Drenna - Cisne Negro

NOTA DO CRÍTICO
Nota do Público 5 (3 Votos)

Ele é a materialização de um sonho. Nascido no Complexo do Alemão, o grupo é considerado a metamorfose de uma mulher periférica que encontrou no rock a possibilidade de viver de arte. Assim sendo, o Drenna usa o meio do terceiro trimestre para anunciar Cisne Negro, seu segundo disco de estúdio.


A melodia é precisa, mas rasa. A melancolia, sem pedir licença, já passa a encontrar um espaço considerável a partir da sonoridade em processo de construção. Quando Drenna Rodrigues entra em cena colocando, no contexto lírico, seu timbre agudo, gélido e de toques soturnos tal qual aquele possuído por Keila Boaventura. Ainda assim, existe presença e uma noção de empoderamento que sai de sua interpretação vocal, mesmo que esteja muito prematura. Conforme a melodia vai tomando um fôlego crescente, Game vai mostrando que, em seu caldeirão melódico, o indie rock anda de mãos dadas com o rock alternativo e um embrionário pop punk. Eis que, imersa em um lirismo que busca dar valor ao presente, ao agora e à coragem do fazer e agir, ante a insegurança que faz a espontaneidade se transformar em cálculos frios cheios de arrependimento, Game tem no baixo de linhas levemente estridentes de Bruno Moraes, o realçador de sabor durante a ponte.


Entre o riff distorcido e quase estridente da guitarra, o baixo bojudo e groovado e uma bateria cuja desenvoltura de Milton Rock a coloca em um primeiro plano nas camadas sonoras, a canção logo surpreende por apresentar uma base pop em meio ao chimbal acelerado e sincopado na cadência do trap. É com esse movimento urbano que Hater ainda amplia sua gama estética com a fusão de um reggae cujo som é tão entorpecido e soturno que lembra aquele sonar construído pelo Radiohead. Com essa cama melódica cosmopolita, Hater é uma canção que propõe, com uma interpretação debochada e agoniante, a discussão sobre intolerância perante o conservadorismo social, o julgamento e o abuso moral. Nesse aspecto, portanto, a faixa flerta com o enredo de Weirdo, faixa de K.Flay justamente por trazer um personagem que não se enquadra no padrão social pré-estabelecido.


Sem demora em fornecer, escancaradamente, a mensagem-chave de seu conteúdo lírico, a presente faixa funciona como uma continuação linear de Hater. Respaldada por um pop punk mais maduro e evidente em relação àquele de Game, de maneira a comunicar influências de Paramore e Avril Lavigne em seu estilo de movimentação estética, Me Desculpa é a ausência de pertencimento social. Evidenciando a insegurança e, portanto, o medo de extravasar a verdadeira identidade, a necessidade da autoaceitação e a percepção madura de que não é o contexto social que define o ser humano são quesitos que fazem de Me Desculpa uma faixa comovente, mas, sobretudo, motivadora em incentivar a liberdade e o desleixo quanto aos julgamentos menosprezantes pelo simples fato de ser diferente.


Um sonar estridente, agudo e sintético funciona como o despertar do novo amanhecer. Logo, uma levada contagiante e melódica de maneira a rememorar a estética sonora do Detonautas e capaz de proporcionar uma espécie de saudosismo pela atmosfera do rock brasileiro no início dos anos 2000 se matura. Entre uma guitarra de uivos aveludados sobressaindo perante o chimbal sincopado, o rock alternativo, o trap e uma singela apreciação à estética melodramática do emocore se fazem presentes em A Casa. Ainda que bem indiretamente, a faixa segue o caminho trilhado pelas faixas antecessoras Hater e Me Desculpa por trazer um enredo de cunho sutilmente motivacional que ajuda a educar o ouvinte na arte da superação. É quase como um embrionário processo de autoconhecimento em que o ouvinte lida com seus ímpetos de intensidade e compreende seus próprios medos. De estética densamente contagiante, A Casa é a primeira obra de Cisne Negro a ter a melodia penetrada na mente do espectador.


Junto de uma sincronia amaciada criada entre guitarra e baixo de maneira a comunicar o desenho do soft rock, um uivo traz consigo leveza, mas principalmente uma noção de breve empoderamento. De influência lírica clara de Tihuana, Charlie Brown Jr., O Rappa e mesmo Cali, Reta No Céu consiste em um indie rock narrado por um timbre levemente empostado que traz uma postura consciente, madura e corajosa. É assim que o personagem lírico se vê na iminência de andar de mão dada com a imprevisibilidade do destino e com os aprendizados do passado na busca pelo caminho certo a seguir. Um caminho sempre apoiado pelo senso de perseverança, autoconfiança e fé para o enfrentamento das eventuais adversidades que essa trajetória pode oferecer. 


