NOTA DO CRÍTICO
Ele é o primeiro trabalho do quarteto paulista no pós-pandemia, vindo quatro anos após Quarto Templo. Entre a reedição de toda a sua discografia, o Bike também usou o tempo do confinamento para compor aquilo que viria a ser Arte Bruta, trabalho que consiste no quinto disco de estúdio do grupo.
Uma névoa delirada em tons que transitam entre quentes, frios e místicos pairam pelo ambiente como uma espécie de spray alucinógeno e hipnótico. A maciez quase dissonante da guitarra de Diego Xavier, junto com os rompantes de explosões estridentes da bateria de Daniel Fumega cria uma espécie de trilha sonora de uma obra do Tim Burton. Trazendo uma pitada generosa de psicodelia, o interlúdio Arcoverde tem um encerramento tão denso que deixa as costas do ouvinte dormentes com sua imersão surpreendente na lentidão sombria do doom.
Notas graves são ouvidas ousando se desprender da escuridão para serem vistas e ouvidas também pelos sutis feixes de luz. A guitarra aqui, curiosamente, recria a mesma melodia desenhada por Glenn Raymond Tipton na introdução de Breaking The Law, single do Judas Priest. Depois de batuques cujo ritmo comunicava a chegada de um importante anúncio, um ambiente misturando sintonias transcendentais e sincopadas se instaura ao mesmo tempo que rememora, timidamente, o amanhecer de The Man Who Sold The World, single do Nirvana. Com um timbre suave e quase sussurrado, Julito Cavalcante traz uma espécie de torpor embriagante que faz com que o ouvinte experiencie se imaginar na década de 70 enquanto dá pitadas de uma doçura levemente áspera ao swing construído pela sincronia entre a guitarra e a bateria. Fluindo para frases que misturam elementos progressivos e psicodélicos, Além-Ambiente é uma música que sonoriza o acesso a uma experiência extra-corpórea, mental e psíquica. É uma música em que todos os sentimentos são percebidos de forma intensa, desde a interação social até o lancinante corte da navalha.
Um nevoeiro sombrio tampa a vista do horizonte. Sinistra e tenebrosa, a neblina desce com uma lentidão sínica e provocante de forma a mexer com o psicológico do ouvinte. Novamente introduzindo a temática doom a partir da guitarra, instrumento que, aqui, mistura elementos do grunge e do stoner rock ao sombrio, O Torto Santo tem um groove encorpado e swingado do baixo de João Felipe Gouvea, elemento decisivo para a construção rítmico-melódica da presente canção. Enquanto vai amadurecendo, a faixa vai recebendo cenários florais que suavizam a densidade de sua melodia introdutória. É assim que O Torto Santo introduz um lirismo místico sobre a ascensão ao mundo além-vida, uma transição que, na faixa, é vivenciada tanto pela camada corpórea quanto pela esfera transcendental.
Fresca e swingada, a melodia que se apresenta traz uma alegria surpreendente para o torpor sombrio e denso oferecido até então. Com um compasso baseado no baião, a canção tem um aroma forte de nordeste que é perceptível durante toda a sua execução linear. Porém, a guitarra ácida e quase estridente de Guilherme Held propõe a mistura com o progressivo-psicodélico mesmo que sua base também esteja seguindo os parâmetros nordestinos. Com essa nova experiência, Cedro é a faixa que representa a retomada de consciência, a entrada nos eixos mentais. É a reflexão, é a necessidade de se perceber. É simplesmente a maré como gatilho para a imersão no próprio subconsciente.
É um perfeito som de garagem. Opaca e crua, a introdução é hipnótica, bojuda e mareante. Prosseguindo com o contato com a própria mente estruturado na faixa anterior, Traço E Risco é uma faixa progressista majoritariamente instrumental que se deleita no efeito wah-wah da guitarra. Traço E Risco é mais uma faixa de Arte Bruta que abusa na experiência extrassensorial com toques de misticismo.
Com a bateria como protagonista na criação rítmica, a canção se inicia com um groove contagiante em sua simplicidade compassada e ligeiramente acelerada. Nesse amanhecer, é curioso ver como a sinergia entre as guitarras e baixo cria um aroma enigmático e masoquista mente atraente tal como faz Mark Tremonti nas músicas do Creed. De estrutura mais complexa e melodicamente mais trabalhada, Filha Do Vento é, assim como Traço E Risco, misticismo. É fábula. É lenda. É o imaginário coletivo. Filha Do Vento é uma faixa que se permite se relacionar com o espaço-tempo, a entender o conceito do tempo e a se ver perdido nas marés transformadoras que a brisa traz consigo.
Macia, enigmática e de sabor entorpecente. Misturando a new wave com um rock típico de um Brasil do início dos anos 80, a canção tem um início crescente e de protagonismo do sintetizador. Ele é quem consegue, com uma tacada, deixar a faixa soar retrô e futurista ao mesmo tempo. Clara-Luz é o enaltecimento dos pássaros como uma metáfora viva do destino.
