NOTA DO CRÍTICO
A distância e a aquisição repentina da sensação de pertencimento fizeram com que o cantautor Gabriel Milliet não somente deixasse a experiência de ser um imigrante na Holanda para voltar ao Brasil, como também anunciasse seu álbum de estreia em carreira solo. Intitulado UM, o trabalho é vendido como um material cheio de texturas, climas e ambiências.
É macio como o veludo e tocante como o ato materno do carinhoso contar de uma história de ninar. Fresco, mas também carregado de uma interessante, mas não dramática melancolia, é o violão quem dita a energia inicial da canção. Eis que, como um aluno, um aplicado pupilo, Biel Basile surge desenhando, na bateria, frases introspectivas, respeitosas, leves e cintilantes a partir de um chimbal sincopado e seco, oferecendo percepções da cadência rítmica. Confortável e com texturas de um misto doce e tilintante por meio dos sonares do sintetizador e do piano de Jarno Van Es, Silêncio Brutal é narrada por uma voz grave, mas, ao mesmo tempo, suave e de toques nasais que introduz uma mistura entre o indie e a MPB. É Gabriel Milliet, com seu timbre capaz de refrescar na mente do ouvinte as vozes de Jorge Vercillo e Djavan, bem como a delicadeza de Tiago Iorc, trazendo falsetes bem executados e uma interpretação lírica nostálgica. Não por menos, Silêncio Brutal é como o grito de um coração solitário, não pelo romance, pelo beijo ardente, ou pelos toques apaixonados, mas sim pela família, pelos amigos, e pelo local em que se sente pertencente. A distância pode ser cruel quando dificulta o refrescar das dores da saudade e é exatamente isso o que acontece em Silêncio Brutal: o eco do vazio que esconde o berço, o companheirismo e a sociabilidade que um dia moldou a essência do indivíduo cuja voz é ouvida na canção.
Ambíguo. O despertar da nova canção é hipnótico a ponto de trazer duas possíveis situações: o despertar e o de poder estar consciente no sonho. Impressões possíveis a partir de um piano de teclas agudas e gélidas, elas passam a dar espaço, com a entrada do violão, a um frescor macio e reconfortante. É curioso como, com tão pouco, o ouvinte consegue sentir a brisa entrando pela fresta aberta do vidro do carro em meio à estrada adornada por um céu azul-turquesa. O Sol E O Mar, com seu minimalismo estético, é quase como um mantra que sugere a reenergização, um equalizar das emoções a partir da briza do mar e o frescor das ondas. Menos tocante que a canção anterior, mas com grande grau de sentimentalismo, principalmente pela entrada da valsa comovente dos violinos de Lucas Bernardo, O Sol E O Mar é a superação dos desafios da vida. É o lançamento, por entre as ondas e o vento, dos desejos a serem concretizados no amanhã que já vem chegar.
A união entre o grave do baixo e a delicadeza do violão causa um efeito curioso. Existe notas de folk. Uma alegria inicial. Mas, ao mesmo tempo, existe um olhar longínquo e saudoso que se transfigura por entre os sonares produzidos pela dupla de cordas. Com aromas igualmente bucólicos, Carta De Natal é presenteada por uma harmonia construída entre as sobreposições vocais de Milliet que auxilia na amplitude emocional que permeia esse enredo de solidão, de saudade, de autoconhecimento. Carta De Natal é quase como a continuação de Silêncio Brutal, mas com foco no ato do cantautor em olhar mais profundamente para si e não para o que a ausência do outro o faz sentir.
Embriagante e simultaneamente nauseante, os primeiros sonares do novo horizonte dão passagem para uma estrutura sonora guiada pelos batuques ocos do bongô e do flutuar da sincronia entre violão e guitarra. Sem qualquer tipo de pressão e respaldada no máximo de torpor, Grande Hotel São João, pela forma como a interpretação lírica se pronuncia, poderia muito bem ser entendida como uma obra retirada do supergrupo Pequeno Cidadão. Descompromissada, leve e de toques curiosamente juvenis, é mais que uma ode à cultura nacional da festividade junina. É, entre as texturas do pau de chuva e o folclórico sopro agudo da flauta, uma ode, uma canonização da cidade de São Paulo e suas imperfeições.
O violão traz o tom grave logo como notas de boas-vindas ao novo cenário. Ainda que o sopro gélido da flauta de Teresa Costa traga curiosos tons de uma delicadeza que ambiente o ouvinte na década de 60, o grave continua sendo um fator predominante nessa atmosfera que vai se mostrando esvoaçante. Vento De Oyá, com os pontuais e sutis toques de corpulência grave vindos do baixo de Pedro Ivo Ferreira, tem um caráter indígena, natural, puro que transcende os sonares do caxixi e do sino, elementos que dão texturas repentinas a esse enredo que apresenta um personagem pertencente à vida, à liberdade. Um personagem que, mesmo distante fisicamente, e mesmo que atravesse por tormentas inquietantes, possui um elo inquebrável com suas raízes. Vento De Oyá é a tempestade, é o caos, mas também a posterior bonança que vem depois da desarmonia.