Um som doce, mas áspero, é ouvido ao fundo enquanto ganha uma singela força. Antes que consiga penetrar de fato no contexto melódico, ele é vencido por um punch alternativo e de veias melancólicas desenhado, principalmente, pelas guitarras. De corpo presente e com um compasso rítmico bem marcado, a faixa é impregnada por um viés sombrio e soturno que abraça firme seu contexto sonoro sorrateiro. Espelho é uma música acidamente dramática que trata de depressão, tristeza e um luto perante a obscuridade do brilho da própria essência do indivíduo. Como uma canção que aborda a falsa noção de superação do sofrimento, Espelho é o retrato do contágio da dor e a desesperante agonia por conseguir cicatrizar seus efeitos carniceiros. De fato, a canção mais densa e mórbida de Cisne Negro.


Seu despertar é épico e intenso. É como um cenário árido em que duas tropas se fitam antes do embate incondicional. A luz do Sol bate rente na testa de cada um dos líderes, fazendo se formar gotas de suor que escorrem pontualmente em suas faces, umedecendo o senho completamente franzido e atento. Antes que a hora derradeira do confronto chegue, um lapso de consciência bate em ambos os comandantes, que os fazem cessar o combate numa medida quase desesperada, mas de origem enigmática. A faixa-título consiste em um instrumental cujo cenário usa, talvez, do confronto, como metáfora para o enfrentamento e a posterior superação da crise. Tendo na guitarra o elemento capaz de trazer o dramático e o comovente, mas também o vívido e o esperançoso, quando entra em seu ápice, a melodia da canção rememora perfeitamente o amanhecer de The Great Die-Off, faixa do Rise Against, proclamado pelo sintetizador. Nesse ínterim, enquanto a faixa-título tem no baixo o elemento da acidez, da rigidez e da estridência, o sintetizador vem como um sonar agudo-entorpecido que sugere a esperança, o raiar das novas possibilidades. A oportunidade do recomeço. Penetrante, intensa e cativante em sua densidade, a faixa-título é como a metamorfose do medo à segurança. Um empoderamento crescente transmitido em cada uma das esquinas sonoras.


Ela já nasce acelerada. Entre golpes uníssonos da bateria e da guitarra irrompendo a linearidade rápida do amanhecer, a canção logo flui para uma estética com bom corpo sustentado pelo baixo. Seu desenho indie rock misturando influências despropositadas de The Kooks, Arctic Monkeys e The Black Keys, faz da canção um produto contagiante e atrativo. De ápice sedutoramente melancólico e melodramático, A Busca traz novamente um indivíduo insaciável pela liberdade e inconformado com a zona de conforto da monotonia. Surpreendendo o ouvinte quando todas as camadas de sabor já haviam sido degustadas, o Drenna insere outro ingrediente no caldeirão de A Busca. De timbre agridoce e rompantes rasgados de forma a lembrar aquele de Billie Joe Armstrong, Kauan Calazans dialoga sobre amadurecimento e uma saudade pela pureza ingênua de criança. Assim, A Busca se fortalece e arregimenta seu terreno como uma obra sobre persistência e perseverança, mas acima de tudo, foco, determinação e autoconfiança para seguir seu ideal de destino.


O calor do Sol já é suave, indo justamente ao encontro da paisagem poente. O vento traz um frescor que ainda se divide entre o morno da tarde e o esfriar da noite. No horizonte, os tons místicos que pintam o céu vêm acompanhados de certa proposta melancólica, mas ainda sem grande força. Com um soft rock fundido no reggae, a praia é o cenário de tal contexto que já se mostra reflexivo a partir de uma interpretação vocal introspectiva. Pensando Bem é uma canção que, apoiada na vertente do relacionamento, convida o ouvinte a pensar sobre persistência, gratidão, mas principalmente, legado. Nosso papel no mundo importa não somente para nós mesmos, mas nossas ações interferem, como um efeito dominó, na vida de todos que nos circundam. E é nisso que Pensando Bem encontra o foco de sua reflexão, ainda que também humanize seu personagem ao comunicar que errar é normal e trazendo a dificuldade de expor os próprios sentimentos, mas sempre com o toque da persistência em não deixar as eventualidades abaterem a estrutura tanto do relacionamento quanto das pessoas individualmente.


