NOTA DO CRÍTICO
Entrando nos últimos instantes de 2022, a banda porto-alegrense Dingo, anteriormente chamada Dingo Bells, anuncia um novo capítulo em sua discografia. Intitulado A Vida É Uma Granada, o material é o terceiro álbum de estúdio do quarteto e marca a divisão do grupo também entre a cidade de São Paulo.
Uma voz aguda e afinada, de forma a lembrar o timbre de Chaps Melo, entra em cena tímido ao lado da guitarra de riff sutil e pontual desenhado por Diogo Brochmann. Curioso notar que, a partir do movimento amaciado do canto de Rodrigo Fischmann, um aroma reconfortante de lavanda paira pelo ar perfumando o ambiente que, logo, se transforma em uma valsa bluesada de flertes jazz que constrói contornos levemente melancólicos. Crescendo em harmonia a partir da sincronia entre o piano compassado de Fabrício Gambogi e o baixo de Felipe Kautz, a faixa-título ganha um swing contagiante enquanto dialoga da vida como metáfora ao conceito denotativo da palavra imprevisível. Cheia de rimas e com coros que remetem à harmonia melódica de We All Fall Down, single do Aerosmith, A faixa-título ainda trata da intensidade emocional do ser humano, algo que explodiu como uma panela de pressão quando foram afrouxadas as medidas de distanciamento e isolamento para contenção do contágio da Covid-19. Um brinde ao sentimento.
O dulçor suave do violão é como a maré no amanhecer. Macia, tranquila e sonorizando com sua valsa nascente o dia que vai despertando. Vozes ao fundo dão a noção de conversas cruzadas, mas não um consenso de multidão. Apenas um aglomerado de pessoas com suas conversas particulares criando uma melodia dissonante. É nesse ponto que, regido pela sequencialidade linear, frequente e aguda do wurlitzer, uma mistura de soft rock e reggae desabrocha na melodia. Com uma guitarra amaciada, a sonoridade da canção assume, com auxílio do groove da bateria, uma singela similaridade com a base rítmica de Locked Out Of Heaven, single do Bruno Mars, lhe conferindo traços alternativos e indies. Ao mesmo tempo, essa mesma estética traz também um parentesco estilístico com o alicerce de Além do Horizonte na versão do Jota Quest. E assim, Parabólica se mostra uma canção multiplamente melódica que dialoga sobre a natureza urbana e seu peso no ofuscamento da beleza natural do ambiente. Excessivos arranha-céus, luzes artificiais por todos os lados. Fumaça, barulho. O desejo pela pureza ante o desenvolvimento industrial desenfreado. De certa forma, Parabólica compartilha da mesma crítica abordada na animação WALL•E: o artificial crescendo na rotina social enquanto a natureza e seu preceito de vida natural vão sendo ofuscados. No que tange a sonoridade, ainda, a participação do synth e do sampler de Gilberto Ribeiro Jr.. a canção assume, ainda, uma ambiência que exala influências de um Lulu Santos em sua fase mais pop.
A movimentação do violão já oferece uma energia e uma harmonia diferentes. Um contágio positivo, esperançoso e reenergizante exala de cada nota proferida durante a introdução solada. Em seguida, um dueto de violino formado por Aramis Rocha e Robson Rocha deposita um aroma floral que flerta com a vanguarda britpop do Coldplay que remonta a sonoridade de seu single Viva La Vida enquanto toques latinos e coloridos são pincelados a partir do sopro grave e encorpado do trombone de Douglas Antunes. Lindo Não é uma bela descrição do processo de autoconhecimento do personagem lírico. Uma ilustração de basta do marasmo falsamente reconfortante da melancolia e da negatividade. O recomeço com representações de seu peso emocional a partir da dramaticidade do violoncelo de Deni Feijó e do dulçor choroso da viola de Daniel Pires que levam Lindo Não a um fechamento que, a partir do agudo-estridente e swingado do saxofone de Bira Junior, é dourado e vivo.
Com grande semelhança ao amanhecer de Somos Quem Podemos Ser, single do Engenheiros do Hawaii, o violão macio em sua linearidade comove e convida o ouvinte a se perder em meio a um ambiente melódico e sensível a partir da união entre a levada acústica da percussão e da agudez suave do segundo violão de Helio Flanders que sobrevoa a ambiência rítmica. Um Raio No Céu é um enredo poético e original sobre o conflito no relacionamento simplesmente pelo seu viés reflexivo, doce e sensível. Sem lamentação, o escopo lírico demonstra o pensar sobre a insegurança e sobre as diferenças de comportamento ao mesmo tempo em que revela, na saudade, o desejo pelo reatar do amor.
Uma MPB macia e aconchegante se constrói a partir da levada amaciada do violão. Crescendo gradativamente em harmonia com a inserção tímida de notas pontuais sutilmente distorcidas da guitarra, a canção é como a luz do Sol entrando pelas frestas da janela e amornando os pés descobertos na cama. Seu iluminar garante um novo recomeço, novas oportunidades e energia para fazer aquilo que faltou no ontem. Nesse contexto, Eu Em Busca De Mim traz um contágio através da simplicidade estética enquanto dialoga sobre intensidade e um senso desmedido de liberdade associado ao pertencimento. Eu Em Busca De Mim é a descoberta da irregularidade emocional do ser humano e a percepção de que cada dia é de um jeito - e que isso é normal.
O wurlitzer traz uma ambiência industrial e ao mesmo tempo synth-pop ao novo contexto. Proporcionando o desenho de silhuetas bem marcadas e swingadas, o instrumento segue como protagonista estético na canção enquanto uma alegria resplandescente toma conta do ambiente. Contagiante, Doce Delírio consegue recriar a estética do rock nacional oitentista enquanto dialoga sobre esperança e, subliminarmente, o gosto saboroso e viciante da vida e das interações.
