violão e tendo sobrevoos adocicadamente gélidos vindos da programação, ¿Qué Pasa, Cabrón? é uma música curta e rápida que, com flertes na cúmbia,  dialoga sobre a crise econômica em âmbito global a partir de um dueto espanhol que contagia o ouvinte em sua melodia linear.


Macia, melancólica e tímida. É assim que a nova introdução se apresenta ao ouvinte. Como um desabafo que ecoa no vazio da consciência, Jr. vai introduzindo outro lirismo carregado de dor e decepção. Preenchida apenas por sonares eletrônicos acompanhados das colocações pontuais e gordas do baixo, a melodia de Vácuo acompanha um personagem perdido entre a insegurança e a ansiedade que dividem os momentos da solidão e da companhia. Indo mais profundo no conteúdo lírico, a canção parece dialogar sobre um relacionamento possessivo em que a distância é sempre motivo de ciúmes. No todo, Vácuo é o ensinamento da convivência consigo mesmo de maneira a mostrar que a solidão é o caminho que nos leva a nosso pior inimigo, que é sempre cego e emudecido pelas multidões: nós mesmos.


Com uma guitarra sensualmente encorpada, macia e swingada em sua levada sutilmente melancólica, a melodia tem o compasso marcado apenas pelos golpes secos e ocos do bumbo na coxia rítmica. Preenchida por uma dramaticidade introduzida pontualmente através das notas adocicadas do teclado de Rodrigo Lemos, A Flor De Drummond é uma música marcante pela simplicidade de sua combinação harmônico-melódica que acompanha um personagem lírico em processo de desprendimento e renascimento depois do fim de um capítulo tortuoso da vida. Pode parecer se tratar de um relacionamento abusivo que foi encerrado após anos de maturação de consciência sobre o que estava acontecendo. Pode ser sobre autodesvalorização e falta de autoconfiança. O que fica de A Flor De Drummond é a história de alguém que, finalmente, aprendeu a se amar. 


Multicultural, miscigenado e virtuoso. Agora E Sempre marca um retorno quase triunfal do Terminal Guadalupe de volta ao mercado da música. Cheio de melodias marcantes e harmonias penetrantes, o disco é marcado por dialogar, de maneira sensível, sobre política, fé e sobre a sensação de orfandade em relação à representatividade. Mais do que qualquer coisa, porém, o disco fala de liberdade, pertencimento. Sobre ser humano.


Sua multiculturalidade está presente ao fundir cúmbia, sertanejo, folk, new wave, post-punk, flamenco e rock gótico em meio a atmosferas expressivamente melancólicas e reflexivas vendidas por uma maciez embriagante. Independente se com conotações mórbidas, tensas ou comercialmente melódicas, o disco sempre tem o intuito de puxar o ouvinte para uma espécie de autoanálise sobre a vida e sobre si mesmo.


Esse contexto não seria possível se o Terminal Guadalupe não tivesse o auxílio de Iuri Freiberger na mixagem. Afinal, ele foi o quinto elemento, aquele responsável por captar a energia, a intenção com as letras e a união de diferentes roupagens rítmicas e transformá-las em um corpo único que represente a identidade do grupo curitibano. E assim se fez. Agora E Sempre nasceu maduro e tecnicamente de caráter internacional.


Claro que o álbum não seria o que é sem a presença de um mentor para mostrar os caminhos ideais a serem percorridos para então chegar ao som desejado. É aí que entra a dupla de produtores formada por Yokohama e Freiberger. O fato de também serem atuantes na criação da musicalidade do álbum muito coopera para o rumo certeiro à máxima originalidade, autenticidade e, no caso do Terminal Guadalupe, também de ousadia.


Encerrando o escopo técnico, vem a arte de capa. Assinada por Pietro Domiciano, ela é uma arte abstrata preenchida por um misto de cores quentes que comunicam propriamente a ideia de renascimento. Cheia de vida, intensidade e mesclas de hipnotismo, a obra retrata quão famintos os integrantes estavam para se reagruparem e construírem um novo capítulo. E com a urgência do presente, cada um dos tons escolhidos para preencher a arte foi necessário. 


Lançado em 05 de setembro de 2022 via Loop Discos, Agora E Sempre é um álbum que parece estar sempre na dicotomia da tristeza de um passado que deve desesperadamente ser esquecido com a esperança de um futuro angustiadamente necessário e sonhado. É como um mantra rumo ao renascimento do indivíduo em um lugar repleto por acolhimento, representatividade, lealdade e liberdade.

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Sobre o crítico musical

Diego Pinheiro

Quase que despretensiosamente, começou a escrever críticas sobre músicas. 


Apaixonado e estudioso do Rock, transita pelos diversos gêneros musicais com muita versatilidade.


Requisitado por grandes gravadoras como Warner Music, Som Livre e Sony Music, Diego Pinheiro também iniciou carreira internacional escrevendo sobre bandas estrangeiras.