Ela é tristonha, cabisbaixa. Levemente lacrimal. A melodia minimalista que se inicia entre violão e bateria é linear e suave, mas traz em si uma espécie de nostalgia regida por arrependimento. Rua Vitória é um poema. Um poema cantado, musicado, sobre São Paulo. Sobre possibilidades. Sobre a convergência entre futuro e passado num sonho utópico em busca pelo novo, pelo rompimento da monotonia. Uma verborragia que assume ser mais uma, entre tantas, a chamar o ouvinte à ação, à vida. Ao movimento. Tudo em um grande vaivém de maciez, gelidez e torpor. Uma melodia embriagante que faz o ouvinte enxergar muito além que a parede estática do quarto enquanto ouve Rua Vitória.
A maciez adocicada surge confortável e convidativa. A melodia que se matura soa como um extasiante mantra sobre futuro, passado, presente. Dando ao ouvinte a ideia de ser uma faixa romântica, que, no fundo, seu enredo guarda a mistura de tristeza, superação e necessidade da dor do rompimento para conseguir caminhar firmemente no caminho do autoconhecimento, Futuro é a narrativa de um personagem que optou pelo afastamento para ver o amplo e se entender. Se encontrar. Amadurecer.
Mais orgânica e com elementos mais ritmados, a presente canção surge com uma revigorante alegria. Um sorriso macio e convidativo para com os tons pastéis pincelados pela melodia. Num estilo de composição que mistura influências de Arnaldo Antunes, Nando Reis e Raul Seixas, Carta De Ano Novo, diferente de Carta De Natal, traz um personagem já consciente de si, de sua transformação perante o tempo de convivência com a distância. Ainda assim, ela guarda um saudoso desejo de retorno, mas não um retorno permanente, apenas passageiro. Momentâneo. Carta De Natal é o registro escrito do desejo em tempo suficiente para o personagem conseguir atualizar os feitos e sentir as brisas de uma terra há muito guardada na memória.
É a inércia. O máximo do minimalismo. É a luz do Sol surgindo ao longe iluminando o jardim e fazendo o perfume das flores levitar e aromatizar o ar por meio dos sopros doces da flauta, rompendo o marasmo do violão sisudo. Da Paz Inevitável é a conquista da superação do passado e a capacidade de desfrutar o presente. É a tranquilidade do saber estar pronto para se atirar rumo ao novo enquanto o passado fica como páginas felizes e alegres de se rever vez por outra. Páginas essas que são inevitáveis no enredo dessa história que é a vida, a mente e o coração de Gabriel Milliet.
É um compilado de poemas musicados. UM são sonoras, macias e reconfortantes verborragias sobre quem é, o que pensa, o que sente e o que almeja Gabriel Milliet enquanto indivíduo, enquanto artista e enquanto integrante de uma conjuntura ampla chamada história. Uma história que envolve família, amigos, o tempo e o pertencer.
É a união de nove capítulos em um livro que disseca o coração desse forasteiro de si mesmo. Alguém que quis ver de longe a amplitude que, na verdade, continuou dentro do seu próprio corpo. Mente. Alma. Coração. É a saudade dialogando com o tempo, que dialoga com a maturidade, que dialoga com a transformação. É a tristeza que fala com a solidão e que delira em carências bem assimiladas.
UM é justamente o que Milliet é. É um. Um indivíduo em busca de uma resposta. Uma verdade. Um suspiro. Um alívio. Uma descoberta que leva a, talvez, muitas outras perguntas que gerariam muitas outras respostas. UM é a unidade se percebendo pertencente a um grupo. E desse grupo, vem a alegria do se sentir pertencente a algo e a percepção de que o um faz parte de algo maior chamado ciclo de convivência, que se torna uma comunidade. Que se torna uma sociedade. Que se São Paulo. Que se torna Brasil. O país que nunca deixou de abraçar seu filho que não foge à própria luta do se compreender.
Para dar embasamento a essa conjuntura de enredos que é UM, Gabriel Milliet se aliou a João Milliet na função de engenheiro de mixagem. Por meio dele, o álbum soou um verdadeiro e maduro expoente da MPB. Uma música popular brasileira que fala com o passado tendo referências com o presente ao fundir elementos da música indie. Tudo de forma bem equalizada e cristalina.
Fechando o escopo técnico, vem a arte de capa. Assinada pelo próprio G. Milliet, ela é um autorretrato em preto e branco que simboliza o luto do que um dia foi Gabriel Milliet. Nesse sentido, a capa simboliza a metamorfose desse brasileiro que foi se descobrir no além-mar e perceber qual seu verdadeiro lugar.
Lançado em 01 de setembro de 2023 via Matraca Records, UM é a verdade de um indivíduo em busca de si. É a união de texturas na procura por respostas sobre a vida, sobre o tempo. Sobre o seu lugar. UM é onde Gabriel Milliet se disseca e compreende desde seus medos aos seus anseios mais profundos que recaem sobre um mesmo pilar. Um pilar formado por amigos, família, São Paulo e um berço maior de onde nunca deveria ter saído: o Brasil.