Amargo - Amargo I

NOTA DO CRÍTICO
Nota do Público 3 (1 Votos)

Vindo do sul brasileiro, mais um trio é lançado no circuito da música brasileira. Intitulado Amargo, o trio gaúcho usou da música para se expressar de maneira ampla. Dessa iniciativa nasceu Amargo I, o disco de estreia que, na opinião dos próprios integrantes, é a epopeia absurda sobre a vida de três artistas.


Não se vê com clareza o que está no horizonte. A neblina densa dança baixo como em uma valsa funesta e cínica. Não há luz, mas a claridade natural ajuda a, pelo menos, enxergar o tom da névoa e perceber seus olhares atentos como se estivessem prontos para executar uma emboscada. Esse é o cenário inicial desenhado a partir dos riffs espaçados e sem distorção da guitarra de André Piñata. Nauseante e ao mesmo tempo embriagante em suas ondulações, os riffs por si só causam um desconforto pela insegurança que se instaura na melodia ainda em estrutura minimalista. Quando a guitarra começa a produzir sons curtos, mas crescentes em volume como sob efeito de fade in, Acomodado Numa Posição Desconfortável ganha a entrada dos instrumentos faltantes e adquire silhuetas sinistras que amplificam a sensação de temor. É interessante notar que, nesse momento, o intenso groove inserido pelos graves acordes de Marcelo Menegotto imprime uma ambiência metalizada que é reforçada pelos repiques desenvoltos de Gustavo Raythz. Eis que surge uma voz aguda, mas cuja doçura evidente é ofuscada pelo tom de desespero e angústia na qual Piñata pronuncia as palavras. Imerso em uma ebulição soturna, o eu-lírico dialoga sobre solidão na mesma linha do amor como se, aí, existisse certo ar romantizado nos ambientes de isolamento. Isso é trazido sob uma roupagem que mistura elementos progressivos com flertes com um thrash metal entorpecido, mas cujas linhas traduzem influências vindas do Metallica, com especial menção ao single From Whom The Bell Tolls.


Um som estridente e linear vem do ligar da distorção. O chimbal vem em seguida firme e sujo fazendo a contagem do tempo. Imprimindo novamente um movimento regado a groove, o baixo é aquele instrumento responsável por quebrar a rigidez inicial exalada pela sonoridade introdutória. Caótica e ainda com traços sombrios, Nudez Tribal é a descrição de um alguém conhecendo seus impulsos mais primitivos e expondo sua face onipresente sem bloqueio de ação. Com sobreposições vocais a partir da união do backing vocal de Piñata, Nudez Tribal passa a soar como uma conversa entre o personagem e sua consciência de maneira a soar como um comportamento que indica a loucura. 


Existe luz. Existe Sol. Existe vida. Mas também existe a incerteza, o imprevisível. O acaso. Uma estranha maciez folclórica se pronuncia com os dedilhares da guitarra na introdução. Um folclore agressivo, ríspido, caótico e dramático sobre uma sociedade merecedora de paz, amor, compaixão e razão que ainda se via refém da frustração. Humano Demasiadamente Humano fecha a trilogia progressiva de Amargo I e oferece ao ouvinte o metal fundido ao espírito anárquico do punk.


Um homem fala sobre a relação sociedade-Estado. O áudio traz uma mixagem que indica os anos sessenta, época da Ditadura brasileira. Aos poucos, essa interlocução vai recebendo uma sonorização quase onipresente que, pela conjuntura de elementos, cria uma assimilação tanto com a introdução de Another Brick In The Wall, single do Pink Floyd, como com Heaven Can Wait, single do Iron Maiden. Eis que um estranho ambiente extrassensorial e gutural passa a fazer parte de Χάοςποιησις enquanto o áudio verbal continua sendo executado ao fundo como se fosse uma espécie de psicografia. Χάοςποιησις funciona como um suavizar das tensas melodias até então apresentadas, mas ao mesmo tempo estimula um suor frio enigmático que toma conta do ouvinte que se vê intrigado com a razão de tal sentimento, o que não chega. Não pelo menos durante a canção, que funciona como uma espécie de interlúdio.


Tons crepusculares e pastéis tomam conta do cenário a partir de uma sonoridade embriagante. Após uma crescente, a entorpecida calmaria recai sobre linhas de bateria quebradas e cheias de repiques acelerados que exalam não apenas adrenalina, mas uma espécie de agitação inconsolável como se estivesse em um ataque emocional. Tentando controlar tal ira, a guitarra e o baixo entram em cena tentando criar, entre si, uma sincronia apaziguante que nada mais soa como um descompasso nauseante desesperado por uma solução. Não por acaso, A2 fala sobre um personagem no processo do descobrimento de sua própria essência volátil e desconexa. É interessante notar também que, como todo ser instável, a melodia da canção também representa, entre alguns versos, a parte sensível e emocional imersa entre a carapuça inconstante. Isso é ser humano: um ser de emoções nem sempre compreendidas.