O tom de sua voz não é de súplica, sofrimento, dor ou tristeza. É como uma entonação de uma felicidade aliviante. A possibilidade de um respirar profundo depois do caos. Uma comemoração suada e cansada, mas cheia de força e vida. Entre versos de ar cunhados no rock alternativo e refrões melodramáticos, A Praia é justamente o momento exato após a superação da tempestade. É a calmaria do equilíbrio muito bem-vinda depois da queda profunda no abismo da autoanulação e da preocupação em relação ao julgamento alheio. A Praia é o ansioso, sonhado, merecido e calmante ondular da maré trazendo movimento e a suavidade da chance de um recomeço.


Ele é um material consciente. Mas antes de ser consciente, é um produto maduro. Completando sua maturidade, vem a sensatez e o senso crítico. Cisne Negro é um álbum cujo mote é não se apegar. Não se apegar às zonas de conforto. Não se apegar aos padrões sociais pré-estabelecidos. Não se apegar ao julgamento alheio e não fazer da verdade do outro a sua verdade.


Parece piegas, mas o material que se apresenta traz um cunho, mesmo que talvez negado por estar em suas entrelinhas, motivacional. Ele, primeiramente, educa o ouvinte a perceber que o diferente não é errado. Que o se destacar por ser heterogêneo às manias, aos comportamentos e às atitudes da maioria não traz uma conotação negativa, mesmo que assim seja trazido pelo senso comum.


Cisne Negro surge para empoderar, para ajudar o espectador a se despir dos medos, das inseguranças e da falta de autoconfiança. Por meio de sua educação em prol do autoconhecimento para entender as razões das fraquezas e, assim, superá-las de maneira a se manter emocionalmente mais forte, o álbum é um compilado de narrativas de persistência, foco e coragem.


É verdade que, nele, também existem momentos introspectivos e melodramáticos. Porém, o ser humano é também formado de sensibilidade e nem sempre ele consegue esconder as lágrimas da dor e da tristeza que por vezes visitam seu destino. Nesse ponto, inclusive, é onde o Drenna se humaniza e se aproxima do ouvinte como forma de provar que o chorar é também um ato válido no rumo da superação.


Se apoiando grandemente nas críticas ao abuso moral e ao julgamento alheio, Cisne Negro precisou ser amplo em sua gama melódica para representar, de maneira transparente, todas as emoções nele exploradas. Para isso, o Drenna confiou a Vitor Farias e Fabrício Matos a tarefa da mixagem.


Nela, os profissionais fundiram e exaltaram vertentes melódicas como indie rock, trap, pop punk, emocore, soft rock, reggae e o rock alternativo de maneira a proporcionar a Cisne Negro uma finalização sonora de madura, robusta e de qualidade superior à da maioria das novas produções nacionais.


Essa sensibilidade foi também generosamente captada por Felipe Rodarte, que, como um tutor, fez com que o Drenna, por meio de sua produção, caminhasse livre pela sua experimentação visceral.  Ainda que dando liberdade, Rodarte foi uma peça importante para fazer Cisne Negro soar forte, imponente, empoderado, mas também destacar o humano e o sensível mesmo diante de ímpetos de agressividade.


Fechando o escopo técnico, vem a arte de capa. Assinada por Thales Magno, ela é chocante logo de início por ser majoritariamente banhada em um vermelho vivo que ressalta os contornos daquilo que é necessário destaque: a própria Drenna. Podendo dar tanto a impressão de estar segurando uma prancha em formato de asa quanto ser uma espécie de ave da noite, seus traços pontiagudos sugerem uma personalidade forte, madura, mas cuja sensatez e seriedade foram adquiridas prematuramente a partir de uma vida intensa. Ainda assim, por mais que se sobressaia a raiva, o ódio e o deprimir, seu rosto traz uma delicadeza doce que, apesar de protegida por uma capa de repulsa, clama e deseja por receber aquele carinho que acordará sua sensibilidade.


Lançado em 25 de agosto de 2023 via Toca Discos, Cisne Negro é a metamorfose do sofrimento, da dor, do medo e da tristeza em autoconfiança, coragem, foco, persistência, maturidade e sensatez. Um material que, a partir da limitação social em aceitar aquilo que foge à regra da normalidade comunitária, educa e motiva o ouvinte a ser coerente consigo mesmo e a se sentir pertencente a todos os lugares como forma de enaltecer e positivar as diferenças.

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1 Comentários

Que texto Incrível !!!!!!😍😍😍😍

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Sobre o crítico musical

Diego Pinheiro

Quase que despretensiosamente, começou a escrever críticas sobre músicas. 


Apaixonado e estudioso do Rock, transita pelos diversos gêneros musicais com muita versatilidade.


Requisitado por grandes gravadoras como Warner Music, Som Livre e Sony Music, Diego Pinheiro também iniciou carreira internacional escrevendo sobre bandas estrangeiras.