Um folk entorpecente e embriagante. Macio, reconfortante e de teor transcendental, a forma como a guitarra se movimenta recria as ambiências propostas por Myles Kennedy em Year Of The Tiger. Ao fundo, um sonar que faz lembrar o momento pré-sopro da gaita escocesa deixa a atmosfera viva em uma doma acrílica. É como se sentir flutuando, vendo o mundo por um ângulo inimaginável e vivenciar a máxima plenitude. Entre o estridente e o veludo, Além-Céu pode ser definida como uma viagem. Uma viagem ao futuro, ao descobrimento, ao novo. É a peregrinação da liberdade do medo e da insegurança. Um pouso suave na embriaguez da inconsciência.
Parece tolo, mas apenas a partir de seus primeiros sonares, a guitarra acústica oferece ao ouvinte a memória do despertar de Por Onde Andei, idealizado por Nando Reis. O curioso é ver que, ao mesmo tempo em que o instrumento emana um aroma MPB, ele traz também uma percepção sutil do medieval tal como o Iron Maiden costuma incorporar em suas canções. Embriagante e hipnótica em sua densa maciez, Que Vai Da Terra Ao Céu é como uma prece, um rito de passagem com grande referência às religiões asiáticas como budismo, taoismo e hinduísmo.
Mais sombria que a canção anterior, o presente ambiente sugere uma leve inclinação para o sombrio ao mesmo tempo em que mantém a sonoridade que ambienta o ouvinte sobre o terreno das religiões asiáticas. O Encontro Do Céu Com A Terra tem um ligeiro caos que sonoriza a tangencialidade entre a pureza e o estado da constante evolução. Da escola espiritual e dos alunos de desejos transcendentais.
Um macio, reconfortante e poente indie rock se constrói na nova introdução. Com tamanha simplicidade, Cavalcante e Xavier criam uma harmonia tão organicamente contagiante que deixa a canção a ter quase um aroma romântico. Regida por uma delicadeza e uma alegria despertante, Santa Cabeça dialoga sobre a fuga da realidade como forma de poupar sofrimento. Porém, ela pode comunicar, à sua maneira, a incapacidade do personagem em aceitar sua existência ou até mesmo de impedi-lo de experienciar a evolução a partir da dor. É o ego falando mais alto que o id e também é o id vociferando contra o superego. É a liberdade do desejo pela experiência e a censura da inconstância emocional.
Um interlúdio simples em estrutura, mas grande em seu potencial melódico-imagético. Melancólico, A Queda Do Céu vem como a antítese das propostas oferecidas em Que Vai Da Terra Ao Céu. É a continuação de O Encontro Do Céu Com A Terra sob uma ótica ainda menos otimista.
Yaripo é o fechamento de um processo árduo, psicodélico e ácido do contato com a própria consciência e a busca da máxima plenitude. De sonoridade exotérica e transcendental, a faixa consegue ser ainda mais melancólica que A Queda Do Céu. Yaripo é a evolução, é a persistência, é a perseverança, é o torpor da introspecção. Esta é uma música que, assim como Santa Cabeça, consegue misturar alegria, tristeza e plenitude em um mesmo espaço no trajeto rumo a esperança trazida por um Sol reenergizante surgido atrás das silhuetas das montanhas do horizonte.
É um processo de autoconhecimento. Sob uma ótica exotérica, transcendental, mítica e até mesmo religiosa, Arte Bruta é simplesmente uma experiência extrassensorial e até mesmo extracorpórea de um personagem no trajeto de seu autoconhecimento e de sua própria percepção de mundo.
Profundo, denso e experimental, o álbum é uma viagem de longas distâncias rumo ao desconhecido ambiente do inconsciente. Sujo, embriagante, consistente e de estrutura melódica linear de rompantes crescentes, o material é como uma narrativa única e linear feita por uma voz que soa como um personagem onipresente, amplificando a noção quimérica.
Nesse processo de profunda introspecção, existe uma inserção generosa de sensibilidade e simplicidade a partir das melodias propostas, melodias que, sob a diretriz de Held, caminham livremente entre o psicodélico, o grunge, o stoner rock, o progressivo, o indie rock, o folk, o baião, new wave e mesmo o doom. Interessante perceber que, nessa receita, mesmo que haja momentos sombrios intensos, a base harmônico-melódica proposta pelo Bike em Arte Bruta muito bebe da mesma fonte de nomes como Greta Van Fleet e Palace Of The King.
Apesar de entregar um som maduro e consciente, a mixagem de Held entregou um álbum de sonoridade inconstante. Não há uma padronização em seu som. Cada música é como um produto único, mas de qualidades díspares. Algumas faixas soam bem equalizadas, enquanto outras, opacas e de uma crueza que está no limite entre o artístico e o prejudicial.
Misturando o retrô com o atual, o álbum tem sua análise técnica finalizada pela arte de capa. Assinada por Juli Ribeiro, ela é regida pela mesma paleta de cores, mas em tons diferentes. Entre um rosado sereno e outro mais intenso, a obra propõe uma viagem exotérica de caráter evolutivo da mente e da vida. Uma simétrica ilustração daquilo que as sonoridades do álbum ofertam ao ouvinte.
Lançado em 05 de maio de 2023 via Before Sunrise Records e Quadrado Mágico, Arte Bruta é um álbum mítico de teores transcendentais, psicodélicos e esotéricos. É com essa receita, misturada com um surpreendente frescor, que o Bike propõe ao ouvinte um trajeto rumo ao autoconhecimento e à própria percepção de mundo a partir de uma hipersensibilidade inconsciente.