Com notas de R&B por meio de um coro harmonioso como base melódica, a nova canção amanhece de forma a dar liberdade a um personagem onipresente que, como a voz da consciência, ou melhor, do inconsciente, se comunica com seu amo com palavras motivacionais em inglês. Mantendo a simplicidade estética, a música engrena em um amadurecimento a partir do compasso executado apenas pelo estalar de dedos enquanto o violão começa a entregar um corpo mais melancólico à A Descoberta Do Ser. De ginga sutil instaurada pelo groove da bateria, a canção acompanha Fischmann em um enredo que flerta muito com aquele de Eu Em Busca De Mim, pois traz um personagem que se perde entre a intensidade e o medo de descobrir as origens desses ímpetos explosivos. Eis que ambas as canções se tangenciam no tema do autoconhecimento. O recado metafórico potente deixado em A Descoberta Do Ser está no verso “a desconstrução do ser é a condição para ser feliz”. Afinal, quando o ser atinge a pureza, ele não está preso a preceitos sociais e moralistas e age apenas seguindo aquilo que lhe convém.
A pureza floral e macia da MPB encontra o compasso levemente swingado inspirado no jazz. Com tamanho frescor, Eu Cheguei De Longe vem sem delongas com mais um enredo sensível que flerta o tema do autoconhecimento. Trazendo um recorte do êxodo rural moderno, a música acompanha um personagem duelando com seus medos e inseguranças ao chegar em uma cidade grande e desconhecida, mas sempre com o peito erguido e o olhar brilhando ao refletir a visão da esperança. Eu Cheguei De Longe é a descrição de como o meio pode transformar a essência do ser.
Trazendo densidade e melancolia na mesma medida, o violão surge trazendo ares reflexivos ainda enigmáticos. Trazendo o mesmo tema de Um Raio No Céu, mas com uma abordagem profundamente diferente, Tropeço é embebida em lamentos sobre a fragilidade e o insucesso do relacionamento. Ousando na estrutura, a faixa vem ainda com o outro lado, o contraponto. A visão dela em comparação à dele. E nesse sentido, quem dá voz ao personagem feminino igualmente fragilizado é Paola Kirst que, com seu tom de voz forte, mas de interpretação contida, traz uma agudez sincronicamente lamentosa pelo fim de algo que parecia frutífero e vindouro. Porém, assim como já havia dito Fischmann, “todo o fim também é um recomeço”, ou seja, outro tipo de relação ainda mais forte pode ser construída a partir de algo que, antes, foi trágico e dolorido.
Uma valsa fresca e de tons levemente gélidos paira pelo ambiente como uma brisa de anoitecer trazendo a umidade do mar para a cidade. Macia e com um forte aroma folk que se fixa na melodia, Vamos Rir De Nós se une à dobradinha Um Raio No Céu e Tropeço no que tange o seu refletir sobre o término do relacionamento. Aqui, porém, fica nítido que o motivo do rompimento é a diferença dentre os anseios e a forma como se chegar a eles.
É como receber um abraço quente, materno e reconfortante. Enquanto a chuva cai e, do lado de dentro, o calor ameno faz embaçar o vidro da janela, as lágrimas escorrem sem controle pela face franzida e pressionada sobre o peito daquele que ofereceu o ato de compaixão. Com as mãos enrijecidas, a personagem deixa toda a impureza sentimental se esvair. Medo, insegurança, arrependimentos. Tudo dito por meio de um choro calado. Com flertes singelos com a estética melódica de Tiago Iorc, Pra Aliviar O Peito é a canção mais comovente e sensível de todo o álbum. Um produto MPB que, por meio do compasso bem marcado pelo baixo de Wagner Lageman, fala com o coração para outro coração. Que entende a angústia e que tem força para oferecer o incentivo à superação. Pra Aliviar O Peito é a canção do recomeço e da representação do estado de paz consigo mesmo.
Melódico, sensível e comovente. A Vida É Uma Granada mostra o quão sinérgico e emocional podem ser as análises sobre si, sobre a vida e, principalmente, sobre o outro. Com delicadeza, lucidez e maturidade, o álbum é um material que pensa a realidade, as relações interpessoais e os conflitos internos que, nem sempre, são expostos aos gritos.
Dingo mostrou, com o álbum, como os processos de autoconhecimento são dolorosos e nem sempre rápidos. Mostrou como o ambiente pode transformar o homem. Ilustrou como um término de relacionamento pode ter várias verdades. E mostrou, principalmente, que todos, sem exceção, precisam de um abraço para ajudar a expelir tudo aquilo que fica represado no peito, seja uma tristeza, uma angústia ou um medo.
E nesse caminho, Dingo fundiu jazz, samba, MPB, reggae, soft rock, folk, R&B e muitas influências que, com auxílio da mixagem de Ribeiro Jr., surtiu na criação de uma sonoridade original que se caracteriza como uma MPB de vanguarda. Uma caracterização maturada graças à consciente e sincrônica produção de Flanders com o próprio Ribeiro Jr..
De traços modernistas, mas não tão latentes quanto a obra de Bernardo Rezende usada para ilustrar a capa de Ensaios Férteis, EP do Cajupitanga, a arte feita por Gabriel Hand traz a fluidez da vida representada pelo riacho que corta a paisagem árida ao meio. Representando as dores e os sofrimentos, mas também a esperança, ela é abraçada por um céu que transmite o frescor da brisa carregada de mudanças.
Lançado em 08 de novembro de 2022 via Rockambole, A Vida É Uma Granada é um alento belo, sensível e reconfortante para um ano tenso que se encerra com a promessa de mudanças. É a sensibilidade colocada sobre a reflexão sobre a vida, sobre as relações e sobre o outro.