Não há luz natural, mas o gramado ainda é verde. Não há vida ao redor, mas ainda há ar para respirar. Não há horizonte, mas existe a memória para acalentar. Não há lagrimas, mas a tristeza já se enraizou no olhar. É como o som da não esperança, da ausência de alternativas. Da falta de estímulo. Porém, existem momentos, rápidos, em que a luz natural vence a iluminação oferecida pelo acrílico e dá um rompante de realidade e vida ao ambiente ilusoriamente ativo. Como se o andarilho tivesse tomado consciência do ambiente interno onde estava, ele franze o rosto, fecha o punho, toma fôlego e está prestes a extravasar todas as emoções deprimentes represadas. Ao abrir a boca, uma revoada de corvos, marimbondos e vespas saem de sua garganta como em um processo de purificação. Misturando elementos do noise rock com traços singelos do doom metal, É Isso Ou Suicídio é a ilustração da tomada de decisão de um personagem imerso em seus próprios conflitos. 


Os olhos estão fechados, mas as lágrimas rompem a frágil barreira imposta pelas pálpebras. A mente está vazia, mas o coração produz imagens inevitáveis no inconsciente que recobram memórias agradáveis que dão início a uma sensibilização nostálgica. As sobrancelhas franzem em um misto de indignação e negação. A união do som de caráter interdimensional vindos do sintetizador de F_ck The Zeitgeist com os repiques da bateria, as singelas notas da guitarra e o groove denso do baixo dá a impressão de se presenciar uma marcha fúnebre. Não por acaso, No Fim é uma canção que narra o eu-lírico experienciando os momentos limites da vida.


Soturno e mórbido. Amargo I é um trabalho que explora uma sonoridade introspectiva e densa que estimula o ouvinte a experienciar sensações que vão da melancolia e nostalgia a um profundo estado emocional instável regido pela insegurança e falta de afeto.


Dialogando sobre as facetas do ser humano e suas mais íntimas emoções e relações individualizadas, o álbum é um trabalho intimista e de melodias entorpecidamente intensas. Cheio de lamúrias, ele escancara o mais profundo ambiente que guarda a completa essência tanto da comunidade quanto da sociedade global.


Por conta de sua sonoridade muitas vezes proporcionar o desconforto como sensação primária, não haveria título melhor para o álbum se não Amargo I. Afinal, ele é um disco de essência amarga que caminha por terrenos inerentes ao punk e ao metal. Nele existem aromas de thrash e doom que se confundem com o metal propriamente dito. E no meio disso tudo, tem o inconsolável, o inconstante, o rebelde e o irado espírito anárquico do punk trazendo uma postura impositiva que se evidencia em alguns momentos.



Para proporcionar tal resultado, F_ck The Zeitgeist fundiu suas habilidades como produtor e engenheiro de mixagem para, a partir da consolidação de um som cru, poder trabalhar a sensibilidade sombria e melancólica que permeia toda a conjuntura rítmica de Amargo I.


Fechando o escopo do álbum vem a parte visual. Elaborada por Matheus Póvoas, a arte de capa não traz em si o amargor, o desconfortável, o chocante. Permeada por um amarelado metálico, ela apresenta um quadrado que, em seu centro, existe uma mancha avermelhada que traz uma linhagem de elementos que tenta simular o conceito de evolução. Cada animal ali apresentado é desconexo entre si, o que acaba por comunicar que não existe de fato um conceito evolucionista. Eis a mensagem de Amargo I: a sociedade sempre estará refém de seus impulsos primários impedindo sua caminhada para o progresso.


Lançado em 29 de abril de 2022 via Artico Music, Amargo I é um álbum soturno, cru e de rompantes imprevisíveis que fala sobre os impulsos primários do ser humano. Proporcionando o desconforto a partir de suas melodias, o álbum é a demonstração do caos que a humanidade se encontra.

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Sobre o crítico musical

Diego Pinheiro

Quase que despretensiosamente, começou a escrever críticas sobre músicas. 


Apaixonado e estudioso do Rock, transita pelos diversos gêneros musicais com muita versatilidade.


Requisitado por grandes gravadoras como Warner Music, Som Livre e Sony Music, Diego Pinheiro também iniciou carreira internacional escrevendo sobre bandas estrangeiras.